domingo, 11 de janeiro de 2015

VIDA EM CUBA- Havana. Como me dóis!

YOANI SÁNCHEZ, La Habana | 16/11/2014
Derrumbe en La Habana (Foto Silvia Corbelle)


Ser “habanero” não é ter nascido numa cidade, é levar essa região nas costas e não poder se desligar dela. Na primeira vez em que me dei conta de que pertencia a esta cidade eu tinha sete anos. Estava num pequeno povoado de Villa Clara, tratando de alcançar umas goiabas num galho quando um monte de crianças daquele lugar rodeou a mim e a minha irmã. “São de Havana! São de La Habana!” berravam. Nesse instante não entendíamos tanto alvoroço, porém com o tempo nos demos conta que nos havia tocado um triste privilégio: haver nascido nesta urbe em declínio, nesta cidade cujo maior atrativo é o que pôde ser e não o que é.
Sou totalmente urbana, citadina. Criei-me num local do bairro Cayo Hueso onde as árvores mais próximas ficavam a mais de quinhentos metros. Sinto-me filha do asfalto, do odor de querosene, dos varais que gotejam nas varandas e das tubulações de alvenaria que transbordam de vez em quando. Esta nunca foi uma cidade fácil. Nem sequer nos postais para turistas com suas cores retocadas se pode ver uma Havana cômoda e que possa ser resumida.
Às vezes já não quero caminhar por ela, porque me dói. Vou subindo pela Belascoaín e as minhas costas o mar fica com essa brisa que conheço tão bem. Chego à esquina da Rua Reina. Há uma igreja no estilo gótico que quando menina me dava a impressão que se perdia entre as nuvens. Ali vi pela primeira vez, quando tinha dezessete anos, uma árvore de Natal. Avanço pelos portais dando um pulo aqui e outro lá. Fios de água correm de algumas escadas e uma senhora tenta me vender uns doces de leite que têm a mesma cor da rua.
Havana é uma cidade de gritos e sussurros. Quem só ouve sua tagarelice nunca poderá escutar os seus cochichos.
Já vejo o sinal de trânsito de Galiano, porém o passo se torna mais lento porque há muita gente. Um policial dobra a esquina e alguns se escondem atrás das portas ou entram nas lojas como se fossem comprar algo. Quando o guarda se for voltarão a oferecer suas mercadorias num murmúrio. Porque Havana é uma cidade de gritos e sussurros. Quem só ouve sua tagarelice nunca poderá escutar os seus cochichos. O mais importante é sempre dito com um sinal, um gesto ou um simples movimento dos lábios que te adverte: “cuidado, aí vem, siga-me”. Uma linguagem desenvolvida em décadas de clandestinidade e ilegalidade.
A Rua Netuno está próxima. Ouvi um casal de anciãos dizer em frente a uma fachada: “Ha, não era aqui que ficava...?” Porém não consegui ouvir o final da frase. Melhor assim, porque Havana é uma sequencia de nostalgias e recordações. Quando alguém caminha é como se transitasse por um caminho de perdas. Onde desaba um edifício se mantém os escombros por dias ou por semanas. Depois fazem um estacionamento no buraco que restou ou colocam um quiosque metálico para vender sabonetes, miudezas e rum. Muito rum, porque esta é uma cidade que afoga seus sofrimentos em álcool.
 esta é uma cidade que afoga seus sofrimentos em álcool 
Chego ao malecón. Em menos de meia hora percorri a porção da cidade que, na minha infância, parecia conter toda a urbe. Porque fui uma “camponesa de Centro Havana”, dessas que pensam que depois da Rua Infanta começam “as zonas verdes”. Com o tempo compreendi que esta capital é muito grande para se conhecer. Também soube que a mesma sensação de dor é percebida por quem nasceu em Diez de Octubre, El Cerro, El Vedado ou Marianao. Dá no mesmo, Havana mostra suas feridas em qualquer bairro.
Toco o muro que nos separa do mar. É áspero e quente. Onde estarão aquelas criancinhas que na minha infância – e num povoado diminuto – olhavam-me assombradas porque eu era “habanera”? Desejarão carregar este fardo? Terão também terminado nesta urbe, vivendo entre suas latas de lixo e suas luzes? Dói-lhes tanto como a mim? Estou certa que sim, porque La Habana não é só essa localidade escrita em nosso documento de identidade. Esta cidade é uma cruz que se leva a todas as partes, uma região em que uma vez que nela viveste já não te abandona.
Tradução por Humberto Sisley

