quarta-feira, 22 de março de 2017

Se, numa discussão, um dos muitos que gostariam de saber tudo, mas se recusam a aprender qualquer coisa, nos perguntar a respeito da continuação da vida após a morte, a resposta mais adequada e mais correta é: “Após a morte você será o que era antes de nascer.” — Arthur Schopenhauer
Se você rezar por chuva por bastante tempo, ela eventualmente cai. Se você rezar para que enxurradas se acalmem, elas eventualmente o farão. O mesmo acontece na ausência de preces. — Steve Allen

CLIMÉRIO

“Tive uma infância bem miserável. Enquanto os amiguinhos chupavam picolé eu chupava o palito.” (Climério)

JOSEFINA PRESTES

“No meu caminho havia um padre. Havia um padre no meio do meu caminho e depois na minha cama.” (Josefina Prestes)

MIM

“Rotineiramente vemos o tonto elegendo o próprio carrasco. Primeiramente entra no conto do vigário, ansioso por sombra, água fresca e dinheiro caindo das árvores. Depois, como é tonto, fica espantado com a corda em volta do pescoço.” (Mim)

LIMÃO

“Às vezes a morte faz nobre aos olhos do povo muitos homens que não valem um cuspe.” (Limão)

NONO AMBRÓSIO

“A nona anda fugindo do banho. Está com um cheiro que lembra provolone com pele de frieira.” (Nono Ambrósio)

BOAVENTURA E O PORCO STRADIVÁRIUS

Boaventura mora no sítio Aruana que fica cem quilômetros da cidade mais próxima e tinha como amigo o porco Stradivárius. O porco era especial, pois inflava como se fosse um balão e levava Boaventura montado a passear pelos verdes vales da região. Fizeram belas viagens os dois, muita beleza observaram dos ares, inclusive interagiam com bandos de pássaros. Sem dúvida Stradivárius era especial, era. No último passeio voaram muito baixo e foram vistos por um caçador que pensou tratar-se de um disco voador e meteu bala no porquinho. Boaventura anda inconsolável pela perda do amigo, mas não desiste, agora está tentando inflar o bode Nicolau.

NÃO SE META

A ponte, o rio veloz lá embaixo, a névoa e o desejo de pular. O homem salta, bate n’água, um barco que passava salva o suicida. O homem balança a cabeça, xinga o pescador que o salvara, fica fora de si ,queria morrer. O pescador não se faz de rogado; saca do revólver e o mata com dois tiros. Pegou quinze anos por matar um suicida.

ERIATLOV

“Sem dúvida o melhor noticiário para você ficar bem mal informado é o Jornal Nacional.” (Eriatlov)
“Em qualquer cidade ou vila deste país os melhores homens você encontrará nos cemitérios.” (Pócrates)


“A esquerda não muda. Está sempre atrás de um bode para colocar na sala.” (Pócrates)


“Nossos motoristas são educados e sempre param nas rótulas. Isso após terem batido, nunca antes.” (Pócrates)

HOTEL DOS OSSOS

É raro conhecer um humano, ainda mais vivo que tenha prazer em dormir serenamente no Hotel dos Ossos. Pois Melcíades era este homem, sempre fazendo apostas com os amigos e conhecidos que pernoitaria sobre as geladas tampas de mármores das moradas eternas. Entrava no hotel antes da meia-noite e saí às seis horas da manhã. Ficava lá mais sozinho que um outrora rico quebrado. E assim por diversas vezes fez apostas com diferentes pessoas, sempre vencendo e ganhando alguns trocados. Nem mesmo noites de louca tempestade o faziam desistir; duelava sem trégua contra raios e trovões. No Bar do Cide eram feitas provocações já com o objetivo traçado e dali saíam às apostas que terminavam sempre nos bolsos de Melcíades. No Hotel dos Ossos havia tumbas que traziam o desgaste provocado pelo corpo do inabalável corajoso, ousado cavaleiro dormente e não raras vezes também saltitante sobre repousos de mármore ou de tijolos sem alisamentos. Então numa noite que todos ainda recordam nas conversas miúdas na praça de Belvedere, nos botecos e nos chás de comadres, Melcíades entrou no cemitério valendo mais uma aposta e na manhã seguinte não saiu. Nunca mais foi encontrado. Na mesma noite sumiu a mulher do Cide. Até mesmo o Cide aposta que ela fugiu com ele. Pelo jeito não é só de ossos e apostas que Melcíades gostava.

