O fim da miséria umana-hurbana*


O cabelo esvoaçando à brisa fresca do Corcovado, o Cristo de pedra chorava. Um milagre?
Uma andorinha, só, parou.
-Eu estava por aí - disse ela pro Cristo -, mas, como uma andorinha só não faz verão, vou indo pro Norte. Alguma coisa que eu possa fazer pra interromper teu pranto?
-Daqui do alto eu vejo tudo -disse o Cristo. -Já não há mais o meu Rio. O mar batendo quase aqui nos meus pés, as moças passando lá embaixo sem a bunda de fora, os pobres conhecendo o seu lugar -como era verde o meu vale. Mas eu ainda gostaria de fazer alguma coisa pra ajudar pelo menos um carioca. Está vendo lá embaixo aquele imbecilzinho? Coitado! Acabou a pilha do super-rádio dele e ele carrega aquilo preso na cabeça, sem poder chatear os outros com a sua cacofonia. Arranca um dos meus olhos, pintassilgo, e dá a ele, pra que ele troque por uma pilha nova.
A andorinha não entendeu bem, sobretudo ser chamada de pintassilgo, mas arrancou um olho do Cristo com o bico, voou até lá embaixo e jogou o olho em cima do surfistão.
-Olhaí, ô reles, um olho do Cristo. Vale duas pilhas: troca por um metal pesado a nível de chateação coletiva -e voou de novo pro Cristo: -Pronto, chefe!
-Que magnânimo esse teu volteio, bem-te-vi. Assim ele poderá continuar impondo a sua preferência estúpida a maior número de passivos. Mais fascista do que isso, só o Trio Elétrico. Mas, estou vendo agora... olha lá, uma jovem ocióloga...
-Ocióloga? -disse a andorinha.
-Ocióloga! Coitada, não pode terminar sua tese sobre as determinantes das determinadas no aprofundamento das superficialidades urbanas, e, apesar dos seus vinte peagadês, vai ser obrigada a trabalhar na caixa do Supermercado. Cambaxirra, pega o outro olho meu e...
A andorinha obedeceu, arrancou o outro olho do Cristo e jogou em cima da jovem grávida de saber:
-Torna esse olho do Cristo e troca por vinte bolsas de estudo e uma da Fiorucci.
E enquanto a jovem ocióloga interrogava o dono do rádio pra saber até onde aquilo era uma substituição do orgasmo masculino, e o dono do rádio mostrava que ela estava enganada porque o rádio era apenas um símbolo fálico em freqüência modulada, a andorinha voltava ao Cristo pra se despedir. Encontrou-o com um sorriso beatífico e um brilho estranho no buraco dos olhos, por onde se via o céu:
-Obrigado, colibri, agora já não vejo mais nenhum sofrimento na cidade.
MORAL: O que está aí dá pra comover até um cristo de pedra.
(*) (Baseado numa idéia de Oscar Wilde. Acho.)