domingo, 21 de dezembro de 2014

RELINCHOS DOS QUADRÚPEDES- Chile: reformas de Bachelet colocam em risco modelo econômico vitorioso

Presidente planeja mudanças profundas na educação às custas da credibilidade que chilenos levaram décadas para construir.
Leia aqui...http://veja.abril.com.br/noticia/economia/reformas-de-bachelet-colocam-em-risco-modelo-vitorioso-chileno

ORDEM LIVRE-O desprezo pela realidade

Grandes Esperanças e Dúvidas Emergentes
De acordo com Hegel, a Coruja de Minerva estende suas asas somente ao anoitecer. Os estágios mais avançados na carreira das pessoas deveriam propiciar um melhor discernimento das tendências e forças que atuam na sociedade. As preocupações anteriores com estudos mais específicos podem ser úteis para uma posterior reflexão sobre temas mais abrangentes, mas consomem tempo e atenção.
Como muitos dos meus contemporâneos, inclusive graduandos e jovens acadêmicos, no início de minha carreira eu esperava muito da economia, tanto por interesse intelectual, quanto por interesse em políticas públicas. Os expressivos avanços do tema e a grande inteligência de meus colegas da academia pareciam corresponder a essas esperanças. No entanto, a partir do início dos anos 1950, as atividades dos economistas cresciam paralelamente às minhas dúvidas e reservas.
Eu acabei compreendendo que os economistas sistematicamente exageram o impacto de suas idéias. Em uma passagem freqüentemente citada de sua Teoria Geral, Keynes insiste que, em longo prazo, o mundo seria governado por poucas idéias além das dos economistas e filósofos políticos. Se isso fosse verdade, o mundo já teria usufruído dos benefícios do livre comércio por mais de 100 anos. Além de ser obviamente insustentável, a opinião de Keynes também é ingenuamente paroquial, ao atribuir influência apenas aos economistas e filósofos políticos. Ele não considera o impacto dos fundadores e líderes de movimentos religiosos, como Buda, Cristo e Maomé nem de comandantes militares como Alexandre, Julio César e Napoleão.
As idéias dos economistas afetam, sem dúvida, o quadro geral e, assim como outras idéias, podem ser importantes. Como lembra Milton Friedman, os economistas podem sugerir quais são as opções possíveis aos políticos. Mas não devem se iludir, exagerando sua influência, seja em curto ou longo prazo.
Bem antes de me aposentar, eu ficava cada dia mais perplexo por conta do que acontecia nas ciências econômicas. Eu notava, em particular, um completo desprezo à realidade evidente, em que incluo a negligência de proposições básicas da disciplina. Avanços impressionantes coexistiam com retrocessos alarmantes.
Transgressões Inesperadas
Foi nos anos 1950 que eu notei pela primeira vez o desprezo à realidade nas ciências econômicas. Ele era visível em dois temas: o problema do dólar e o círculo vicioso da pobreza.
Por mais de uma década, entre os anos de 1940 e 1950, economistas escreveram sobre uma persistente e inescapável falta de dólar em nível mundial. Algumas dessas contribuições e previsões eram extremamente sofisticadas. Na verdade, ignorava-se a taxa de câmbio, isto é, o preço do dólar, bem como outros fatores determinantes para o preço, como as taxas de juros e políticas financeiras. Esta negligência em relação aos princípios básicos logo encontraria seu merecido destino. No fim dos anos 1950, a falta de dólares terminou e foi substituída por um excesso de oferta. Muitos dos principais economistas, não somente amadores e novatos, tinham ignorado que a demanda e a oferta de dólares dependiam do preço. Essa discussão em particular se enfraqueceu quando da normalização da oferta de dólares. Mas a mesma forma de abordagem logo voltou à tona na idéia, ainda viva, de que países pobres encaram dificuldades inescapáveis na balança de pagamentos[1].
A teoria da duradoura falta de dólares não foi um exemplo de tentativa de construção de estimulantes, e potencialmente frutíferos, teoremas ou instrumentos analíticos. Como também não foram as análises ostensivamente elaboradas, baseadas em premissas novelescas, sobre expectativas ou processos dinâmicos. Pelo contrário, o episódio não foi nada mais que uma séria transgressão.