ORDEM LIVRE-Jim Powell- Biografia-Rabelais

O francês François Rabelais foi um dos maiores inspiradores do individualismo no mundo moderno. Nascido durante a Renascença, ele cresceu em meio à tumultuada Reforma e desafiou a intolerância tanto de católicos quanto de protestantes. Ele se expressou livremente, seguindo a ocupação de sua livre escolha, e fez amizades com radicais. Seu herói era Desiderius Erasmus, o grande defensor da tolerância nascido na Holanda.
Poucos outros escritores tiveram um espírito tão livre e bem-humorado como o que Rabelais demonstrou em seus contos satíricos sobre os gigantes Gargântua e Pantagruel. H. L. Mencken era um admirador de sua “estupenda erudição... furiosa impaciência com a desonestidade... e heróica inclinação pela loucura”. O acadêmico francês Jean Marie Goulemot observou que a obra de Rabelais “contém críticas às autoridades religiosas e políticas e admiração por formas sociais anti-autoritárias... Representa uma escolha, uma afirmação da liberdade do indivíduo para estabelecer seus próprios padrões, rejeitar idéias e crenças convencionais e constituir seu próprio conhecimento”. O historiador Will Durant descreveu Rabelais como “um autor único, inexaurível, cético, hilário, erudito e obsceno”, e o historiador Daniel J. Boorstin disse que “Rabelais fez de todas as instituições e questões de fé alvos de sua extravagante imaginação”.
Desafiar as instituições estabelecidas, especialmente as religiões, exigia coragem. Um dos amigos de Rabelais, o humanista francês Etienne Dolet, foi enforcado e queimado por publicar uma tradução de Platão, e o médico Miguel Serveto foi queimado vivo por heresia. Quando Rabelais começou a escrever, considerou prudente adotar um pseudônimo. De fato, sua obra foi denunciada por figuras poderosas do clero, e em mais de uma ocasião ele mudou-se secretamente para evitar as autoridades. Embora ele afirmasse que só queria fazer rir, o acadêmico J. M. Cohen observou que “era claro para todos que ele fazia críticas sérias às leis, aos costumes, e às instituições, e de nada adiantava ele descrever a si mesmo como um mero cômico que buscava apenas entreter. O entretenimento provavelmente veio sempre em primeiro lugar. No entanto, a crítica não apenas estava presente, como se tornava duas vezes mais devastadora devido à sua maestria verbal”.
Rabelais desafiou as instituições mais poderosas da Europa, incluindo a Igreja Católica; por exemplo, ridicularizando monges e reis e suas guerras intermináveis. E então ele começou a vislumbrar uma sociedade livre: “Homens livres, bem-nascidos, bem-criados e expostos a companhias honestas, têm naturalmente um instinto e um impulso que os impelem a ações virtuosas e os repelem dos vícios, chamados honra. Esses mesmos homens, quando reduzidos à vil submissão e repressão e assim mantidos, afastam-se da nobre disposição que anteriormente os inclinava à virtude”. Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, adaptou a frase de Rabelais sobre a liberdade para sua coleção de ensaios Do What You Will [“Faça o que quiser”] (1929), e o individualista americano Albert Jay Nock chamou a visão de Rabelais de “um fascinante retrato do sonho humanista da sociedade humana existindo em um estado de liberdade absoluta; em que a liberdade econômica forma a base sobre a qual a liberdade política e social ergue-se inevitavelmente”.
Apesar da polêmica que causava, Rabelais facilmente fez amizades com católicos influentes, e conviveu com o Papa. Nozick relata que “os relacionamentos de Rabelais parecem sempre ter sido marcadamente pessoais; ele tinha um dom para a amizade, um grande talento para fazer-se querido”. Alguns de seus amigos tornaram-se seus patronos e protetores. “De seu tamanho e forma nada se sabe”, escreveu o biógrafo D. B. Wyndham Lewis. “Imagino-o como tendo estatura acima da média, corado, robusto, vigoroso, e, em resumo, como ele se descreve no “Prólogo” do Quarto livro [de Gargântua e Pantagruel], ‘sadio, alegre, perfeitamente são e disposto a beber se você quiser.’ [“hale, and cheery, and sound as a Bell, and ready to drink if you will”]. Seu rosto é conhecido. Suas características marcantes são olhos escuros, astutos, vigilantes, curiosos e sardônicos; sobrancelhas finas que parecem sempre estar prestes a arquear-se em divertimento, zombaria, ou ira; nariz agressivo e boca firme, imperiosa e impaciente”. Lewis, um católico inglês, declarou: “Para cada litro de sabedoria ele destila dois de tolice, mas o que importa? Com a pena na mão, ele é incomparável. É único. É mágico. É magnífico. É um gigante... Uma vez que seu feitiço nos captura, é impossível escapar dele”.
O professor de literatura francesa Donald M. Frame escreveu que “não sabemos quando ele nasceu, e, consequentemente, desconhecemos sua idade em qualquer dado momento; também não sabemos nada a respeito de sua infância; da mulher ou das mulheres que deram à luz seus três filhos ilegítimos dos quais sabemos; de seu relacionamento com sua parceira ou parceiras sexuais; ou dos motivos que o levaram a adotar e depois abandonar a vida conventual”. Sabemos que ele era mais novo do que um de seus irmãos, e possivelmente mais novo do que seus dois irmãos, Antoine Jr. e Jamet, e sua irmã Françoise. François provavelmente nasceu em La Devinière, uma casa de campo feita de pedra a várias milhas de Chinon, ao sul do rio Loire. Seu pai era Antoine Rabelais, um influente advogado e proprietário de terras. É possível que Rabelais tenha frequentado uma escola em Seuilly, perto de seu local de nascimento, administrada por monges beneditinos famosos como educadores.
