domingo, 16 de julho de 2017

DO BAÚ DO JANER CRISTALDO- quarta-feira, março 24, 2004 MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (IX)

Eu já vivia em Porto Alegre. Certo dia, voltei a Dom Pedrito, para buscar o que para mim julgava ser meu direito líquido e certo. Só eu a merecia, e mais ninguém. Para evitar agressões, encontrava-a nos lugares mais públicos e expostos ao olhar de todos. Vontade atroz de beijá-la, apertá-la, mas evitava até mesmo pegar-lhe a mão. A cidade não permitia. Com Ela, fui encontrar-me de fato em Porto Alegre. Foram daqueles dias aos quais só damos valor depois de passados. Eu acordava de madrugada, para enrolar-me n'Ela tão logo sua companheira de quarto saía para o trabalho. No ônibus, sentia-me eleito dos deuses, ao lado de operários com rostos amarrotados por um sono ruim, dirigindo-se azedos à rotina diária de um trabalho extenuante e mal pago. Lépido e faceiro, barbeado e perfumado, jovem e vencedor, eu rumava ao paraíso. 

Foi bom enquanto durou. Para mim, continua sendo bom. Suponho que para Ela também. Concluímos um dia que, em função de mesquinharias de sua família, a separação era a melhor solução para os dois. Eu a adorava. Mas casamento, nem pensar. Era uma instituição cristã e dos cristãos eu só queria distância, muito me havia custado libertar-me deles. Nos despedimos após uma noite toda chorando, abraçados um ao outro em uma escadaria próxima à Duque de Caxias, em Porto Alegre. De novo aquela sensação que me acometeu ao libertar-me da idéia de Deus. Sem Ela, o mundo perdia o sentido. Ela era muito melhor que Deus, eu a apertava, acarinhava, Ela era não só espírito mas também carne, carne cor de jambo. Custei a reerguer-me, a me convencer que havia outras mulheres a meu lado, inclusive minha Baixinha, também namorada daqueles dias. Como ocorre com toda dor de dente, esta também passou. Quer dizer, passou em termos. Mal lembro d'Ela, me bate de novo a nevralgia. Saudade brutal daquela guarani de voz quente que me sussurrava: xemboraihu (meu querido). 

Como terapia para a dor-de-cotovelo, andei rabiscando algumas linhas, só mostradas a amigos muito próximos. Vivíamos dias duros em Porto Alegre, morando em repúblicas, sem muitas vezes ter os centavos necessários para o almoço do dia seguinte no restaurante universitário. Num destes períodos infames, um colega de quarto – mais tarde enforcou-se em Munique, em parte por falta de dinheiro para voltar – me alertou sobre um concurso estadual de contos. Primeiro prêmio, cem cruzeiros, o que nos garantiria um mês de RU. Com almoço e janta, o que já era luxo. Que tinha eu a ver com aquilo? Segundo Tibursky, minha dor-de-cotovelo era um conto. Eu achava que não, mas não custava nada mandar uma cópia. Na comissão julgadora, Paulo Hecker Filho e José Paulo Bisol. Para minha surpresa, Dom Pedrito, o pântano como fuga, recebeu o primeiro lugar, o que além de almoço e janta nos permitiu até mesmo algumas cervejas. Se aquilo era um conto, eu era capaz de escrever outros. Assim nasceu o candidato a escritor, da desastrada confluência de uma paixão mal curada e de um concurso de contos. Colecionei desafetos escrevendo, certamente mais inimigos que amigos. Aos que prefeririam me ver tocando violino ou construindo pontes, enfim, fazendo qualquer outra coisa que não seja escrever, alerto: queixem-se à Ela, a culpa é d'Ela e de mais ninguém. Se bem que o Hecker e o Bisol tampouco são inocentes. 

Fim de mês, de novo o problema: como comer no próximo? Tibursky descobriu que o Correio do Povo pagava trinta cruzeiros por artigo publicado, o que nos salvava uns dez dias de RU. Havia um suplemento literário aos sábados, dirigido pelo Paulo Fontoura Gastal – o PF, para os íntimos – padrinho literário de pelo menos duas gerações de jornalistas e escritores no Rio Grande do Sul. Enfrentei o editor numa sexta-feira à noite, supondo que dali a alguns meses teria o conto publicado. Acordei assustado, o conto saiu na manhã seguinte. Era fim de noite, faltava matéria para o suplemento. Com o conto premiado por dois ilustres críticos gaúchos, Gastal baixou-o sem ler. Segunda-feira, uma expedição punitiva pedritense pedia, na redação do Correio, minha cabeça. O que durante muito tempo os pedritenses julgaram ser uma revanche contra a cidade, não passava na verdade de um exercício terápico de adolescente, conjugado com a humana necessidade de jantar e almoçar todos os dias. Não vou negar, é claro, o prazer interior que senti ao estar reptando toda uma comunidade, do alto da tribuna de um jornal da capital. Não creio que, em algum lugar do mundo, um adolescente não goste disto. 