Agora examino o círculo vicioso da pobreza. De acordo com essa idéia, a estagnação e a pobreza seriam, necessariamente, perpétuos: pessoas em geral e países e sociedades pobres, em particular, estariam amarrados em sua própria pobreza e não poderiam gerar poupança suficiente para escapar dessa armadilha. Essa idéia se tornou a base da discussão no mainstream da economia do desenvolvimento. Foi esse o fator que uniu os entusiastas da ajuda externa durante os anos de 1950. Essa idéia ainda é freqüentemente invocada, apesar de seu conflito óbvio com a realidade. Através da história, inúmeros indivíduos, famílias, grupos, sociedades e países, no primeiro ou no terceiro mundo, passaram da pobreza à prosperidade sem doações estrangeiras. Todos os países desenvolvidos começaram sua história como subdesenvolvidos. Se a idéia do círculo vicioso fosse válida, a humanidade, na melhor das hipóteses, estaria ainda na Idade da Pedra.
Esses episódios também me alertaram para o papel dos modismos intelectuais e políticos em boa parte da ciência econômica. Profissionais proeminentes e ilustres parecem achar difícil resistir aos caprichos e excentricidades dos ventos da moda, mesmo sendo estes ventos efêmeros ou que possam soprá-los para fora de seus caminhos.
Reli recentemente parte da literatura sobre esses dois assuntos com uma mistura de incredulidade, embaraço e diversão. Era como se a rainha das ciências sociais tivesse sido destronada por seu séquito.
Os dois exemplos que escolhi representam amostras inequívocas de retrocesso intelectual possibilitado pelo desprezo à realidade. Nos período entreguerras, o papel da taxa de câmbio na oferta e na demanda de moedas era rotineiramente reconhecido. E antes da Segunda Guerra Mundial ninguém sugeriria que países pobres estavam destinados à estagnação. Historiadores, antropólogos, administradores e economistas discutiam, então, em detalhes, os impactos e implicações de mudanças rápidas em países menos desenvolvidos.
Junto a esses exemplos de evidente retrocesso, também aconteciam grandes avanços nas ciências econômicas, como avanços na teoria do mercado internacional e na teoria do câmbio externo, ambas com fortes ligações com os lapsos.
Havia dissidentes de opiniões muito bem articuladas, sobretudo na questão do dólar, mas também na questão do círculo vicioso. Alguns dos dissidentes possuíam credenciais acadêmicas respeitáveis, mas, apesar disso, suas idéias não tiveram muito impacto no círculo acadêmico e deixaram de atingir o grande público. Isso porque na cena contemporânea, e também na academia, uma voz raramente tem algum efeito sem um eco. Dissidentes encontram dificuldades em defender seus pontos de vista, a não ser que a própria dissidência entre na moda. Os expoentes do problema do dólar e especialmente do círculo vicioso da pobreza, tiveram apoio e foram encorajados por grupos articulados na academia e na mídia. Não havia lugar para dissidência.
Esses dois episódios me prepararam para questionar a opinião dos outros, mesmo quando fosse endossada pelos famosos e renomados. Desde 1950 temos tido uma overdose de exemplos nos quais a realidade é simplesmente ignorada ou varrida para debaixo do tapete.
Deixem-me dar outro exemplo. Desde a Segunda Guerra Mundial, muitos acadêmicos, bem como clérigos, figuras públicas, políticos e porta-vozes de organizações internacionais têm argumentado que o contato comercial entre os países do Primeiro Mundo e os países em desenvolvimento gerou dano econômico aos povos do Terceiro-Mundo. Às vezes se diz que a pobreza do Terceiro-Mundo é resultado da negligência do Primeiro Mundo; porém, com mais freqüência, ouvimos que a pobreza é resultado da opressão, da exploração e da manipulação do comércio internacional por parte dos países desenvolvidos. Tão famosas opiniões não estão confinadas aos círculos Marxistas-Leninistas. (Deveríamos, na verdade, dizer Leninistas, já que Marx foi, por vezes, até poético ao falar dos avanços do capitalismo na transformação de sociedades atrasadas.) Ainda assim, como é visível em todas as partes do Terceiro Mundo, as sociedades mais pobres e mais atrasadas são aquelas que possuem menos contato comercial com os países desenvolvidos, e as mais bem sucedidos são aquelas onde o contato com o Primeiro Mundo é mais longo e diversificado, inclusive com os grandes bichos-papões: as multinacionais. Em todo o Terceiro-Mundo, o nível de sucesso econômico diminui a medida em que nos movemos, de regiões com mais contato com o Primeiro Mundo à regiões mais afastadas, dos aborígenes e dos pigmeus, na outra ponta da sociedade.
