“Sou
muito azarado. Desconfio de que fui batizado com mijo.” (Limão)
quarta-feira, 21 de junho de 2017
JANER CRISTALDO- terça-feira, agosto 24, 2004 AZALÉIAS DE AGOSTO
Era agosto. Elas se abriam em meu jardim com essa obscenidade com que sempre se abrem as flores, cumprindo sua missão natural de flores. Quanto mais floresciam, mais fenecias. Todos as manhãs eu atravessava aquele festival orgíaco de vermelho, rosa, branco e roxo, rumo ao amarelo ictérico que começava a envelopar tua pele, essa pele que por tantas décadas acarinhei. "Onde estiver, vou sentir tua falta" - me disseste, com voz que jamais senti tão grave. Querendo afagar-me, suspeitando que pela última vez, te enganavas. Não estarás em parte alguma. Partiste para o grande nada, onde nada existe e ninguém sente falta de ninguém.
Quem vai sentir tua falta, todos os dias até o último deles, é este que fica e que em algum lugar sempre estará. Pelo menos até o dia em que não mais estiver. Quem parte descansa. Sofre quem fica. O que até me consola um pouco. Quem está sofrendo, pelo menos não és tu.
De novo é agosto e elas retomaram seu ritual exibicionista. Paranoicas, escondem-se nas primaveras e agora torturam meus invernos. Não apenas os meus, mas os de tantos outros cujos seres amados escolheram agosto para partir. Certa noite de setembro, eu conversava com jovens já contaminados pela resfeber, enfermidade nórdica que significa febre de viagens. Sedentos de vida, perguntaram a este ser tantas vezes acometido pela doença: qual é a mulher mais linda do mundo? Em que geografias pode ser encontrada?
Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, eu a conheci. E a tive. E agora não mais a tinha. Não a encontrara em distantes longitudes nem em países exóticos. Encontrei-a a meu lado, neste prosaico país, e nunca mais a abandonei. Quis a vida - ou talvez tenha quisto eu - que tivesse centenas de mulheres, algumas muitas queridas, outras nem tanto mas também desejadas, mais uma multidão de rostos mais ou menos anônimos, corpos sempre lembrados. Mentira da vida, mentira minha. Em verdade, tive só uma. Tu, que partiste no auge das azaleias.
"Eu não tenho medo da morte" - me disseste ainda, um pouco antes da passagem rumo ao nada. Mesmo desbotada pelo palor da vida que foge, estavas linda como nunca estiveste. Em tuas quase seis décadas, conservavas ainda aquele eterno rostinho de criança, que a passagem dos anos jamais conseguiu roubar-te.
Sedada, já no torpor da morte, chamaste tuas últimas energias, te ergueste no leito. Levantando o dedinho, didática qual professora falando a seus pupilos, sussurraste com o que te restava de voz: "E se fizéssemos assim: eu assino um documento: eu, TKM, em pleno uso de minhas faculdades mentais, declaro que quero ter meus restos cremados no cemitério da Vila Alpina". Reuni minhas forças e consegui balbuciar: não te preocupa, Baixinha adorada, isto há muito está combinado, verme algum sentirá o gosto de tuas carnes. Tuas cinzas, vou jogá-las de alguma ponte em Paris, uma daquelas pontes que tanto amaste, para que saias navegando mares afora.
Passada a mensagem, te reclinaste em paz.Mas descumpri o trato. Não as joguei em Paris. Ficarias muito longe de mim, navegarias talvez por mares gelados e hostis, encalharias em geleiras e te perderias em fiordes, longe de meu calor. Com carinho, te plantei entre os rododendros e todas as manhãs passo entre ti e murmuro: adorada. É bom te cumprimentar. Mas como dói.
A vida nos foi pródiga, e isso é talvez o que mais machuque. Nestes últimos meses, tenho sentido uma secreta inveja de homens que casam com megeras horrendas. Quando elas partem, começa a felicidade. Se morrer feliz é o almejo de todo homem, esta graça não mais está reservada a quem um dia foi feliz. É duro conjugar certos verbos no passado. Dizia Pessoa:
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Bobagens de poeta, que tanto influenciaram meus dias de jovem. Verdade que sem ti correrá tudo sem ti. Mas isto vale para as azaleias - seres insensíveis que sequer perceberam a ausência de quem as adorava tanto - e para o resto da humanidade. Para quem perdeu o ser mais lindo da vida, é mero jogo de palavras.
As azaleias em breve irão perdendo seu sorriso orgíaco, suas cores fenecerão e agosto que vem estarão de novo florescendo, despudoradas. Tuas cores feneceram agosto passado e pelo resto de meus agostos não mais te verei florir.