A mente do fundamentalista é como a pupila do olho: quanto mais luz você joga, mais ela se fecha. — Stephen Hawking

Não tenho medo da morte. Estive morto por bilhões e bilhões de anos antes de meu nascimento, e isso nunca me causou qualquer inconveniência. — Mark Twain

O fato de um crente ser mais feliz que um cético não é mais pertinente que o fato de um homem bêbado ser mais feliz que um sóbrio. — George B. Shaw

FALANGES MIDIÁTICAS, ACADÊMICAS E PASTORAIS por Percival Puggina. Artigo publicado em 22.03.2017

Os que empurraram as esquerdas para suas vitórias e o Brasil para o fracasso retomam as antigas práticas. Astutamente, tendo suas opiniões perdido credibilidade nas questões internas, usam e abusam da cena internacional para continuar ministrando "lições" à opinião pública.
 Recordemos. Durante décadas, formadores de opinião, "trabalhadores em educação" e seguidores da Teologia da Libertação arrastaram o corpo social brasileiro para a valeta esquerdista. Era uma força irresistível a alavancar o PT para a condição de grande partido nacional, levar Lula à presidência da República e arrastar o Brasil para o caos. Nos microfones, as falanges midiáticas não poupavam sequer o público dos programas futebolísticos. Nas salas de aula, tornos e marretas ideológicas faziam cabeças em linha de produção. A CNBB e o clero dito progressista esmeravam-se em documentos e campanhas cujo cunho religioso se consumia em brevíssimas referências à Santíssima Virgem; tudo mais era perdição eufemística da mensagem cristã a serviço de determinada política. Certa feita, anos 90, designado pelo admirável arcebispo de Porto Alegre, D. Cláudio Colling, participei dos eventos que compunham o projeto da CNBB chamado "O Brasil que queremos". Nos bastidores de todos os eventos e mesas de trabalho, os assuntos mais abordados pelas pastorais presentes eram eleição vindoura e Lula-lá... A tudo testemunhei porque, como peixe fora d'água, lá estava.
Assim, ao longo de muitos anos, o povo brasileiro foi orientado pelos corregedores da opinião pública a pensar com critérios esquerdistas, estatistas, coletivistas. Toda a análise sociológica, histórica, política e econômica era promovida com lentes marxistas. Quando, nos anos 90, o Leste Europeu sacudia do próprio lombo sete décadas de opressão, ferrugem e lixo comunista, o Brasil da teologia da libertação, dos progressistas, dos movimentos sociais mantidos pelos inesgotáveis fundos petistas estava ávido de importar tudo para cá.
O que aconteceu após 13 anos do sucesso eleitoral de 2002 foi o inevitável fracasso operacional e moral de 2014, quando já não podia mais ser ocultado. E tudo fica bem resumido nestas estrofes narrativas e proféticas de Miguezin de Princesa em "Nunca recebi propina":
Prometeu melhores dias
Para um bocado de gente,
Vivia quase montado
No pescoço do vivente,
Mas, na hora de comer,
Só comeu quem foi parente.
Agora no xilindró,
Com saudade do faisão,
Come pão com margarina
E almoça rubacão
E diz: - Esse povo ingrato
Inda beija meu retrato
Nessa próxima eleição!
O poder petista, como tal, acabou. Junto com sua parceria, virou caso de polícia. A conexão publicitária entre esquerda e progresso, a ninguém mais convence. Com os foguetes queimados para levar o PT ao poder, torrou-se o prestígio de seus apoiadores. Por isso, leitor, você não ouve mais qualquer discurso esquerdista.
Que fazem, então, as falanges midiáticas, acadêmicas e pastorais? Reconhecidas as próprias limitações, dedicam-se a: 1) combater quem esteja à sua direita no arco ideológico, jogando rótulos entre os quais os de "ultradireita" e "fascista" são os mais recorrentes; 2) atacar propostas que busquem desfazer os estragos promovidos por um quarto de século de governos de esquerda; 3) investir contra conservadores e liberais como sendo os vilões a serem evitados.
Observe, então e por fim, o quanto se valem para isso do cenário internacional. Ali está o campo de prova onde reiteram suas convicções e "ensinamentos", sem que o passado os condene. Não, as falanges não se penitenciam nem redimem. Apenas mudam de estratégia. Agora, pretendem nos ensinar a compreender o mundo com seus olhos.
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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