Aqueles interessados na sobrevivência das idéias iriam gostar de saber que as noções do círculo vicioso da pobreza e dos malignos efeitos econômicos do contato com o Primeiro Mundo ainda estão vivas, e passando muito bem.
Avanços nas Ciências Econômicas
Durante o período em que me mantive atividade nas ciências econômicas pude observar avanços impressionantes, mas também lapsos que nos levaram a retrocessos grosseiros, alguns dos quais acabei de apontar.
O que se espera de uma disciplina acadêmica é que avance no conhecimento, especialmente quando esta experimenta um grande aumento em seus recursos e oportunidades. Uma lista de avanços significantes, mesmo que incompleta, deverá necessariamente mencionar as várias contribuições à teoria dos preços, inclusive o reconhecimento dos custos das transações; à função e a natureza das firmas, inclusive a economia da integração vertical; ao conceito e as implicações do custo social; à teoria do comércio internacional e do câmbio externo; à análise da difusão e uso do conhecimento; à economia dos direitos de propriedade e à economia dos processos políticos e burocráticos. Alguns desses avanços foram bem mais úteis a profissionais de outros campos, além dos economistas, como historiadores, antropólogos, cientistas políticos e demógrafos.
Tais avanços satisfizeram minhas expectativas em meus primeiros anos como acadêmico, bem como a capacidade intelectual e a competência técnica de tantos profissionais. Meus colegas acadêmicos dos primeiros anos não eram menos brilhantes e competentes do que tinham sido a maioria dos meus professores na década anterior. Ee agora estou perplexo, é porque encontrei uma pletora de casos de retrocesso derivados do desprezo à realidade.
Esses retrocessos são de uma ordem bem diferente do que ocorreu nas ciências econômicas anteriormente. Nos escritos do século XIX e do início do século XX, os economistas careciam quase sempre de sofisticação, eram quase ingênuos. Porém, não se encontravam em tamanho conflito com a realidade como é o caso da maioria da literatura recente.
O Imperador Invertido
A matematização do tema talvez tenha sido a tendência mais visível no campo das ciências econômicas, desde o início da minha carreira. Nos anos de 1930, qualquer pessoa poderia ler revistas de estudos econômicos, com as excessões de Econometrica e Review of Economic Studies. Hoje, qualquer um é visto como não qualificado se não conhece a matemática e sua linguagem. Como a economia lida em grande parte com relações funcionais e processos dinâmicos, algum entendimento de matemática é, sem dúvida, de grande valor em muitos contextos - da compreensão apropriada do conceito da elasticidade à apreciação dos efeitos de feedback. Também é, quase sempre, conveniente expressar em forma matemática suposições e conclusões derivadas do raciocínio e da evidência empírica. O procedimento apropriado, no entanto, é raciocinar para a matemática e não a partir da matemática. Porém, como argumentam profissionais altamente qualificados, as forumlações e métodos matemáticos têm percorrido todos os cantos das ciências econômicas sem que haja uma discussão apropriada sobre suas limitações. Algumas dessas limitações foram apontadas por grandes pesquisadores com credenciais matemáticas, como Marshall, Pigou, Keynes, Leontief e Stigler, e suas observações têm sido certeiras, específicas e pertinentes. As feitas por Norbert Wiener, uma das grandes figuras da matemática moderna, foram particularmente vigorosas. Em um dos meus livros, em determinado ponto, eu cito o seu God and Golen, Inc., publicado postumamente em 1964[2]. Apesar disso, tais críticas causaram pouco impacto. Lendo as publicações científicas, temos a impressão de que as ciências econômicas se transformaram em nada mais que matemática aplicada, em algo que se pode perseguir sem se importar muito com os fenômenos da vida real.
Outra tendência que visivelmente cresceu desde que passei a estudar o assunto foi o uso de métodos econométricos. Muitos trabalhos úteis foram feitos a partir desse método, mas, gente bem mais qualificada do que minha pessoa demonstraram seu freqüente abuso, sua má aplicação e a má interpretação de seus resultados.