Ele cresceu em uma época de crescente interesse pelas línguas e literaturas grega e latina, e aprendeu a escrever em latim, assim como em grego. Graças à invenção da impressão com tipos móveis por Johannes Gutenberg por volta de 1450, obras que antes existiam apenas como raros manuscritos tornaram-se disponíveis como livros, e Rabelais parece ter sido um devorador de livros de todos os tipos. Por volta de 1520 ele decidiu tornar-se frade, talvez porque, como filho mais jovem, ele não tinha o direito de herdar a propriedade do pai e tornar-se um proprietário de terras, e não queria tornar-se aprendiz de um comerciante local. A Igreja Católica oferecia as carreiras mais promissoras e alguma estabilidade econômica, possuía vastas bibliotecas e proporcionava oportunidades de viajar. Rabelais ingressou na ordem fundada por São Francisco de Assis. Frades franciscanos vagavam pregando e mendigando, e não ensinavam. Conforme Albert Jay Nock e C. R. Wilson observaram, “por observar votos de pobreza, eles se tornavam muito sujos e maltrapilhos; eram notórios por isso até mesmo em uma época em que os padrões comuns de higiene já eram bastante baixos, e por isso tiveram um papel importante no refoço da tradicional associação entre santida de e miséria... A maioria deles era muito ignorante; com efeito, sua ignorância tornou-se proverbial... O trabalho da ordem não dava valor algum à educação”.
Mesmo assim, Rabelais foi viver no convento de Puy-Saint-Martin, em Fontenay-Le-Comte, Poitou, que pertencia a frades franciscanos, onde permaneceu por volta de quatro anos. Logo tornou-se amigo de Pierre Amy, o único outro frade que compartilhava seu amor pelo latim e pelo grego. Durante esse período, a insatisfação com a Igreja Católica se espalhava por todo o norte da Europa, entre pessoas que estavam cansadas de pagar altos impostos à Igreja, especialmente levando-se em conta a corrupção que havia entre o clero. Muitos príncipes encorajaram o que viria a ser a Reforma porque queriam ganhar independência política da Igreja, e tinham planos de ficar com todas as receitas para si mesmos. Reis católicos também ganharam poder às custas da Igreja; na França, Francisco I negociou a prerrogativa de nomear bispos sem interferência de Roma. Mas a Igreja contra-atacou: na França, a Contra-Reforma foi liderada pela faculdade de teologia da Universidade de Paris, conhecida como Sorbonne. O estudo da literatura grega foi banido por ser considerado subversivo. É indicativo da capacidade de Rabelais de fazer amigos que em 1524 ele tenha conseguido uma transferência da ordem franciscana para a beneditina. Assim, ele foi incorporado à abadia beneditina em Maillezais, presidida pelo influente bispo Geoffroy d'Estissac; o Papa Clemente VII teve de aprovar tal mudança pessoalmente. Aparentemente, d'Estissac estimava o conhecimento, a conversa e a companhia de Rabelais, que o acompanhou em viagens por toda a diocese.
Rabelais deixou esta posição em 1527, e parece ter passado algum tempo em Paris estudando medicina. Na época, isso não significava fazer exames clínicos, mas sim ler autores da antiguidade. Em setembro de 1530 ele se matriculou na faculdade de medicina da Universidade de Montpellier, e três meses depois recebeu o título de médico. Fez palestras sobre os médicos da Grécia antiga, de cujas obras seus contemporâneos retiravam toda a sua informação médica. As palestras foram publicadas em latim em 1532, com o título Hipócrates e Galeno. Subsequentemente foi nomeado médico do hospital Hôtel-Dieu, em Lyons, onde lecionou anatomia humana, um assunto então considerado bastante ousado. Em agosto de 1532, um editor de Lyons publicou uma coletânea de contos populares chamada Les grandes et inestimables cronicques du grand et énorm géant Gargantua ["As grandes e inestimáveis crônicas do grande e enorme gigante Gargântua"], um herói de apetite ilimitado e que oferecia uma mãozinha aos camponeses quando eles precisavam.
O livro teve grande sucesso comercial, e Rabelais decidiu escrever uma continuação. Em dezembro, havia produzido Les horribles et épouvantables faits et prouesses du très renommé Pantagruel, roy des Dipsodes ["Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos Dípsodos"], que se tornou conhecido como Segundo livro, sobre Pantagruel, filho de Gargântua. Uma das passagens mais notáveis do Segundo livro é a carta que Gargântua escreve a seu filho, exaltando as virtudes de uma educação liberal: o estudo de idiomas, história, matemática, biologia, filosofia, um pouco de direito, e medicina. A obra não foi escrita em latim, a língua de autoridades religiosas, advogados e acadêmicos, mas sim no “vulgar” idioma francês falado pelo povo.
Aparentemente temendo que a história e a língua em que ela havia sido escrita provocassem a ira dos censores, pondo em risco sua carreira na medicina, Rabelais escreveu sob um pseudônimo, Alcofribas Nasier. A seguir, ele decidiu escrever La vie inestimable du grand Gargantua ["A inestimável vida do grande Gargântua"], que ficou conhecido como Primeiro livro, sobre o próprio Gargântua. Parece ter sido publicado em 1534. No prólogo, Rabelais indicava a intenção de divertir a todos: “Nobilíssimos e ilustríssimos beberrões, e vós, três vezes preciosos jovens perebentos... fazei vosso melhor para manter-me sempre alegre. Brincai agora, meus caros, e alegrai vossos corações”. Gargântua, explica Rabelais, nasceu da orelha esquerda de sua mãe. Seus primeiros gritos, segundo testemunhas, foram: "Bebida! Bebida! Bebida!". Ele era tão grande que foram necessárias 17.913 vacas para abastecê-lo de leite. Suas roupas exigiram uma quantidade colossal de tecido: "Para fazer suas camisas foram usados novecentas varas de linho de Chateleraud... Para os culotes, foram usados mil cento e cinco varas e um terço de tecido branco largo... Para usar em volta do pescoço ele tinha uma corrente de ouro que pesava vinte e cinco mil e sessenta e três marcos de ouro" Qualquer que seja o valor dessas medidas arcaicas, Gargântua era obviamente grande, e foi criado para beber, comer e dormir. Em certa ocasião, Gargântua comeu seis peregrinos que estavam escondidos em um canteiro de repolhos e alface.