UMA NOVA VIDA

Naquele dia Arnaldo estava um traste. O céu era marrom, a saliva tinha fel. Queria um abismo só para chamar de seu. Chegou em casa e foi direto para o canil. Mandou o Duque para dentro da residência e se deitou na casinha do cão. Espreguiçou-se, lambeu os beiços e passou a roer um osso. Antes da meia-noite já estava latindo para os passantes.

LEÃO BOB

“Achava eu estar ouvindo vozes. Pensei que estava ficando louco.  Na verdade era meu estomago roncando de fome.” (Leão Bob)

APOLÔNIO

Apolônio é um cabrito montês que acreditava pular até a lua num salto só. Seus familiares e amigos o chamavam de louco. Subiu mais alto que pode e na hora apropriada pulou. Pois pulou e caiu sobre o cavalo de São Jorge que pastava tranquilo (Não me pergunte como, mas cavalo santo tem pasto, água e ar limpo na lua, é santo ora!) São Jorge já havia morrido, então Apolônio ficou por lá fazendo companhia ao bom cavalo. Não acredita? Observe descrente nas noites de lua cheia e verás a sombra do Apolônio passeando sobre o solo lunar.

PAUSA

O céu está muito azul, sem nuvens. O vento frio que bate no meu rosto considero uma carícia. O alto lugar onde me encontro, entre pedras e grama verde, é um paraíso de paz. Nas árvores abaixo os pássaros iluminam ainda mais o dia com seus trinados. Fico de pé para melhor observar ao redor a beleza que me cerca. Mais à direita um menino cheio de energia pesca num pequeno açude. Pequenos pontos que vislumbro distantes são ovelhas no pasto. É muito bom ter esses momentos, pausa para os ouvidos, livres do estridente politicamente correto e das mesmices de broncos.

