domingo, 24 de junho de 2018

O TEMPO


O tempo é senhor de tudo
De tirar à vestimenta da mentira
De expor à face da verdade
Porém o que o tempo não faz
É trazer de volta os mortos
E desfazer dores sentidas.

CARNIÇA


O que temos nos nossos poderes
É abundância de comida para urubus
Carniça
Muita carniça
Nada mais.


“Minha aparência não causa polêmica. É bom saber que minha feiura é unanimidade.” (Assombração)


“Assusto e apavoro, mas não como ninguém.” (Assombração)


“Meu anjo da guarda é um pterodátilo.” (Assombração)



“Meu herói é o Lobisomem.” (Assombração)



“Mais horrível do que eu somente a política nacional.” (Assombração)


A CIRURGIA


Depois da cirurgia ele se encontra deitado na cama de ferro, imóvel sobre alvos lençóis. De hora em hora uma enfermeira vem para ver como ele se encontra. Observa sua pressão e sai. Na parede um quadro solitário da Santa Ceia faz companhia ao homem que dorme sedado. Sobre o criado mudo não há nada, nem mesmo um copo ou uma revista qualquer. O soro desce em lentas gotas e o rosto do enfermo aos poucos ganha cor. Lá fora, entre nuvens, aparecem pedaços do azul do céu. No canto esquerdo do quatro está largado um pequeno sofá marrom que aguarda para acolher uma visita qualquer. Já faz quatro horas que a operação foi realizada. O homem abre os olhos e se mexe um pouco. A enfermeira chega, ele pede: “Onde estou?” Ela fazendo um olhar de mãe diz que ele está no Hospital Samaritano, sofreu uma cirurgia para extirpar um pequeno tumor no cérebro e que correu tudo bem. “Tudo bem nada” diz ele .-“Sou o encanador, vim até aqui apenas para consertar um vazamento e acabei caindo no banheiro. E agora me acontece isso?”

NICE


Esta é a curta história de Nice, uma doce bombinha, faceira e formosa que apressadamente marcou um encontro com um pombo galã após conhecê-lo pelo facebook. Embora avisada pelos familiares dos perigos de encontros assim, não deu bola e foi. Usou seu melhor perfume e carregou na maquiagem. O local combinado para o encontro foi um casarão abandonado na Vila Dores. Chegaram ao local e foram para o sobrado. Já nas primeiras carícias o tal pombo mostrou a sua verdadeira face. Ela ficou apavorada quando o dito mostrou suas garras. Na verdade não era um pombo, mas sim um gavião disfarçado. Azar da pobre pombinha que foi literalmente comida no primeiro encontro. Restaram da Nice somente penas e sua nécessaire.

PERDIDA


Num canto escuro de uma esquina malcheirosa, agarrada nos tijolos de um prédio sujo, ela vomitava. Suas pernas manchadas de bexigas roxas demonstravam a falta de cuidado que tinha para consigo. Um homem bêbado passou perto e disse alguns gracejos enquanto ela jogava fora sua existência, encharcada de álcool nas noites da vida. Após o pior passar ela levantou os olhos para o céu e viu a lua olhando para sua carcaça desalinhada. Por um breve momento pensou nos sonhos de menina que o diabólico tempo tratou de pulverizar. Tinha perdido o juízo; a juventude tão gostosa de ser vivida; os amigos verdadeiros; a família que ela mesma deixara para trás. Caminhou alguns quarteirões até seu quartinho acanhado no hotelzinho de quinta categoria. Abriu a porta e sentiu no rosto o cheiro de mofo que dominava o cubículo. Sentou-se na cama e acendeu mais um cigarro, talvez o trigésimo da noite. Tudo à sua volta rodava, os olhos de peixe morto, pálpebras caídas. Após fumar, apagou o venenoso e se deitou sobre o cobertor que  ansiava por limpeza. Apagou... Mais uma noite de trabalho encerrada, mais um dia vivido sem ter alegria no coração.