Primeiro livro era em grande parte um tratado anti-guerra. Por exemplo, Rabelais descreve uma briga entre padeiros e pastores. Os padeiros estavam carregando bolos para o mercado, e os pastores queriam alguns. Os padeiros recusaram, de forma bastante rude, chamando os pastores de "apostadores tagarelas, comilões alcoolizados, gulosos sardentos, canalhas desprezíveis, cagões vigaristas, baderneiros bêbados”, e mais. Padeiros e pastores se atacaram, e os pastores acabaram comprando diversos bolos em troca de dinheiro, mais de cem ovos e três cestas de amoras. Os padeiros foram reclamar com o rei Picrochole, que mandou soldados para devastar o campo. O bom monge Frère Jean fez muito para defender os pastores, e Gargântua o ajudou estabelecendo um monastério, Theleme, que era um paraíso libertário. Seu lema era: "Faze o que quiseres" (“Do what thou wilt”). Rabelais descreveu o lugar assim: "Suas vidas eram regidas não por leis, estatutos ou regras, mas segundo seu próprio livre-arbítrio e vontade. Levantavam-se de suas camas quando achavam por bem; comiam, bebiam, trabalhavam, dormiam conforme seu estado de espírito e disposição... Com tal liberdade, assumiram um hábito muito louvável de fazerem, todos eles, aquilo que constatavam que os agradava”.
Albert Jay Nock observou: "Na abadia não havia disciplina alguma que não fosse auto-imposta; todos os arranjos se baseavam na responsabilidade individual... Não há, acreditamos, concepção mais elevada, convincente e sã das potencialidades da natureza humana dotada de não mais do que a mera liberdade – apenas isso – do que a exposta no capitulo cinquenta e sete, que descreve a disciplina dos Thelemitas”. O Primeiro livro e o Segundo livro foram reimpressos juntos, e, segundo relatos, ultrapassaram todos os outros livros em vendas, com exceção da Bíblia e da Imitação de Cristo (1426) de Thomas A. Kempis. No início de 1543, a Sorbonne incluiu tanto Gargântua quanto Pantagruel em sua lista de livros que bons católicos não deveriam le r. O protestante João Calvino acusou Rabelais de ateísmo, uma acusação séria naqueles tempos. Rabelais produziu o Terceiro livro em 1546, desta vez usando seu verdadeiro nome. O livro é principalmente sobre o pródigo companheiro de Pantagruel, Panurgo, tentando decidir se deve se casar. Uma vez que não tem confiança em seu próprio julgamento, ele busca conselhos de um clérigo, um médico, um advogado e um filósofo, mas eles não ajudam muito, então ele parte em uma jornada para consultar o Oráculo da Divina.
Terceiro livro também expressa mais sentimentos anti-guerra. Rabelais parece ter-se fixado em Paris, onde escreveu onze capítulos do Quart livre des faits et dits heroïques du noble Pantagruel ["Quarto livro dos feitos e ditos heróicos do nobre Pantagruel"]; foram publicados em 1547. Acredita-se que os capítulos eram cerca de um terço do que Rabelais havia imaginado. O livro acaba abruptamente, deixando um episódio incompleto. Jean Plattard especulou que Rabelais teria apressado a publicação para levantar dinheiro para uma viagem à Itália e para responder a críticos que o acossavam. Cinco anos mais tarde, ele reviu e expandiu o Quarto Livro, em que continua a busca de Pantagruel pela Divina Garrafa. Refletindo os sonhos dos europeus de encontrar uma Passagem Noroeste entre a América e a China, Rabelais criou um épico na tradição de Homero e outros cronistas, abundante em tempestades, pessoas estranhas e lugares como as Ilhas Canibais e as Ilhas Burocracia (habitadas por funcionários que passam o tempo emitindo ordens judiciais e intimações). Rabelais satirizava o fanatismo político, como nesta passagem de Homenas: “O fim de todas as guerras, saques, sofrimento, roubos, assassinatos, a menos que seja para destruir estes malditos hereges rebeldes. Oh, então, júbilo, alegria, festividades, alívio, jogos e deliciosos prazeres sobre a face da Terra”. Sabemos pouco sobre como Rabelais passou os últimos anos de sua vida. Em 1552, circularam rumores de que ele havia sido preso, porque seus amigos não conseguiam localizá-lo. Dois anos depois, surgiram homenagens aparentemente ocasionadas por sua morte. Uma cópia do século dezoito de registros paroquais da igreja de São Paulo, em Paris, data sua morte de 9 de abril de 1553. Ele teria por volta de cinquenta e nove anos.
Provavelmente foi enterrado no cemitério de São Paulo, em Paris. Um livro com o título de Cinquième et dernier livre [“Quinto e último livro”], atribuído a Rabelais, surgiu em 1562, mas pesquisadores têm dúvidas a respeito da autenticidade da obra. Conforme explicou Jean Plattard, “uma simples análise do conteúdo desta obra póstuma e das circunstâncias de sua publicação nos levam a duvidar de que seja genuína. É possível que ela consista de rascunhos ou fragmentos abandonados por Rabelais, e guardados por diversas razões, sem dúvida para serem usados posteriormente, unidos por outro autor, provavelmente um Huguenote [Protestante] que selecionou entre os fragmentos as partes mais facilmente adaptáveis às paixões de seus correligionários”. É certo que o livro frequentemente evoca o espírito de Rabelais, como no apelo para que se “remova todas as formas de tirania do mundo”.
A obra de Rabelais tornou-se amplamente lida. “Poucos livros franceses foram reimpressos com mais frequencia”, segundo Plattard. “Houve noventa e oito edições no século XVI, vinte no XVII, vinte e seis no XVIII, e por volta de sessenta no XIX... Suas obras não apenas inspiraram contadores de histórias em prosa e verso, panfleteiros e poetas cômicos e satíricos, como também forneceram enredos para balés, motivos decorativos para leques ou tecidos estampados... Uma lista de grandes nomes da literatura, da ciência e da política que se deleitavam com a leitura de Rabelais seria muito longa”. Os escritos de Rabelais continuaram a ser alvo de intensas polêmicas. Autores protestantes e católicos o denunciaram como “a praga e a gangrena da devoção”, autor “do livro mais depravado de todos os tempos”, e responsável por “um manual de libertinagem”. Voltaire, em sua juventude, considerava Rabelais grosseiro, mas mais tarde passou a admirar sua obra, como muitos outros, por sua erudição, sabedoria e humor.
O biógrafo Donald M. Frame escreveu que “as traduções de Rabelais para outras línguas eram raras no início, mas se tornaram amplamente disponíveis”. Rabelais ainda surpreende leitores com sua energia titânica, falando contra as bárbaras crueldades de nossos dias assim como as de seu tempo. Rabelais permanece atual por conta de sua grande alegria de viver.