IMUNE- H. L. Mencken

A convenção social mais curiosa desta grande época em que vivemos é a de que as opiniões religiosas devem ser respeitadas. Os efeitos maléficos desta convenção devem ser evidentes para todos, mas os dois maiores são: a) jogar um véu de santidade sobre ideais que violam qualquer decência intelectual; b) tornar todo teólogo um libertino com imunidades. O resultado disto é a espantosa lerdeza com que as ideais realmente sólidas circulam pelo mundo. No minuto em que uma dessas ideais põe a cabeça para fora, é inevitável que algum teólogo analfabeto cairá sobre ela, tentando destruí-la. A maneira mais eficiente de defendê-la, naturalmente, seria cair sobre o teólogo com uma clava, porque a única defesa que funciona, na polêmica ou na guerra, é uma ofensiva vigorosa. Mas isto seria considerado falta de modos pelas convenções, e assim os teólogos continuam alegremente o seu assalto à inteligência sem muita resistência, retardando desagradavelmente o conhecimento.
Não há, na realidade, nada sobre opiniões religiosas que as autoriza a mais respeito que quaisquer outras opiniões. Ao contrário, elas tendem a ser ostensivamente cretinas. Se duvida, peça a qualquer devoto de suas relações para pôr por escrito aquilo em que ele realmente acredita, e veja o que será: “Eu, José da Silva, sob juramento, acredito que, ao morrer, me tornarei um vertebrado sem substância, desprovido de peso, altura ou massa, mas conservando todos os poderes intelectuais e sensações corpóreas de um mamífero comum; e que, pelo crime e pecado de ter beijado minha cunhada às escondidas, com má intenção, serei cozido em ácido sulfúrico durante um bilhão de anos”. Outro exemplo: “Eu, Maria da Silva, carregando o medo do Inferno, afirmo e declaro solenemente que foi uma atitude certa, justa, legal e decente por parte de Deus, ao ver algumas criancinhas do santuário rindo da careca do Eliseu, mandar vir uma ursa da floresta e instruí-la, incitá-la, induzi-la e comandá-la para estraçalhar 42 delas”. Ou: “Eu, d. Fulano de Tal, bispo da paróquia de…, declaro pela minha honra como homem e como religioso acreditar que Jonas engoliu a baleia”, ou vice-versa, se for o caso.
Não, não há nada ostensivamente digno a respeito de ideias religiosas. Só conduzem a uma espécie curiosamente pueril e tediosa de asnices. Na melhor das hipóteses, são compiladas dos metafísicos, ou seja, de homens que devotam suas vidas a provar que duas vezes dois não são sempre ou necessariamente quatro. Na pior das hipóteses, cheira a espiritualismo ou a cartomancia. Nem há qualquer virtude visível nos homens que as comercializam profissionalmente. Poucos teólogos sabem alguma coisa que valha a pena, mesmo sobre teologia, e poucos deles são honestos. Pode-se perdoar um comunista ou um coletor de impostos na suposição de que há algum problema em suas glândulas endócrinas, e receitar-lhe um inverno no Sul da França para curá-lo. Mas o teólogo médio é um sujeito corado, robusto e bem alimentado, sem nenhuma desculpa discernível em patologia. Ele dissemina a sua cantilena, não inocentemente, como um filósofo, mas maliciosamente, como um político. Num mundo bem organizado, ele estaria na enxada. Mas, no mundo em que vivemos, temos de ouvir o que ele diz, não apenas educada e reverentemente, mas babando de boca aberta.

