quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Rodrigo Constantino- A desigualdade no mundo globalizado: Extremistão x Mediocristão

O colunista da Folha, Hélio Schwartsman, traz hoje em seu artigo uma reflexão inspirada em um autor que gosto muito. Trata-se de Nassim Taleb, autor de Cisne Negro e Fooled by Randomness. Começa constatando um fato – a desigualdade crescente no mundo, com poucos ricaços acumulando cada vez mais da riqueza produzida – para concluir algo não tão evidente: esse talvez seja o resultado inevitável de um mundo mais conectado.
Antes de prosseguir, um alerta, o qual tenho certeza que o próprio autor também se dá conta, mas que não necessariamente fica claro para todos os leitores: a riqueza não é um jogo de soma zero, um valor dado, estático, em que para uns ficarem mais ricos os outros precisam ficar mais pobres. Riqueza se cria, basicamente com ganhos de produtividade, e é perfeitamente possível todos enriquecerem juntos, mas uns mais que os outros. Aliás, essa tem sido a história do capitalismo.
Continuando: mesmo compreendendo isso, chama a atenção o fato de que alguns poucos concentram o grosso dessa riqueza disponível no momento. Mas o que poucos talvez se deem conta é que o próprio capitalismo, inserido em ambiente globalizado e ligado na era digital, tornou o mundo mais “plano”, para usar a expressão de Thomas Friedman. Hoje, para muitos serviços e produtos, o mercado consumidor potencial não é mais o local, mas o mundial. Ou seja, bilhões de consumidores. Quem cai nas graças deles ficará podre de rico. Como exemplifica Schwartsman:
Até o século 19, por exemplo, um músico recebia pelo número de execuções que fosse capaz de fazer. Sua plateia era limitada ao número de assentos no local de exibição e, se quisesse uns cobres a mais, tinha de fazer apresentações extras. Esse mundo é o que o matemático, filósofo, investidor e polemista Nassim Taleb chama de Mediocristão. Nele as coisas são previsíveis, eventos nunca têm grande impacto e médias e a curva de Gauss são guias eficazes.
Só que o planeta não é mais assim. Vieram indústria fonográfica, computadores e entramos num universo exponencial, o Extremistão. Hoje, um músico pode ficar milionário gravando uma única peça de sucesso. A casa cheia do mundo exponencial já não se restringe à lotação do teatro, mas aos milhões de terrestres que se disponham a baixar a canção. A vida ficou mais difícil para o profissional que não tira a sorte grande. Se ele antes tinha uma reserva de mercado dada pela proximidade física com o ouvinte, agora concorre com todos os músicos do planeta.
No Extremistão, detalhes podem ter impacto gigantesco e a previsibilidade não passa de uma ilusão.
Quando li o livro Cisne Negro, há alguns anos, escrevi uma longa resenha na qual constava esse parágrafo:
O mundo seria dividido, segundo Taleb, entre Mediocristan Extremistan, os nomes que ele criou para explicar realidades diferentes. No primeiro caso, a distribuição normal da famosa curva de Gauss explica razoavelmente os eventos. No segundo caso, os eventos são escaláveis, e os resultados não se encaixam no padrão estatístico dominante. O peso dos indivíduos, por exemplo, faz parte do primeiro mundo. Já a renda deles está na segunda categoria. A profissão de garçom gera determinado salário médio, com certo desvio padrão. Mas a profissão de escritor produz resultados bem diferentes, com desigualdades monstruosas e disparidades muito distantes daquelas calculadas pela curva normal. As recompensas de uns poucos escritores que chegam ao sucesso são infinitamente maiores do que as da média, e muitos simplesmente não vendem quase nada. O mesmo vale para atores, onde poucos atingem a fama e a fortuna, enquanto muitos fracassam e ficam no total anonimato. Para Taleb, a sorte exerce um importante papel nesses resultados, mas a mente humana costuma atribuir tudo às habilidades e esforços apenas. O mundo é cada vez mais Extremistan, com as novas tecnologias e a globalização. No entanto, a maioria ainda usa as velhas ferramentas estatísticas do Mediocristan para analisar os fatos.
Podemos pensar em Michel Teló, que com um grande hit, “Ai se eu te pego”, amealhou verdadeira fortuna, atingindo um público gigantesco no mundo todo. O mesmo aconteceu com o coreano Psy, autor do mega-sucesso “Gangnam Style”, que contagiou multidões em todos os cantos do planeta. O livro Cinquenta tons de cinza, que agora virou filme de “soft-porn” para apimentar a vida das mais idosas e entediar as adolescentes, tornou sua autora uma multimilionária. Vale o mesmo raciocínio para jogadores de futebol, para lutadores, atores, etc.
Para muitas áreas, o céu é o limite, pois não há mais restrições locais. Mas claro que somente poucos serão os agraciados com o bilhete da loteria, por pura sorte ou mérito. Justamente porque um único sucesso já atinge o mundo todo rapidamente, aquele que der o tiro certeiro ficará muito rico, enquanto a maioria irá “morrer na praia”. Podemos ir mais longe e pensar até fora do quadrado, em áreas como a educação: hoje podemos ter aulas online com o professor Michael Sandel, de Harvard, o que torna a vida dos professores de filosofia mais medíocres das nossas federais mais complicada.
A globalização ampliou o espectro da competição, e a era digital facilitou o acesso de todos aos bens e produtos que desejam. Isso gera resultados mais desiguais, claro, mas traz inúmeras vantagens para a imensa maioria, especialmente para os consumidores, com mais opções disponíveis, e aos produtores que conseguem atender maior parcela da demanda ampliada. Schwartsman conclui em sua coluna:
Essa mudança não está restrita à música, atingindo praticamente todas as atividades humanas, da produção cultural aos investimentos. O escritor que acerta na mosca ganha várias vezes mais que a soma de todos os escritores “normais”.
Apesar de tudo, acho difícil que as pessoas queiram abandonar o Extremistão para voltar ao Mediocristão. 
É aqui que tenho dúvidas. Gostaria de ser tão otimista assim, mas dou um peso muito grande à inveja na natureza humana. Afinal, por que outro motivo o socialismo teria adeptos em pleno século XXI, após tantos fracassos retumbantes? O resultado desigual incomoda, o sucesso muito grande de poucos desperta o ressentimento nas almas mais invejosas. Infelizmente, elas pululam por aí, sempre pregando mais intervenção estatal, mais coerção, mais impostos, para tirar dos que acumularam mais em nome da “igualdade”, ou seja, da mediocridade.
PS: Não há necessidade alguma de considerar que aqueles produtos ou autores que chegam ao sucesso mundial são incríveis ou geniais. Não! A quantidade não é atestado de qualidade, e talvez seja até o contrário: para atingir bilhões de consumidores, provavelmente o denominador comum não pode ser muito exigente ou elaborado. “Ai se eu te pego” ou “Gangnam Style” comprovam isso. Mas estamos falando apenas da preferência média dos consumidores, em quantidade ampliada, sendo atendida no livre mercado, em ambiente de competição. Quem somos nós para impor nossos gostos aos demais? Além disso, se a liberdade for preservada, sempre haverá espaço para os nichos de qualidade superior, que também podem atingir cada vez mais gente mundo afora. Quantos milhões de pessoas podem degustar de uma sinfonia de Beethoven hoje? Se escolhem Michel Teló, isso é um direito – e um problema – deles!
Rodrigo Constantino

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