* Publicado originalmente em 10/04/2009.

“As armadilhas normalmente são colocadas nas trilhas sem espinhos.” (Filosofeno)

A PIOR DAS PRISÕES

A PIOR DAS PRISÕES

Prisão sem muros e grades
Sem guardas e normas
Em que os dias parecem intermináveis
E que o fim é esperado como dádiva
Prisão sem muros e grades
Sem guardas e normas
Onde a dor bate e volta
A cada momento para supliciar o ser
Esta prisão
A pior delas
Está em nós
E se chama remorso.

CAIO BLINDER- Somos todos franceses (VIII)

Hora de denunciar a banalização da solidariedade. Mon Dieu! Constrange erguer o lápis em desafio ou segurar o cartaz Je Suis Charlie quando os novos integrantes da passeata são o regime xiita do Irã e o grupo terrorista palestino Hamas. A causa desvaloriza mais do que uma ação da Petrobras.
O coro realmente engrossa com a participação da turma do aiatolá Khamenei denunciando a barbaridade terrorista em Paris. Imagine, foi o antecessor de Khamenei, o venerável aiatolá Khomeini, que decretou uma fatwa em 1989 para a morte do escritor Salman Rushdie por insultar o islamismo com o seu livro Versos Satânicos. E agora Khamenei está chocado porque terroristas islâmicos mataram os cartunistas do Charlie Hebdo que insultaram Maomé?
O Hamas denunciou as matanças em Paris dizendo que nada “justifica matar inocentes”, o mesmo Hamas que não teve pudor para realizar atentados suicidas contra Israel ou que dispara foguetes de Gaza de forma indiscriminada, tratando qualquer inocente como um inimigo. A Constituição do Hamas estipula a destruição do estado de Israel.
O grupo terrorista libanês Hezbollah, escudeiro do genocida sírio Bashar Assad, tomou nota que os atentados em Paris causaram mais danos para a causa do que as charges do Charlie Hebdo. Uma quase solidariedade.
Nesta horas fico marxista (da ala Groucho), desconfiando da qualidade do clube da civilização que tem Khamenei e o Hamas como seus sócios. Eles não são Charlie.

CAIO BLINDER- Clareza moral, claríssima







A execução do policial Ahmed Merabet no massacre no jornal Charlie Hebdo

O Instituto Blinder & Blainder tenta ser transparente com sua consciência e com os seus leitores. Aqui compartilha uma reflexão/retificação. O que foi escrito está sacramentado, mas podemos lamentar que não tenha sido de outra forma. Na quarta-feira passada, logo cedo, no calor dos acontecimentos, havia a urgência do agora para publicar um texto inicial sobre o massacre em Paris (o primeiro, no jornal Charlie Hebdo). Estava claro que se tratava de um evento histórico. Rapidamente se configurou como o 11 de setembro da Europa.

Nestas horas, é fundamental clareza moral. Ela ficou patente no meu texto, mas poderia ter sido claríssima, sem o “por outro lado”. Ramificações políticas poderiam ter ficado para outros textos. Na urgência do agora, um texto de largada exige clareza moral. Nada do “por outro lado e o “mas” que esfumaçam a clareza moral. Era o momento da denúncia da barbárie do terror islâmico e ponto final.

Rodrigo Constantino- A FÁBRICA DA INVEJA

A fábrica da inveja

“Todos gostam do sucesso, mas detestam as pessoas bem-sucedidas.” (John McEnroe)
A lei moral de que o justo é tirar de cada um de acordo com sua habilidade e dar para cada um de acordo com sua necessidade corrompeu milhões de corações ao longo dos anos, e ainda o faz. No entanto, nada poderia ser mais imoral, injusto e ineficaz que este conceito. A novelista Ayn Rand fez um dos melhores retratos das conseqüências dessa máxima colocada em prática, no seu livro Atlas Shrugged, assim como expôs com perfeição os reais motivadores de seus defensores.
Na ficção, infelizmente nada distante da realidade de muitos, uma fábrica de motores decidiu votar um plano onde todos os funcionários iriam trabalhar de acordo com suas habilidades, mas o pagamento seria de acordo com as necessidades. O plano objetivava um nobre ideal de justiça. Era chegada a hora de acabar com a ganância individual, com a busca pelo lucro, com a competição selvagem. Todos os trabalhadores formariam uma grande família, e o bem coletivo seria colocado à frente dos interesses particulares.
Um ex-operário relata como o plano funcionou. Tente colocar água num tanque onde há um duto no fundo drenando o líquido mais rápido do que você é capaz de enchê-lo, e quanto mais você joga água dentro, maior fica o duto. Quanto mais você trabalha, mais lhe é demandado, até que suas horas trabalhadas multiplicam-se para que seu vizinho tenha sua refeição diária, a esposa dele tenha a operação necessária, a mãe tenha a cadeira de rodas, o tio tenha a camiseta, o sobrinho a escola etc. Até pelo bebê que ainda não veio, por todos à sua volta, mais e mais é demandado de você, sempre em nome da “família”. A cada um pela necessidade, de cada um pela habilidade.