A interrupção voluntária do pensamento Desidério Murcho- 3

É por isso que temos de manter os olhos abertos. A excelência na investigação é só um dos critérios do bom professor. O outro é a excelência no ensino. Mas, ao contrário do que se pensa, o que determina a excelência no ensino não é a pedagogia. O que determina a excelência no ensino é o domínio científico da sua área de estudos no seu todo; é saber filosofia da religião e estética e ética e lógica elementar, ao mesmo tempo em que sabemos os pormenores da tradução radical de Quine. A pedagogia é apenas um acessório de senso comum. Desde que o professor tenha um bom domínio científico da sua área e se esforce por ser um professor competente, será competente; não precisa de nenhuma formação pedagógica que o ensine a contar carteiras vazias e a dispor alunos numa sala.
Em qualquer caso, mesmo que precise de tais tolices pedagógicas, sem o domínio científico teremos maus professores. E em Portugal o problema não é pedagógico, mas sim científico: a esmagadora maioria dos professores de filosofia, a julgar pelos manuais, têm uma formação filosófica altamente deficiente — desconhecem os problemas, teorias e argumentos centrais da filosofia, porque aprenderam a papaguear as palavras dos filósofos sem perceber o que está em causa.
Como podemos avaliar então a qualidade do ensino dos professores? Convidando-os a escrever livros e artigos de caráter introdutório às suas disciplinas e áreas de especialidade; e esses artigos e livros e conferências terão de ser objeto do mesmo tipo de filtragem que os artigos e livros e conferências de investigação. E isto é o que acontece nos países mais desenvolvidos — se eu for publicar um livro de introdução à lógica, ele não é publicado sem ter sido anonimamente avaliado por um especialista em lógica e no ensino da lógica, que irá avaliar duas coisas: 1) a correção científica do meu livro e 2) a sua adequação didática.
2 é muito importante: um livro de introdução à lógica cientificamente correto, mas de tal forma feito que só quem já sabe lógica pode entendê-lo é um livro para ser deitado à velha fogueira de Hume. Infelizmente, acontece muito em Portugal este tipo de situação: um livro ou artigo sem público. Sem público porque apesar de ser introdutório está escrito de maneira que quem não sabe do tema não percebe nada. Claro que um pretenso especialista na filosofia da mente de Dennett que é incapaz de explicar os pontos essenciais da filosofia de Dennett a quem nada sabe de filosofia da mente é um mau especialista, além de mau professor. Nunca conheci uma pessoa que dominasse realmente uma certa área e que fosse incapaz de a explicar a quem nada sabe.
Mas muitas pessoas passam por especialistas porque de tanto decorar o muito que leem, repetem o que dizem sem o perceber senão superficialmente, dando-se ares de conhecedor. E são estes pretensos grandes especialistas que publicam em Portugal os livros e artigos sem público noutro aspecto: artigos e livros avançados de filosofia, para os quais obviamente não há público — porque ninguém pode entender e apreciar e discutir a teoria de Einstein sem saber física elementar. E em Portugal precisamos aprender filosofia elementar antes de podermos discutir e estudar os aspectos mais avançados da disciplina.
Esta realidade é tão pouco romântica que repugna, claro, ao pensamento mítico: a ideia de penetrar nos recantos obscuros do saber arcano é muito mais atraente do que a ideia modesta de aprender honestamente e com seriedade os problemas, as teorias e os argumentos da filosofia. Esta é a medida exata do impulso mítico do pensamento. E é porque o seu resultado é o amadorismo pretensioso e o atraso da cultura filosófica nacional que é preciso saber enfrentar o pensamento mítico e transformar o impulso que lhe deu origem em algo de verdadeiramente criativo e construtivo.
Como penso que o que está na origem do pensamento mítico, no fundo, é um grande apego ao conhecimento, basta compreender que o objetivo de conhecer mais e compreender melhor não pode ser honestamente realizado com princípios míticos (e teses de mil páginas que ninguém avaliou publicamente nem leu) para que comecemos a mudar de atitude. E é essa mudança de atitude que urge fazer em Portugal, substituindo a frase rebuscada pelo pensamento cristalino, o embrulho de luxo do lixo intelectual pelo embrulho ecológico e simples da sutileza mental, a pretensão inchada pelo entusiasmo humilde de conhecer e compreender, o pensamento sibilino sobre o que não se pode dizer pelo pensamento dessacralizado do que se pode pensar. Enquanto não mudarmos de atitude, os nossos jovens mais brilhantes e talentosos terão precisamente as mesmas hipóteses de serem filósofos de renome internacional do que os atuais professores portugueses de filosofia: nenhumas.
  • autor: Desidério Murcho
  • fonte: Crítica