Aqui, desejo focar minha atenção somente em alguns meios pelos quais a economia matemática e o uso da econometria contribuíram para o desprezo ou a negligência da realidade evidente. Seu uso tem levado a uma concentração injustificável das variáveis manejáveis por uma análise formal. Como resultado, negligenciamos influências, as quais, mesmo quando altamente pertinentes, não se conciliam facilmente com tal tratamento. Da mesma forma, temos encorajado uma confusão entre o significante, de um lado, e o quantificável (na maioria dos casos, apenas superficialmente quantificável) de outro. Tal situação tem contribuído para a negligência das condições anteriores e dos processos históricos, mesmo quando estes são indispensáveis para um melhor entendimento. Por exemplo, as diferenças em relação à renda e a riqueza, no campo doméstico ou internacional, não podem ser proveitosamente consideradas se não nos atentarmos para seus antecedentes.
A crença em uma aplicabilidade quase universal da verificação de testes através de métodos econométricos leva a afirmações equivocadas em relação a eles. O que também abafa outras formas de raciocínio e medição. O que aconteceu com o tradicional método da observação direta, reflexão, procura por conexões, tentativa de se chegar à conclusões e o uso destas para voltar à observação e a proposições da disciplina, bem como à descobertas de disciplinas afins? Tais procedimentos não são menos informativos que a análise quantitativa. Com a abordagem tradicional, por exemplo, o economista tinha muito mais chances de perceber o vão entre os conceitos teóricos e as informações disponíveis.
A aceitação dos métodos quantitativos como o procedimento mais respeitado permitiu o florescimento de estudos econométricos inapropriados e incompetentes, inclusive aqueles baseados em dados seriamente defeituosos. Por outro lado, estudos baseados em observação direta ou no exame detalhado de momentos históricos podem ser desmentidos, classificados como anedóticos, não acadêmicos ou não científicos, mesmo que sejam informativos. Freqüentemente, suas descobertas são classificadas como nada mais que empiricismo casual ou expressões de opinião. Além disso, mesmo aqueles que conseguem passar como um tema de alto nível podem ser diminuídos, já que a insistência no óbvio pode fazer um tema parecer trivial e, assim, desencorajar a discussão dele. Em resumo, a preocupação com os métodos quantitativos e matemáticos trouxe consigo uma lamentável atrofia da observação e da simples reflexão.
Acabo de perguntar retoricamente o que teria acontecido nas ciências econômicas com a seqüência tradicional de observação, reflexão, dedução, tentativa de conclusão, referência a proposições anteriores e busca por outros campos de estudo. Sendo retórica, a pergunta pode ser respondida prontamente. Esse tipo de raciocínio e seu vocabulário têm se contraído em todos os campos da disciplina e virtualmente desapareceram em grande parte dela. E o método tradicional tem perdido espaço, não porque demonstrou ser menos informativo que os métodos que o substituíram, mas por ter sido taxado como menos rigoroso que seus sucessores mais modernos, principalmente por ter menos semelhanças com os procedimentos das ciências naturais, especialmente os da física.
Eu acredito que no curso dessa mudança de abordagem, diferenças pertinentes entre o estudo da natureza, especialmente da física, e da economia, não foram suficientemente reconhecidas. Algumas diferenças podem ser apenas de grau, outras são suficientemente claras, por marcarem que as duas disciplinas são de tipos diferentes.
Os cientistas naturais buscam estabelecer uniformidades sobre fenômenos e relacionamentos que aão substancialmente invariáveis. Alguns dos fenômenos e relacionamentos estudados pelos economistas também são, razoavelmente, invariáveis. Outros não são tão constantes, ou, em todo caso, seus componentes constantes estão embutidas em tantos outras que é quase sempre difícil discernirmos a presença e a extensão das uniformidades. Novamente, conceitos e distinções freqüentemente usados por economistas – ou mesmo considerados básicas – são imprecisos, arbitrários, mutáveis e seus equivalentes na vida real são de difícil comparação: atividades primária, secundária e terciária, atividades industriais ou serviços; desemprego voluntário ou involuntário; países desenvolvidos ou subdesenvolvidos; bens intermediários e de consumo (uma distinção importante para a definição da renda); e muitas outras. Essa grande confusão de conceitos e categorias nas ciências econômicas limita o uso informativo dos métodos matemáticos: na matemática, os conceitos e relações, embora completamente abstratos, são mais precisos e consistentes.