Foi necessária apenas uma reunião para perceberem que todos haviam se transformado em vagabundos pedindo esmolas, pois ninguém poderia reclamar um pagamento justo, não havia direitos e salários, seu trabalho não lhes pertencia, mas sim à “família”, e nada era devido em troca, sendo o único direito sobre ela a “necessidade”. Cada um tinha que demandar tudo, alegar miséria, pois sua miséria, não seu trabalho, tinha se tornado a moeda de troca. Ninguém podia mais nada.
Afinal, ninguém era pago pelo trabalho, pelo valor gerado, mas apenas de acordo com a “necessidade”. Em pouco tempo, sendo a necessidade algo subjetivo, todos passam a necessitar de tudo, e a “família” experimenta enorme crescimento de ressentimento mútuo, trapaças, mentiras. A cirurgia da mãe do vizinho passa a ser vista com desconfiança, pois é seu trabalho que paga a conta. Cada nova demanda através do apelo de “necessidade” gera mais intrigas e brigas.
Bebês eram o único item de produção em alta, pois ninguém tinha que se preocupar com o custo dos cuidados com um filho, já que a conta recaía sobre a “família”. Além disto, não havia muito que fazer, pois a diversão era vista como algo totalmente supérfluo, um dos primeiros itens a ser cortado em nome da “necessidade” de todos. A diversão passa a ser vista quase como um pecado. Um dos meios mais fáceis de conseguir um aumento no pagamento era justamente pedir permissão para ter filhos, ou alegar alguma doença grave.
Não há meio mais seguro de destruir um homem que forçá-lo a um mecanismo de incentivo onde seu objetivo passa a ser não fazer o seu melhor, onde sua luta é por fazer um trabalho ruim, dia após dia. Isto irá acabar com ele mais rápido que qualquer bebida o faria, ou o ócio. A acusação mais temida era a de ser mais habilidoso que o demonstrado, pois sua habilidade era como uma hipoteca que os outros tinham sobre você. Mas para quê alguém iria querer ser mais habilidoso, se seus ganhos estavam limitados pela “necessidade”, e suas habilidades significariam apenas mais trabalho pesado para que outros ficassem com os benefícios?
A explicação sobre os motivos que levaram tal plano a ser aprovado está na passagem em que o ex-operário diz que não havia um único homem votando que não pensasse que, sob tais regras, poderia avançar sobre os lucros de outros homens mais habilidosos que ele. Não havia quem, rico ou esperto o suficiente, não achasse que outro seria mais rico ou mais esperto, e que tal plano lhe daria uma parcela de sua maior fortuna ou cérebro.
O trabalhador que gostava da idéia de que sua “necessidade” lhe daria o direito a ter o carro que seu chefe tinha, esquecia que todos os vagabundos do mundo poderiam demandar aquilo que ele tinha conquistado pelo seu trabalho. Este era o verdadeiro motivo para a aprovação deste plano igualitário, mas ninguém gostava de refletir sobre o assunto, e, quanto menos gostavam da idéia, mais alto gritavam sobre o amor pelo bem geral.
A fábrica continuou perdendo os melhores homens, pois os habilidosos “egoístas” iam fugindo como podiam para lugares onde pudessem trabalhar pelos próprios interesses, sem o fardo de sustentar os parasitas. Em pouco tempo, não havia mais nada além dos homens “necessitados”, e já não havia um único homem de habilidade. E a fábrica teve que começar a apelar para as suas necessidades, tentando não perder todos os clientes, pois seus produtos não mais eram competitivos ou eficientes.
Mas qual o bem que faz aos passageiros de um avião um motor que falha em pleno vôo? Se um produto for comprado não pelo seu mérito, mas por causa da necessidade dos empregados da fábrica ineficiente, seria isto correto, bom, ou a coisa moral a ser feita pelo dono da empresa aérea? Se um cirurgião compra um equipamento não pela sua qualidade, mas pela necessidade dos funcionários do produtor, seria correto com seu paciente?
No entanto, é esta a lei moral pregada pelos vários líderes, intelectuais e filósofos no mundo. A cada um pela necessidade, de cada um pela capacidade. A fábrica da inveja, na brilhante novela de Ayn Rand, faliu, virou uma fábrica de miséria, assim como os países socialistas que tentaram adotar a mesma máxima de vida.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