Quem vai sentir tua falta, todos os dias até o último deles, é este que fica e que em algum lugar sempre estará. Pelo menos até o dia em que não mais estiver. Quem parte descansa. Sofre quem fica. O que até me consola um pouco. Quem está sofrendo, pelo menos não és tu.
De novo é agosto e elas retomaram seu ritual exibicionista. Paranoicas, escondem-se nas primaveras e agora torturam meus invernos. Não apenas os meus, mas os de tantos outros cujos seres amados escolheram agosto para partir. Certa noite de setembro, eu conversava com jovens já contaminados pela resfeber, enfermidade nórdica que significa febre de viagens. Sedentos de vida, perguntaram a este ser tantas vezes acometido pela doença: qual é a mulher mais linda do mundo? Em que geografias pode ser encontrada?
Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, eu a conheci. E a tive. E agora não mais a tinha. Não a encontrara em distantes longitudes nem em países exóticos. Encontrei-a a meu lado, neste prosaico país, e nunca mais a abandonei. Quis a vida - ou talvez tenha quisto eu - que tivesse centenas de mulheres, algumas muitas queridas, outras nem tanto mas também desejadas, mais uma multidão de rostos mais ou menos anônimos, corpos sempre lembrados. Mentira da vida, mentira minha. Em verdade, tive só uma. Tu, que partiste no auge das azaleias.
"Eu não tenho medo da morte" - me disseste ainda, um pouco antes da passagem rumo ao nada. Mesmo desbotada pelo palor da vida que foge, estavas linda como nunca estiveste. Em tuas quase seis décadas, conservavas ainda aquele eterno rostinho de criança, que a passagem dos anos jamais conseguiu roubar-te.
Sedada, já no torpor da morte, chamaste tuas últimas energias, te ergueste no leito. Levantando o dedinho, didática qual professora falando a seus pupilos, sussurraste com o que te restava de voz: "E se fizéssemos assim: eu assino um documento: eu, TKM, em pleno uso de minhas faculdades mentais, declaro que quero ter meus restos cremados no cemitério da Vila Alpina". Reuni minhas forças e consegui balbuciar: não te preocupa, Baixinha adorada, isto há muito está combinado, verme algum sentirá o gosto de tuas carnes. Tuas cinzas, vou jogá-las de alguma ponte em Paris, uma daquelas pontes que tanto amaste, para que saias navegando mares afora.
Passada a mensagem, te reclinaste em paz.Mas descumpri o trato. Não as joguei em Paris. Ficarias muito longe de mim, navegarias talvez por mares gelados e hostis, encalharias em geleiras e te perderias em fiordes, longe de meu calor. Com carinho, te plantei entre os rododendros e todas as manhãs passo entre ti e murmuro: adorada. É bom te cumprimentar. Mas como dói.
A vida nos foi pródiga, e isso é talvez o que mais machuque. Nestes últimos meses, tenho sentido uma secreta inveja de homens que casam com megeras horrendas. Quando elas partem, começa a felicidade. Se morrer feliz é o almejo de todo homem, esta graça não mais está reservada a quem um dia foi feliz. É duro conjugar certos verbos no passado. Dizia Pessoa:
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Bobagens de poeta, que tanto influenciaram meus dias de jovem. Verdade que sem ti correrá tudo sem ti. Mas isto vale para as azaleias - seres insensíveis que sequer perceberam a ausência de quem as adorava tanto - e para o resto da humanidade. Para quem perdeu o ser mais lindo da vida, é mero jogo de palavras.
As azaleias em breve irão perdendo seu sorriso orgíaco, suas cores fenecerão e agosto que vem estarão de novo florescendo, despudoradas. Tuas cores feneceram agosto passado e pelo resto de meus agostos não mais te verei florir.
O SUPERSTICIOSO
Virgulino era
o cão de supersticioso. Sempre levantava da cama com o pé direito e não saía de
casa sem antes consultar o horóscopo. Naquela manhã caminhava pela rua do
comércio quando se deparou com uma escada erguida e um gato preto debaixo dela.
Não pensou duas vezes: saiu da calçada e contornou pela pista. Mas levou azar o
Virgulino: foi atropelado por uma carroça puxada por um burro. No hospital, com
pernas e braços quebrados, ficou pensando se não era ele quem deveria estar
puxando a carroça.