A interrupção voluntária do pensamento Desidério Murcho- 2

Como funciona uma revista acadêmica séria de filosofia? Do seguinte modo: em primeiro lugar, há uma política editorial — algures na revista, em geral na contracapa, há um texto que define o tipo de artigos que a revista quer publicar; pode ser uma revista de filosofia da religião ou de qualquer área da filosofia, ou de fenomenologia, ou de lógica. Em segundo lugar, há uma morada para onde as pessoas devem enviar os seus artigos.
Quando uma submissão é recebida, só o secretário ou outra pessoa sabe quem é o autor da submissão. Essa pessoa leva então o artigo à Direção, sem o nome do autor. A Direção estuda o artigo para determinar qual é o melhor especialista da área a quem deve pedir um parecer. Envia-se o artigo ao consultor, que dá um parecer à Direção, dizendo se acha o artigo competente ou não, independentemente de concordar ou não com o seu conteúdo — e sem que a Direção ou o consultor saibam quem é o autor do artigo. Se o parecer do consultor for demasiado ambíguo ou insatisfatório, a direção poderá enviar o artigo a outro consultor, para ter uma segunda opinião. E é com base nestes relatórios que se toma a decisão: publica-se ou recusa-se o artigo. Caso se publique, há em geral várias observações que são enviadas ao autor do artigo, objeções aos seus pontos de vista, etc., que permitem ao autor melhorar o artigo antes de o publicar.
Este sistema não permite evitar que se publique lixo. Nem permite evitar que se recuse artigos geniais incompreendidos. É um sistema péssimo. Mas é muitíssimo melhor do que o sistema nacional das revistas de filosofia, que consiste em publicar os artigos dos nossos próprios colegas, artigos que pedimos aos autores para publicar. Numa revista sem avaliação anônima de submissões não há qualquer controle de qualidade. E depois há o problema de a submissão não ser anônima; mesmo que eu ache que o artigo do meu colega é muito mau, não tenho coragem para lhe dizer isso, porque ele vai ficar ofendido e lá se vai uma amizade por uma ninharia. É por isso que as submissões têm de ser anônimas. Ninguém se zanga, e procuramos a qualidade. E no fim todos ganhamos.
Será que todas as revistas estão ao mesmo nível? Claro que não. Uma revista feita em Portugal, que publica artigos em português que não são anonimamente avaliados é infinitamente inferior a qualquer revista de circulação internacional que tenha submissões anônimas. 30 artigos numa revista portuguesa deste gênero não valem sequer 1 artigo publicado numa revista acadêmica séria. Isto não quer dizer que não tenhamos artigos de grande qualidade nas revistas portuguesas; pura e simplesmente não podemos saber isso, porque é como ter grandes maratonistas que nunca participaram numa prova internacional.
Os artigos em revistas internacionais são um dos mecanismos de controle de qualidade que escapam ao pensamento mítico e que eu ignorava com 20 anos. Mas há mais dois: colóquios e livros.
A situação dos colóquios e conferências nacionais de filosofia é semelhante ao das revistas: não há a mínima noção do que são colóquios e conferências com controle anônimo de qualidade. Um colóquio acadêmico internacional sério funciona como uma revista: põe-se a circular um pedido de submissão de artigos; as pessoas enviam os artigos; estes são anonimamente avaliados; os que forem aceitos serão apresentados pelos respectivos autores na conferência. Em geral, estas conferências têm 1, 2 ou mais conferencistas convidados (filósofos de renome), mas o grosso das comunicações foram artigos submetidos anonimamente.
Uma vez mais, como podia eu saber que o professor arcano de saber medieval e profundo era realmente um grande investigador, se ele nunca publicou artigos em revistas com submissão anônima nem nunca deu conferências com submissão anônima? Claro que não podia saber tal coisa. Mas o poder do pensamento mítico fazia-me ficar à mesma maravilhado com o professor de saber arcano.