Rodrigo Constantino- O REBANHO BOVINO

O rebanho bovino

“Assim como uma sociedade adequada é governada por leis, não por homens, uma associação adequada é unida por idéias, não por homens, e seus membros são leais às idéias, não ao grupo.” (Ayn Rand)
Existe uma profunda diferença entre o indivíduo independente que busca seu conhecimento através da razão e do questionamento honesto e aquele que abdica desta ferramenta para aderir a um grupo que lhe fornece respostas prontas, liberando-o do exercício da reflexão. O primeiro irá sempre confrontar os fatos com suas teorias prévias, e respeitar a lógica para chegar às suas conclusões. O segundo irá repetir “verdades” já dadas pelo grupo, e o questionamento imparcial lhe será extremamente doloroso.
Em seu livro Philosophy: Who Needs It?, a novelista Ayn Rand trata deste tema, lembrando que aqueles que buscam um grupo, neste sentido acima, estão atrás da proteção contra os “de fora”, eximindo-se da necessidade do pensar por conta própria. O que o grupo demanda em troca é a obediência às suas regras, as quais o sujeito está ansioso para atender, justamente porque elas representam esta “proteção”. E quem cria estas regras? Teoricamente, a tradição, mas na prática são os líderes do grupo. Na mente do novo membro do grupo, é por aqueles que conhecem os mistérios que ele não precisa saber.
O mandamento básico de todos estes tipos de grupos, e que precede quaisquer outras regras, é a lealdade ao grupo. Não a lealdade às idéias, mas ao grupo. Como exemplos de grupos formados com base nestas características estão o racismo e a xenofobia, onde o medo ou o ódio aos outsiders são alimentados em detrimento da razão. O estrangeiro passa a ser um inimigo, independentemente de suas crenças e valores, apenas por ser um estrangeiro. A cor da pele, e não os valores individuais, passa a ser critério de aceitação pelos membros do grupo.
Ayn Rand chama este tipo de grupo coletivista de tribalismo, e afirma que este é um produto do medo, enquanto o medo é, por sua vez, a emoção dominante de qualquer pessoa, cultura ou sociedade que rejeita a maior ferramenta de sobrevivência humana: a razão. Ela diz ainda que owelfare state dividiu o país em grupos de pressão, cada um lutando por privilégios especiais à custa dos demais, de forma que o indivíduo não atrelado a qualquer grupo vira presa desses predadores.
Quando os homens estão unidos por idéias, ou seja, por princípios claros, não há espaço para favores políticos ou poder arbitrário. Os princípios servem como um critério objetivo para determinar as ações e julgar os homens, sejam os líderes ou outros membros. Em contrapartida, quando se trata de um grupo unido feito um rebanho bovino, o seu membro será sempre tratado com complacência, enquanto os “de fora” serão duramente condenados, sem que tenham cometido qualquer falta. O uso de dois pesos e duas medidas é característica comum a estes grupos, e vale tudo para salvar a pele de algum membro do rebanho, por mais criminoso que tenha sido seu ato.
Investigar, como disse Humboldt, “e a convicção que emerge do livre investigar é espontaneidade; crença, por outro lado, é dependência de algum poder externo”. É por isso que “existe mais autoconfiança e firmeza no pensador que investiga e mais fraqueza e indolência no crente que confia”. O entusiasmo desses crentes é inteiramente dependente da supressão de toda a atividade da razão. “A dúvida é tortura apenas para o crente, mas não para o homem que segue os resultados de sua própria investigação”.
Os grupos descritos por Ayn Rand buscam crentes, não indivíduos livres que pensam por conta própria e questionam os dogmas do grupo. Por isso tanto ódio aos indivíduos que parecem não necessitar do rebanho e sentem-se livres para questionar suas crenças. Na ausência de pilares racionais que sustentem suas idéias, os membros deste grupo precisam desesperadamente de mais adeptos, na esperança de que a quantidade possa suprir a falta de qualidade. Sentem-se seguros apenas em bando. O argumentum ad populum é o único conhecido por seus membros. Quem precisa da lógica quando “todos pensam igual”? *
Gustave Le Bon, que estudou a psicologia das massas, concluiu que a estupidez é somada nestes grupos, não a inteligência. A razão não exerce influência alguma nesses rebanhos. E uma das características mais comuns das crenças é a intolerância. “Quanto mais forte a crença, maior a intolerância”, sendo crença aqui entendida como o oposto de convicção real. Homens dominados por tais sentimentos não são capazes de tolerar aqueles que não aceitam suas crenças. Os indivíduos independentes são sempre os maiores inimigos dos rebanhos. E o maior antídoto contra rebanhos bovinos sempre será aquilo que eles mais abominam: a razão humana!
* Na peça Um Inimigo do Povo, escrita pelo norueguês Henrik Ibsen no século XIX, vemos um homem com a coragem moral de manter sua integridade e convicção apesar da enorme pressão popular contra sua pessoa. Apesar dos exageros normais da dramaturgia, trata-se de um caso interessante de um pensador livre, um indivíduo apenas, combatendo a ignorância da maioria, e não cedendo nem mesmo sob o risco de completo isolamento e até falência pessoal. O personagem central da peça, Dr. Stockmann, após descobrir que os famosos banhos da cidade estavam contaminados, esperava obter grande respeito e admiração por parte dos demais habitantes. Mas toda a cidade passou a repudiar o autor da infeliz descoberta, preferindo ignorar os fatos, como se assim estes pudessem, num passe de mágica, desaparecer. Após refletir sobre a reação da maioria, Stockmann diz ter feito uma descoberta ainda mais importante que a poluição dos banhos. Seria a poluição moral da comunidade civil, calcada na mentira, na hipocrisia. Ele passa a considerar o maior inimigo da verdade como sendo a maioria compacta, que luta contra a razão individual. Para Stockmann, o homem mais forte do mundo é aquele que se sustenta sozinho. Está certo que Aristóteles já havia dito que o homem é um “animal cívico”, que só se completa como homem na polis. Ele nos lembra que “aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto”. Stockmann talvez tivesse obtido melhores resultados com meios menos radicais. Na vida real, é muito raro encontrar alguém com tanta convicção moral e independência, a ponto de ignorar por completo a pressão das massas. Mas isso não anula a importância da mensagem de Ibsen. Confrontar a falsidade geral, fugir da necessidade de pertencer a um “rebanho bovino”, tendo que aderir a um pensamento monolítico, faz-se crucial para qualquer indivíduo que ama a liberdade e a verdade. Não seguir uma ditadura do “politicamente correto”, não depender da aprovação alheia sempre, é um caminho necessário para pensadores livres. Colocar a verdade dos fatos acima dos interesses imediatos é fundamental para quem defende a honestidade. Mesmo que tal postura reduza o grau de “sociabilidade” do indivíduo algumas vezes. Mesmo que tais atitudes possam colocar um indivíduo íntegro como suposto inimigo do povo, que tantas vezes prefere ignorar a verdade a ter que enfrentá-la com coragem. No fundo, a humanidade agradece a independência de pensamento desses raros e corajosos indivíduos. Pode ser um tanto idealista a imagem de um indivíduo seguro de si, convicto do seu dever moral, enfrentando tudo e todos para defender nada mais que a verdade. Mas é um idealismo que vale admirar, ao menos para reforçar o alerta contra a ditadura do consenso. Afinal, como nos dizia o dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, “a unanimidade é burra”.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