Por essas várias razões, os métodos usados para compreender as uniformidades, sua extensão e limitação, diferem consideravelmente entre as ciências naturais, de um lado – especialmente aquelas como a física e a química, que foram ‘matematizadas’ com sucesso – e as ciências sociais, inclusive as ciências econômicas, de outro lado[3]. Algumas partes da economia, principalmente o desenvolvimento econômico, lidam com acontecimentos e ocorrências de estudo informativo, ao qual precisam incorporar práticas do mundo acadêmico, como a confiança em fontes primárias, a observação cuidadosa, a reflexão, a busca por relações, entre outras.
Esses comentários sobre as diferenças entre o estudo da natureza e o estudo da sociedade não visam fortalecer a visão que nas ciências econômicas, ou nos estudos sociais em geral, o pensamento objetivo é impossível, o que é um assunto completamente diferente. Como eu já escrevi sobre esse tema em várias publicações, eu não vou desenvolvê-lo aqui, simplesmente direi que o raciocínio objetivo é tão possível nas ciências econômicas quanto o é nas ciências naturais[4].
Os métodos matemáticos quase sempre provêem uma fachada, uma capa que cobre ou esconde o formalismo vazio. Eles podem camuflar o desrespeito a proposições básicas ou simples evidências em modelos que têm por objetivo servir de base para uma ação política. Estatísticas, jargões técnicos e sofisticadas técnicas econométricas também servem como uma capa protetora. Porém, o uso da matemática é particularmente eficaz graças à barreira que tal linguagem provê. O que vemos é uma inversão da famosa história de Hans Andersen, das roupas novas do Imperador. Nesse caso, as roupas novas são muitas vezes de alta costura, mas, quase sempre, não há nenhum Imperador dentro delas.
Os feitos da economia matemática e das técnicas econométricas foram garantidos a preços altos. Tal preço não se reflete adequadamente nos custos de recursos diretos. No livro ao qual me referi, Wiener insiste que a adoção de formulações matemáticas e métodos econométricos envolve uma imitação mal compreendida das ciências naturais; e que isso também possibilitou aos economistas a remoção, tanto deles quanto de seu público, da percepção da realidade.
Um Panorama mais Amplo
Não causa surpresa que a indiferença em relação à realidade não esteja confinada às ciências econômicas, mas que também se estenda a outros campos. O divórcio com a realidade é particularmente desconcertante à vista da alfabetização quase universal nos países desenvolvidos e nos avanços na transmissão da informação. Desconcerta também à vista dos profundos avanços na ciência e na tecnologia. Esses últimos temas dependem do raciocínio o qual, embora necessariamente abstrato, não pode se voltar contra a realidade.
O desprezo à realidade engloba a recusa em se aceitar as simples evidências captadas pelos sentidos, a negligência do raciocínio simples e a falta de habilidade em se reconhecer inconsistências. O que está por trás disso tudo?
Tentativas de explicar as opiniões das pessoas sempre envolvem conjeturas. Argumentos podem ser estimados conclusivamente, baseados na lógica ou em evidências. Mas sobre a razão pela qual pessoas os aceitam ou discutem não podemos ter tanta certeza. Em certos contextos, pode-se discernir algumas influências dominantes. Muitas dessas influências demonstram, e até mesmo promovem, um desprezo à realidade; como em tantas situações sociais, o processo e seu resultado estão entrelaçados, e são até inseparáveis.
Alguns argumentam que não há razões para a perplexidade em relação à condutas e opiniões que se mostrem em evidente conflito com a realidade, desde que estas reflitam nada mais que o interesse próprio de quem as manifeste. Nesse plano de coisas aparentemente paradoxais e anômalas, idéias e modos de conduta emergem da operação especial de grupos de interesse ou coalizões, além de políticos, servidores públicos, acadêmicos e setores do eleitorado. Esse fator pode ser importante.
Ainda assim, a operação de grupos de interesses especiais não pode explicar por si algumas anomalias visíveis. Assim como não consegue explicar a hostilidade das grandes organizações internacionais contra o ocidente, nem a passividade na conduta do países ocidentais para com tais organizações. Algumas delas já existiam em forma embrionária antes da Segunda Guerra Mundial: a Liga das Nações em Genebra e o Instituto Internacional de Agricultura foram precursores das Nações Unidas e da FAO. Porém, suas instâncias eram bem diferentes das de hoje. Além disso, o Primeiro Mundo apóia em excesso e trata com deferências governantes africanos que persistentemente os difamam. Tal postura seria impensável nos anos 1930. Esses governantes não tinham votos nos países desenvolvidos, nem eram promovidos pela mídia.