Com os livros acontece o mesmo. Os editores portugueses publicam os livros sem qualquer filtro de qualidade. Um livro numa editora acadêmica séria passa uma vez mais pelo filtro da leitura crítica dos especialistas na área. Eu envio um livro para a editora acadêmica séria X. A editora dá o livro a ler a 2 ou 3 especialistas, anonimamente, que se pronunciam sobre a sua qualidade, propõem correções, etc. Isto é trabalho sério. Não é assim que se publica em Portugal. Por isso, publicar 10 livros de filosofia em português não vale a publicação de 1 só livro numa língua culta numa editora de prestígio — os editores que mais livros de alta qualidade publicam, livros que são discutidos e estudados por toda a comunidade acadêmica internacional.
Mas talvez o pensamento mítico resista ainda com o seguinte falso pensamento: que interessa a internacionalização? Cada qual faz filosofia na sua língua e no seu país e pronto. Com que direito dizemos que uma revista de língua estrangeira é melhor? Só porque é estrangeira?
A resposta é: não. Não é só porque é estrangeira. É porque essas revistas têm 1) os mecanismos de filtragem que já expliquei e 2) são verdadeiros fóruns internacionais, onde os melhores estudiosos de todo o mundo discutem ideias, se corrigem, e procuram fazer avançar o conhecimento. A filosofia, como as artes e as ciências, é universal; não é um folclore local. Uma lei da física que só funciona em Portugal, no laboratório fechado do Professor Pardal, é uma farsa. Uma teoria ou um argumento filosófico que só se afirma numa revista em português, sem qualquer controle de qualidade, é igualmente uma farsa.
A importância de 2 escapa-nos quando estamos em pleno pensamento mítico, a olhar embasbacados para o Grande Professor do Saber Profundo. E é por isso que vale a pena falar mais disso. Os seres humanos erram, enganam-se, iludem-se, etc. Todos nós sabemos disto, claro. Só a interrupção voluntária do pensamento, provocada pelo pensamento mítico, nos faz esquecer esta verdade comezinha. Ora, é precisamente porque as pessoas erram que o controle dos nossos pares é tão importante. Eu preciso que os meus colegas leiam os meus artigos e os critiquem e os discutam e os corrijam. E quantas mais pessoas fizeram isso melhor, mais garantias tenho de não estar a fazer erros elementares. É assim triste verificar como os artigos de filosofia das grandes revistas internacionais provocam discussão, correção, etc., ao passo que os artigos nas revistas nacionais só provocam mais uma linha nos currículos dos respectivos autores. Assim como os livros e as conferências. Assim como os doutoramentos nacionais.
O pensamento mítico rende-se, finalmente. Mas é agora que é preciso não resvalar sem querermos para o oposto do Professor Arcano — como tem acontecido nas ciências em Portugal. Nas ciências tem havido uma revolução surda — as pessoas foram doutorar-se para o estrangeiro, entraram na comunidade internacional, perceberam o que são revistas de física a sério, o que são conferências a sério e hoje as nossas faculdades estão parcialmente integradas na comunidade internacional. Mas é preciso não resvalar para o Grande Investigador Internacional Que Só Vê o Umbigo e Não Sabe Dar Aulas.
Como eu disse, os processos de filtragem de qualidade das revistas, colóquios e livros internacionais são péssimos ­— mas são melhores do que as alternativas. Mas são realmente péssimos: porque podemos publicar vários artigos e livros a vida toda e ser péssimos profissionais de filosofia ou de física. Seremos tecnicamente perfeitos, mas estaremos embrenhados em pormenores, veremos apenas uma das folhas de uma das árvores da imensa floresta do conhecimento da nossa disciplina. E consequentemente seremos maus professores. É porque os professores do ensino secundário sabem instintivamente disto que desprezam a comunidade acadêmica nacional — e com razão. O honesto professor de filosofia ou de física tem de saber ensinar com competência aos seus alunos alguns elementos gerais da disciplina. Ser um Grande Investigador Internacional Cego em nada ajuda tal coisa. Podemos saber em pormenor os argumentos e as teorias da tradução radical de Quine; mas não sabemos ensinar filosofia da religião, estética, ética, filosofia política, introdução à filosofia e lógica elementar. E isto é mau.