Rodrigo Constantino- Da justiça distributiva


Acton
“Pobreza e infortúnio são males mas não injustiças, e a demanda moral que eles fazem é por ajuda no âmbito humanitário.” (H. B. Acton)
O que seria justo do ponto de vista de distribuição de riquezas numa sociedade? Quais os critérios que deveriam ser observados para julgarmos se há ou não justiça num determinado padrão de distribuição de renda? São questionamentos delicados, cuja resposta completa não caberia em apenas um artigo. Aqui irei tratar dos pontos levantados por Harry B. Acton sobre este tema, em seu livro The Morals of Markets.
Para o autor, uma coisa é falar em ajuda para alívio do sofrimento dos mais necessitados, mas outra, completamente diferente, é falar em justiça. Se o pobre e as casualidades da vida são ajudados por que é injusto que eles assim permaneçam, então o caminho está aberto para dizermos que é injusto uns terem menos que os outros. Mas se a ajuda é dada no sentido de critérios humanitários, então não temos que dar prosseguimento ao processo de redistribuição além do ponto onde o sofrimento é aliviado. Em suma, enquanto muitos entendem e aceitam que o sofrimento alheio pede por uma ajuda imediata, os coletivistas igualitários demandam remédios para a desigualdade em si, via redistribuição estatal.
Poderíamos questionar Acton no sentido de ser ou não necessário o aparato estatal para tal solidariedade humanitária nos casos graves de sofrimento. A espontaneidade humana, visível em vários casos de catástrofes, poderia bastar, sem a necessidade do uso do Estado, muitas vezes ineficiente e perigoso para a liberdade individual. A solidariedade pode – e deve – ser voluntária. A filantropia funciona melhor que o “altruísmo” estatal, realizado por governantes cujos interesses reais são particulares, muitas vezes populistas. Mas o ponto chave aqui é fazer a distinção entre o uso da máquina estatal para montar uma rede de proteção básica aos mais carentes e necessitados, ou sua utilização para um propósito bem mais ousado e perigoso, que é o foco na igualdade material, assumindo que a desigualdade em si seria um problema a ser solucionado pela mão do Estado.
Ora, não podemos falar em injustiça por se nascer numa família menos abastada, carregando genes piores ou num ambiente mais hostil. São simplesmente fatos naturais. Falar em injustiça nesse caso seria culpar uma divindade qualquer, ou a própria natureza, dado que não há interferência humana em tais acontecimentos. O que leva alguém ao sucesso material não pode ser facilmente detectado, podendo contar com pitadas de sorte, mérito, esforço pessoal etc. Nenhum homem é onisciente para saber quais critérios exatamente fizeram com que a distribuição de riqueza fosse a existente. “Se ninguém é responsável por criar tal situação, ninguém pode ser razoavelmente premiado por seu arranjo justo ou culpado pelo arranjo injusto”, diz Acton. Não faz sentido falar em justiça de se nascer belo, alto, forte ou inteligente, assim como falar em injustiça por ser o oposto em tudo isso. Injustiça de quem? Algo que simplesmente acontece não pode ser justo ou injusto.
Quando os socialistas afirmam que é injusto que as oportunidades e riqueza dependam amplamente de sorte ou nascimento estão tentando dizer que elas deveriam ser deliberadamente distribuídas de acordo com algum padrão qualquer. Isso segue, na verdade, do desejo de estabelecer justiça para a sociedade como um todo. Justiça distributiva pressupõe um distribuidor, atuando de acordo com alguma regra. No caso, os socialistas gostariam de determinar tal regra, de acordo com seus próprios desejos. Como é impossível conhecer exatamente as causas que levam à distribuição existente num livre mercado, os socialistas partem de um prisma arrogante, onde seus conceitos seriam impostos aos demais. A justiça que Deus falhou em oferecer ao mundo será feita pelos igualitários. A fraternidade será forçada e a integração social compulsória. Todos terão “direito”, independente de quem passa a ter o dever de oferecer, a tudo aquilo que os governantes decidirem, em nome da justiça. Não há moralidade alguma em tal postura autoritária, muitas vezes ocultando a face feia da pura inveja. *
O tema é complexo o suficiente para não se esgotar em um artigo. Acton enfoca a questão moral do liberalismo, muitas vezes ignorada até mesmo por supostos liberais, que limitam as análises apenas ao campo da eficiência de resultados. Creio ser fundamental desmascarar a hipocrisia e a falha moral dos igualitários, muitas vezes invejosos ou arrogantes, que gostariam de definir arbitrariamente um padrão “justo” de distribuição de riquezas. Por acaso a beleza é distribuída de forma “justa” na natureza? Ou a altura, força, saúde, sorte? O mundo tem muito a ganhar com a redefinição de certos conceitos atualmente deturpados. A sociedade criar mecanismos artificiais para o alívio de situações calamitosas é uma coisa. Mas outra totalmente diversa – e bem perigosa – é falarmos em direito de justiça a igualdade material, ignorando que vários fatores desconhecidos levam cada um ao patamar atingido de riqueza. Seria como defender a coerção estatal, fosse possível, para tornar todos igualmente bonitos – ou feios – já que seria “injusto” alguém nascer linda, uma modelo em potencial, enquanto outra vem ao mundo como uma “mocréia”.
* Falar em igualdade de resultados – o ideal socialista – deixa em muita evidência o caráter invejoso da pessoa. Talvez por isso muitos tenham migrado para o mais ameno termo “igualdade de oportunidades”. Até mesmo alguns liberais acabam repetindo isto como um ideal, sem se dar conta de que, na prática, levaria ao mesmo lugar: total escravidão. Ora, para as oportunidades serem de fato iguais, todos teriam que ter nascido no mesmo berço! A genética exerce influência, a família, a vizinhança, a rede de contatos, tudo isso altera o quadro de oportunidades de um indivíduo. É tão utópico – além de indesejável – falar em igualdade de resultados como é falar em igualdade de oportunidades. Um jovem que pode ir estudar em Harvard tem as mesmas oportunidades que outro que não tem condições para tanto? E qual a solução? O Estado pagar uma Harvard para todos, tirando de todos que podem e transferindo para todos que não podem pagar? Ou talvez proibir a existência dela? Nota-se que a igualdade mesmo de oportunidades é impossível, e acaba sendo defendida pela idealização da inveja também. Alguns alegam que uma corrida onde alguns podem largar na frente não é justa. Mas, em primeiro lugar, a vida não é uma corrida onde todos competem pelo mesmo prêmio estabelecido. Não há uma corrida única, e sim pessoas diferentes trocando entre si com objetivos, capacidades e preferências particulares. Não existe um processo centralizado de julgamento das oportunidades disponíveis para cada um. Em segundo lugar, mesmo aceitando esta falha analogia, o ideal da igualdade de oportunidade seria quebrar as pernas de um corredor porque o outro anda numa cadeira de rodas. Isso seria justo, por acaso? Não seria visivelmente uma atitude típica da inveja, que prefere destruir o sucesso alheio em vez de melhorar a própria situação? Como fica claro, o máximo que um liberal pode aceitar é o discurso em prol de melhores oportunidades, mas nunca tendo como objetivo a igualdade. A única igualdade defendida pelos liberais é aquela perante as leis.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

CALDEIRÃO DE MÁGOAS

CALDEIRÃO DE MÁGOAS

O rio segue seu curso entre calmarias e corredeiras
Intrépidos o navegam enfrentando toda sorte de obstáculos
Dores psíquicas e físicas fazem parte da jornada
Às vezes eles caem
Mas retornam para navegar
Enquanto isso na margem do rio da vida
Os abocanhadores de facilidades
Atiram pedras
E cozinham no caldeirão da inveja
Todas as mágoas possíveis
Aos vencedores.


2050

 2050

Estou na janela
Lá fora a chuva cai
Em cada gota vejo o rostinho amado
De saudade já não agüento mais
Minhas lágrimas competem com a chuva
E pressinto que ela não irá voltar
No auge do desespero
Antes de enlouquecer
Vou até o quarto
Retiro alguns parafusos
E troco de coração
Deixando então o velho bobo
Sozinho numa caixa de papelão.

CARÁTER

CARÁTER

O lodo pode estar em todo lugar
No salão de mármore e ouro
No áspero chão de fábrica
Ter ou não ter os bolsos cheios
Não altera o caráter do ser.

“Algumas mulheres lindas saem comigo somente para realçar ainda mais as suas formosuras.” (Assombração)

“Não consigo nunca dar o troco na mesma moeda. Meu coração é moeda forte.” (Mim)

“A ignorância às vezes me tenta.” (Filosofeno)

“A inveja aos vitoriosos é o que motiva um esquerdista. Todos devem ser iguais para que a sua pequenez não seja reconhecida.” (Eriatlov)

“A fase é dura. Estou jogando beijo e dando tchau até pra maneca de vitrine.” (Limão)

“Sem canários ou bem-te-vis, tenha acordado é com urubus na janela.” (Limão)