Amputação da Perspectiva de Tempo
A confusão entre o avanço do conhecimento e a promoção de políticas, sem dúvida, contribui para a indiferença em relação à realidade. Essa influência é certamente importante nas ciências econômicas. A suspeita de que tal situação seja uma realidade hoje se baseia em uma profusão de transgressões contra a realidade em alguns campos da disciplina que são próximos da prática política, como no desenvolvimento econômico, no planejamento do tipo soviético, na economia do trabalho, na economia da pobreza e nas falhas do mercado. Alguns profissionais reconhecem a busca de objetivos políticos; eles também encorajam a idéia de que em qualquer campo de estudo social, o raciocínio objetivo é impossível. Eu devo mencionar uma experiência que tive. Em várias ocasiões, quando minhas palestras criticavam a noção do ciclo vicioso da pobreza, membros da platéia diziam que, seja qual fosse a validade de minhas críticas, tal noção não tinha o mínimo valor, quando questionava as ajudas internacionais.
Muito do discurso contemporâneo é também afetado pela ignorância do passado e pelo menosprezo da dimensão do tempo nos fenômenos sociais e culturais. Sir Ernst Gombrich chamou esse fenômeno de amputação da dimensão do tempo da nossa cultura. Esse fenômeno viciou o discurso atual de grande parte das ciências econômicas, inclusive o das principais correntes da economia do desenvolvimento e da discussão em relação às diferenças de renda domésticas e globais. Nesses outros campos das ciências econômicas, não podemos entender uma situação que observamos a não ser que saibamos como esta surgiu. Por exemplo, os baixos rendimentos, quando comparados com os países desenvolvidos, de vários países em desenvolvimento com substanciais exportações de produtos agrícolas têm sido citados como exemplos que comprovariam a alegação que contatos externos e a agricultura em escala para exportação não são eficientes para o progresso econômico, ou, talvez, até o inibem. Na verdade, muitos dos países que são grandes exportadores de produtos agrícolas progrediram bastante no último século. Mas, como podemos esperar que sociedades que no fim do século XIX eram extremamente atrasadas, ou mesmo bárbaras, alcançassem em algumas décadas o nível de sociedades que possuem muitos séculos, talvez milênios, de crescimento econômico? Outro exemplo nos é fornecido pelas mudanças na distribuição de renda dentro de um país. Um grau mais alto de desigualdade pode ser resultado de, digamos, uma grande redução na mortalidade infantil entre os pobres (o que representaria uma melhora de suas condições) ou da imposição de um regime de impostos regressivos.
Os fatores por trás da debilitadora falta de perspectiva de tempo e da negligência de experiências anteriores pertinentes incluem a velocidade das mudanças sociais e técnicas e a multiplicidade de mensagens alcançando as pessoas, quase sempre, sobre acontecimentos distantes. Mudanças sociais e técnicas muito rápidas podem enervar e mesmo atordoar algumas pessoas. Há apenas uma quantidade limitada de mudanças que as pessoas absorvem como indivíduos, famílias ou sociedades. Ao interromper a observação prolongada, essas influências inibem tanto o pensamento contínuo, quanto o equilíbrio provido por experiências anteriores e a perspectiva de tempo.
Mais uma vez, qualquer inclinação em igualar os métodos das ciências naturais àqueles das ciências sociais conduz ao rebaixamento ou à negligência de seus processos antecedentes. Enquanto tais processos são em sua maioria irrelevantes para a química e a física, e totalmente irrelevantes para a matemática, eles são indispensáveis para a compreensão de um fenômeno social. A sinalização de feitos nas ciências naturais e a difusão dos resultados de suas aplicações encorajam o hábito de se pensar as ciências sociais baseando-se em analogias equivocadas entre as duas áreas de estudo.
Quaisquer que sejam os fatores por trás delas – e a lista proposta aqui é experimental e incompleta – a falta de conhecimento do passado e a negligência da perspectiva de tempo são evidentes em boa parte do discurso contemporâneo. A perda de memória resultante de tal processo também abriu caminho para a manipulação e a reinvenção da história.