A interrupção voluntária do pensamento Desidério Murcho -1

O pensamento mítico sempre exerceu uma forte influência sobre os seres humanos. Como Hume mostrou de forma definitiva nos seus ensaios sobre a religião, os seres humanos sentem-se atraídos pelo estrondoso, pelo invulgar, pelo numinoso. É por isso que o mito nos atrai tanto. Não há que tentar fingir que esta atração não existe. Essa é uma falsa opção. A verdadeira opção é entre saber reagir adequadamente ao nosso gosto pelo maravilhoso, ou ir na onda acriticamente, rendendo o nosso pensamento mais cuidado aos nossos primeiros impulsos. A opção é entre ser vítima desses impulsos ou estar atento a eles e transformá-los criativamente em qualquer coisa verdadeiramente valiosa. Infelizmente, o pensamento mítico impera nas nossas escolas e universidades, invisível e sem que as suas vítimas se deem conta disso — e por isso, dominando-as de forma primitiva.
Uma escola tem dois papéis: transmitir conhecimento e produzir conhecimento. Tanto num caso como noutro são necessários mecanismos de controle de qualidade. É claro que este é o tipo de ideia que não interessa a muitos professores; e é o tipo de ideia que não ocorre a muitos estudantes. E essa é uma das razões pelas quais o estado do ensino da filosofia é tão mau.
Um estudante de 18 anos entra numa universidade e é imediatamente esmagado com o poder do mito: teses de professores ilustres, grandes especialistas mundiais, autores de teses de mil páginas, aulas em que esses arcanos sábios percorrem os textos sagrados da filosofia, em latim, grego e alemão, criticando más traduções e exibindo o seu profundo saber. (Todavia, é significativo que sejam tão ligeiros a criticar traduções, mas tão parcos a traduzir.) Isto impressiona, claro. Impressiona sobretudo o jovem romântico, sedento de conhecimento, que na sua imaginação se vê a entrar no templo sagrado do Saber, ciente de que levará anos a atingir o nirvana de uma tese de mil páginas. Está criado o mito. O jovem fica pelo beicinho, apaixonado pelo saber arcano, pelos livros com bolor, pelas línguas mortas, pelos calhamaços de 1000 páginas — e quanto mais desconhecidos, melhor, porque dá a sensação maravilhosa de que estamos a descobrir segredos inacessíveis ao comum dos mortais.
Tudo isto é compreensível. Eu sinto isso — senti isso quando entrei para a faculdade. Felizmente, acordei a tempo desta interrupção voluntária do pensamento. E isso aconteceu no dia em que me perguntei: como é que eu sei que não estou iludido com tudo isto? E a resposta não se fez esperar: não posso saber.
Levei então anos a compreender melhor o que é uma comunidade acadêmica, e a distinguir o trigo do joio. É um mito pensar que o nosso professor de violino é o maior violinista do mundo se ele nunca atuou em público. Mas é um mito delicioso, porque nos põe em contato com o Inefável Violinista Desconhecido. É um mito pensar que o nosso professor de filosofia é o melhor especialista de Kant do mundo, se ele nunca publicou um só artigo numa revista internacional com submissão anônima ou se nunca publicou um só livro que seja sistematicamente referido na melhor bibliografia filosófica internacional. Mas é um mito delicioso: ali estamos nós, à sombra do Grande Filósofo de Arcana Sabedoria — que ninguém exceto estudantes de 20 anos reconhece como um grande especialista.
Este é o poder do pensamento mítico: é tão agradável pensar que estamos à mesa do café com o maior maratonista de todos os tempos, que nos esquecemos de lhe perguntar em que maratonas e em que jogos olímpicos é que ele participou. E no dia em que fazemos a pergunta, percebemos que o grande maratonista não passa de um amador que faz umas corridas à volta do quarteirão para impressionar a vizinhança.
Um investigador tem de mostrar em público o que vale. Tem de submeter e publicar artigos nas grandes revistas internacionais de filosofia — revistas que funcionem com sistema de submissão anônima, cujos artigos sejam constantemente referidos nas publicações da especialidade e que tenham um alto índice de recusas. As submissões anônimas são um dos muitos mecanismos para procurar filtrar o joio e ficar com o trigo. Claro que toda a gente sabe que nenhuma peneira é assim tão boa. Mas mais vale uma peneira o mais perfeita possível do que nenhuma peneira — a democracia é um péssimo sistema político, mas é melhor que qualquer outro; a publicação em revistas internacionais com submissão anônima é um péssimo sistema, mas é melhor do que qualquer outro.
Um pretenso especialista que só publica em revistas que o convidam a publicar, em revistas dos seus próprios colegas, em revistas sem qualquer circulação internacional, em revistas que não têm submissão anônima, é um especialista de nível zero. Pode ser um gênio; mas a improbabilidade de o ser é muito elevada — e nem ele, nem nós temos qualquer razão para pensar que é um gênio. Pode ser apenas um amador, a leste do que se faz pelo mundo fora, que escreve coisas originais só porque estão eivadas de erros e portanto são coisas que ninguém mais escreve. Mas nada disto me ocorria nos meus 20 anos — era o poder do mito a interromper-me o pensamento.