EXEMPLAR
Até completar
trinta anos Vitor viveu por conta dos pais. Eles mortos, resolveu procurar
emprego. Conseguiu de vigia diurno numa grande empresa de pneus. Trabalhou bem
na primeira semana. No oitavo dia tirou folga por conta própria. No nono dia
pediu um vale pela manhã e adiantamento de férias pela tarde. No décimo dia
chegou à conclusão que trabalhar era cansativo. No décimo primeiro saiu do
emprego e foi atrás de criar um sindicato.
FLINTO
Flinto, 30, gostava de passar seus dias
sentado na calçada e com o lombo encostado ao muro da igreja. Tinha até o lombo
já impresso no reboco. Saí dali quando
chovia e no mais ali contava passantes, automóveis e observava o céu, suas
nuvens e pássaros. Às vezes reunia ali alguns amigos de vadiagem para fumar
maconha e beber cachaça, só não me peçam como arrumava dinheiro para isso, já
que trabalhar para ele era uma ofensa. Quando o cansaço era demais ele se
deitava na calçada para observar a bunda das passantes, distração apenas, pois
já estava mais impotente que uma Maria-Mole. Não esperava o tempo passar, o
tempo é que esperava por ele. Pois um dia desses, Flinto deitado, um ventinho
de nada derrubou o muro sobre ele. Pois aconteceu que Flinto se foi sem dizer
um ai. Podemos dizer que apesar da sua aversão à dura labuta, morreu no
trabalho de vadiar.
DONA EUFRÁSIA
Já viúva,
Dona Eufrásia não era mole. Dava laço e tiro em qualquer marmanjo, não
tinha medo de tamanho e nem de cara feia. Atirava também como poucas. Quando Neco engravidou a filha Jurema e não
quis casar Eufrásia deu um jeito. Quebrou ele a pau e fez o bonito se casar com
ela, a sogra. Criaram o menino na mesma casa , porém o assanhado só se deitava
com a velha. Mais tarde Jurema arrumou
um marido e trouxe-o para morar sob o mesmo teto. Pois Neco teve que aturar a
sogra até ela morrer aos oitenta e cinco anos. Longa pena. Isso sem contar que
a cada trimestre tomava uma tunda da velha para bem se lembrar da
sem-vergonhice.
O OBSERVADOR
Final de
tarde, horário de verão. Estou aqui na varanda observando o movimento até onde
meus olhos alcançam. Temperatura boa de 25 graus. Como estou num lugar alto
consigo ver os pedestres se digladiando por espaço na viela estreita. Seu
Antonio do Armazém Ramires está na porta conversando com uma freguesa magrela,
de nariz adunco, cheia de gestos e requebros. Pelo que posso ouvir está falando
das intromissões da sogra no seu casamento. Um ciclista distraído se enrosca
num carinho de picolé, para desespero do vendedor que esbraveja contra ele. O
carinho tomba lateralmente, mas os picolés não caem. Dona Zuleika está na
janela controlando Paulo, o marido galinha que bate papo com os colegas no
ponto de táxi da esquina. Dona Eufrásia, costureira da rua, abre o portão para
que entre Eunira, mocinha que está nos preparativos do enxoval de casamento. Os
moleques Tico e Fubá muito entretidos jogando bolitas num cantinho de terra que
separa os jardins de Milena, mãe de Fubá. Como é período de férias, inúmeras
crianças e adolescentes gastam os chinelos pelas calçadas. Amador, o chaveiro,
sentado detrás de uma mesinha desgastada assinala cartões da Megasena e sonha
acordado em ficar milionário. Assim já comprou inúmeras fazendas e automóveis
de luxo. Dona Cleci abre uma fresta na janela e observa as moças da vizinhança,
sendo que o seu forte é a maledicência. Um branquelo careca e armado passa
correndo, sendo perseguido por dois chineses que também trazem armas nas mãos.
Que posso fazer? Sou apenas um canário observando o movimento da rua aqui do
meu mundinho da gaiola.
SOB A MARQUISE
Sou
simples, faço minhas coisas. Naquele dia
a chuva caía forte na tarde. Saí do banco desprotegido então parei sob uma
marquise. Logo estávamos em mais de dez entre mulheres e homens. Tentei puxar
conversa para passar o tempo enquanto descia o aguaceiro. Todos usavam máscaras
de carranca e não queriam papo, absorvidos por certo em suas complicadas vidas,
ou achando que um papo camarada comigo não valeria a pena. Fiquei na minha,
pensando em coisas boas que ainda teria no dia, como visitar minha mãe e comer
pão caseiro da hora. Não demorou e meu motorista chegou, deixando todos ali
perplexos com o meu belo automóvel. Embarquei no meu Rolls Royce sob abanos
tímidos e sorrisos falsos dos companheiros de marquise.
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