A culpa coletiva
O sentimento de culpa, senão predominante, pelo menos bem difundido, entre as nações desenvolvidas é uma influência significativa por trás de algumas novas e confusas manifestações do desprezo contemporâneo à realidade ou mesmo de sua negação. Ele ajuda a entender algumas coisas, como a aceitação de idéias infundadas de que o Primeiro Mundo tem responsabilidade sobre o atraso do Terceiro Mundo e que causa efeitos danosos nos contatos comerciais entre os dois pólos; a conduta frouxa dos países do Primeiro Mundo em relação aos déspotas africanos com poderes externos e recursos insignificantes, e a prontidão em ajudá-los, apesar da hostilidade de tais governantes em relação aos países desenvolvidos e de suas políticas internas muitas vezes inumanas; e também a prontidão do Primeiro Mundo em financiar organizações internacionais que servem de fóruns de constrangimento e objeção aos países desenvolvidos. O sentimento de culpa do Primeiro Mundo se reflete, por exemplo, na hostilidade em relação à África do Sul. Quaisquer que sejam as opiniões que tenhamos sobre seus governantes, estes, certamente, não lidam com seus problemas de uma forma mais dura do que os governantes negros. Como todos sabem, muitas pessoas da África negra estão ansiosas para imigrar para a África do Sul. Os governantes da África do Sul têm o foco em si por uma vergonha especial, porque são brancos. Se tivessem qualquer outra cor senão a branca, sua conduta geraria pouco ou nenhum comentário nos países ricos.
Da mesma forma, a prontidão em dar auxílio a governantes asiáticos e africanos sem questionar suas políticas reflete a mesma influência. Pessoas infestadas de culpa esperam aliviar tal sentimento simplesmente dando dinheiro a outras pessoas (principalmente o dinheiro dos pagadores de imposto) sem perguntarem sobre os resultados: o que lhes importa é doar dinheiro, não os resultados desse processo.
Embora alguns elementos do sentimento de culpa sejam parte da tradição Judaico-Cristã, a culpa, hoje, é uma novidade. Na verdade, o Primeiro Mundo nunca teve muito dela, nem nunca se sentiu mal por isso. Provavelmente, uma das razões resida no fracasso da prosperidade material em trazer o contentamento e felicidade que as pessoas tanto esperavam. A culpa contribuiu para a confusão entre os méritos da caridade em ajudar os mais necessitados e a noção de que a desigualdade de renda entre as pessoas é um resultado censurável da opressão e da exploração. Essas diferenças são comumente citadas como desigualdade ou mesmo injustiça. Tal confusão tem sido encorajada pela ânsia de religiosos de se verem não como líderes espirituais, mas como agentes do bem estar social ou como ativistas políticos.
Além disso, muitos formadores de opinião influentes, inclusive professores, clérigos e pessoas da mídia deixaram de gostar da sociedade ocidental ou mesmo passaram a odiá-la. São capazes tanto de abrigar quanto de provocar os sentimentos de culpa.
Uma das principais causas do aparecimento da culpa coletiva contemporânea seria a erosão da responsabilidade pessoal sob o impacto do determinismo social. A participação na culpa coletiva tomou o lugar da responsabilidade individual. Forças externas levam a culpa tanto pela má conduta de alguns indivíduos, quanto pela má sorte de outros. Então, se somos todos culpados, individualmente, ninguém é.
O sentimento de culpa coletiva nos países desenvolvidos promoveu a indiferença em relação à realidade, a perda de equilíbrio e de segurança. A perda de continuidade e a amputação da perspectiva de tempo reforçam os efeitos da culpa coletiva. Kenneth Clark escreveu que ele não tinha certeza sobre quais eram todos os ingredientes necessários para o processo de civilização, mas que, certamente, segurança e continuidade eram indispensáveis. Ambos parecem ter se desgastado seriamente nas últimas décadas.
O Uso Impróprio da Língua
Nas últimas décadas, vários observadores atentos fizeram comentários acerca do uso impróprio da linguagem, tanto no debate público, quanto na educação. O desprezo à realidade promove a erosão da língua, que promove um desprezo ainda maior em relação à realidade. A língua é para uma cultura ou uma sociedade o mesmo que o dinheiro é para a economia; a erosão de um, leva a desintegração de outro. O uso impróprio da língua engloba a interpretação imprópria de conceitos como socialismo, igualdade, crescimento, monopólio e muitos outros. Às vezes, o uso impróprio da língua é facilmente perceptível. Se um país é oficialmente designado como uma República Democrática ou uma República Popular, sabemos que este país é um daqueles em que seus cidadãos são impedidos de exercer alguma participação nos rumos seu governo. Outro tipo de exemplo é o tratamento de países e de outras coletividades como se fossem simples entidades de tomada de decisões ou entidades nas quais todas as pessoas possuem os mesmos interesses, experiências e condições. O agrupamento de dois terços da humanidade sob o rótulo de Terceiro Mundo é um exemplo evidente disso.
O crescimento da especialização, inclusive de longos períodos de treinamento especializado, inibe o exercício de faculdades críticas para além de um campo estreito e engendra o desprezo à realidade na maioria do discurso público e acadêmico. Esse desprezo é também facilitado por uma compreensível e racional relutância das pessoas em exercitar suas faculdades críticas em assuntos que lhes afetam, mas sobre os quais podem fazer muito pouco ou mesmo nada.
O enorme desenvolvimento da informação nas últimas décadas pode ter sido definitivo para a atrofia generalizada da reflexão. O povo, inclusive a academia, tem de absorver tanta informação e metodologia que quase sempre fica sem tempo, inclinação ou capacidade disponível para a reflexão e observação, ou mesmo para uma simples avaliação a respeito da informação que os alcança.
O declínio da crença religiosa tradicional pode também ter conduzido ao descaso em relação à realidade. Essa explicação pode ser sedutora tanto aos crentes quanto aos céticos. A crença religiosa tradicional fornece uma visão de mundo unificada e coerente e o desgaste dessa visão debilita toda uma rede de raciocínio. Por outro lado, podemos discutir se o declínio da crença religiosa dilui a credulidade na humanidade em áreas mais extensas e diversas. A velocidade do declínio reforça tais efeitos.
Nessa parte do texto, e nos três anteriores, eu apontei algumas das forças que exercem alguma influência por trás do desprezo contemporâneo à realidade. Eu devo recordar ao leitor, entretanto, que tais indicações são apenas sugestões e estas são necessariamente especulativas. Isso é verdade especialmente em relação às reflexões sobre as várias e complexas forças por trás desse Zeitgeist.
A Necessidade de se Reafirmar o Óbvio
O que aconteceu com o ocidente para nos fazer fugir quando enfrentamos a verdade e a rejeitar algumas evidências captadas por nossos sentidos? O que nos fez perder nosso equilíbrio e amor próprio? É como se no meio de uma prosperidade sem precedentes, forças inexplicavelmente malignas tivessem minado nossas faculdades mentais e morais.
A ampla e desconcertante indiferença à realidade tem enorme importância. Entre outros resultados, ela tem minado os padrões de parte das ciências econômicas, em outros estudos sociais e em áreas mais amplas de discursos ostensivamente sérios. É o retrocesso ao barbarismo. Ortega y Gasset escreveu que a ausência de padrões é a essência do barbarismo. É por essa condição prevalecer em partes da ciência econômica junto com seus grandes feitos das últimas décadas que estou agora tão desnorteado pelo presente estado dessa disciplina.
A tendência em direção ao desprezo à realidade simples minou o equilíbrio, a autoconfiança e a posição dos países desenvolvidos na arena internacional. Ela também serviu de base para a aceitação acrítica de idéias e políticas malignas ao Primeiro Mundo - mas ainda mais danosas ao povo do Terceiro Mundo. Porém, isso não é uma surpresa. Políticas e sociedades convencidas a desprezar a realidade serão mais vulneráveis à adversidade e às ameaças internas e externas.
Tais preocupações destacam a perspicácia de duas observações, feitas por dois autores bem distantes no tempo e bem diferentes entre si. Suas observações se encaixam perfeitamente na conclusão desse ensaio. Pascal escreveu no século XVII: “Vamos nos concentrar em tentar pensar claramente: aqui repousa o princípio da moral”. E, em nosso tempo, George Orwell escreveu: “Nós afundamos tanto que repetir do óbvio se tornou o primeiro dever do homem inteligente”.

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