Proibido de voltar à cidade. Não havia nenhum edital do prefeito, apenas a singela promessa da comunidade de castrar em brasas o herege. A ofensa à cidade, ao que tudo indica, havia sido de ordem sexual. Eu havia roubado à comunidade a mulher que cada pedritense julgava sua. Três ou quatro anos mais tarde, quando o temporal parecia ter amainado, fui revisitar os meus. À noite, com amigos, em um de nossos refúgios na madrugada, os cabarés da Baixada da Paulina, por pouco não fui linchado. A "terrinha" sentira-se ofendida com o conto. "Tudo é uma questão de interpretação", tentei argumentar. O pessoal não se deixou enganar: "não vamos te deixar falar, falando tu nos confundes. Vamos é te bater o brim". Ex-colegas de ginásio, de repente surgidos do nada, me livraram do justiçamento: "no Janer, ninguém bate". Salvo pelo gongo. Mas tive de voltar a Porto Alegre no dia seguinte.

Incidentes que recordo com carinho. Penso ser saudável, para quem escreve, este atrito com sua comunidade. As cidades do interior são cheias de brios, não por acaso se auto-intitulam Capital do Arroz, Capital da Paz, Princesa da Serra, coisas do gênero. Estes atritos fortalecem a individualidade do escritor. As portas que se fecham obrigam-no a abrir outras. No Ocidente, bem entendido, onde apesar dos tabus e censuras há uma liberdade de expressão bastante ampla. Em país muçulmano ou comunista, o rebelde estaria na forca ou nalgum gulag. Mas estas pequenas comunidades se equivocam ao condenar e expulsar o rebelde. (Falo daquele que estuda, lê, pesquisa). Quando uma pessoa passa a criticar ou mesmo insultar sua cidade, é porque gosta dela e gostaria de vê-la transformada para melhor. Ninguém xinga uma mulher que lhe é indiferente. Olhando de hoje estas peleias, me pergunto se não havia em mim o inconsciente desejo de fechar portas, queimar navios, único recurso seguro para fugir ao risco de querer voltar. Aliás, não me pergunto. Pelo que lembro, este desejo era dos mais conscientes. 

E O SOL COMEÇA A PARECER QUADRADO por Percival Puggina. Artigo publicado em 14.07.2017

Enquanto Lula, condenado, excitava sua militância em overdose de si mesmo, pus-me a pensar sobre os caminhos que o levaram do torno da Villares ao trono da República e, daí, ao escorregador moral cujo mais provável término parece ser a porta da penitenciária.
 Creio que essa trajetória encontra importante pista na resposta à seguinte pergunta: qual o bem de maior valor concedido por qualquer vendedor no balcão da corrupção política? Não, não é o que ele materialmente entrega. Não é o contrato, a Medida Provisória, o financiamento privilegiado. O mais valioso é aquilo a que ele renuncia em si para fazer essa entrega. Todo ser humano sabe que sua liberdade deve estar orientada para o bem, para a verdade, para a conduta digna. Desde algum lugar, a consciência emite conhecidos sinais de recusa à mentira, ao vício, ao ato ilícito. A corrupção, portanto, envolve a venda disso, a venda da consciência em troca de algo. Nessa mercancia, o corrupto vai alienando sua integridade, sua dignidade, seu amor próprio. Nunca é um ato singular, a corrupção. Na política, a pluralidade de atos dessa natureza constrói e consolida muitas carreiras. Mais adiante, nas últimas cenas dessas tragédias humanas, possivelmente vão-se os amigos, a família e a própria liberdade.
É bom saber, portanto, que a corrupção não funciona como um precipício onde há uma única e decisiva queda, mas como um escorregador por onde o corrupto resvala pouco a pouco, vendendo sempre o mesmo bem de Fausto: sua consciência, sua alma.
O desconhecimento que temos ou a pequena importância que atribuímos aos primeiros movimentos nesse escorregador moral ajuda a corrupção a se disseminar nos níveis quase demográficos constatados em nosso país. Trata-se de algo semelhante ao observado em tantos vícios que criam dependência a partir das primeiras e pequenas doses. Faz lembrar, também, às enfermidades adquiridas por desinformação. Os indivíduos desconhecem o mal que aquilo lhes causará no tempo.
Rodrigo Loures, saindo furtivamente à calçada da pizzaria, escrutinando a rua e correndo para o carro com a mala que recebera de um emissário da JBS é imagem bem recente de tragédia clássica: o homem que se percebe como vilão, malgrado os aparatos do poder e o reconhecimento social. Não era ele o homem do homem?
Todo corrupto, porém, antes de ganhar triplex, sítio em Atibaia, conta corrente com alcunha na Odebrecht ou em nome de empresas offshore, "trust" na Suíça, mala de dinheiro, efetivou outras operações comerciais nas quais amordaçou a voz da consciência. E sempre a teve como mercadoria de troca. Para o político, a moeda com que a consciência é comprada pode ser sonante. Mas pode, também, ser voto na urna, emenda parlamentar, prestígio, poder, ou algumas dessas mordomias que a vida pública proporciona.
São muitas as formas da corrupção política e eu estou cada vez mais convencido de que a mentira (corrupção da verdade) é a primeiríssima em todas as piores biografias. As demais se vão encadeando por aí, umas às outras, sem que qualquer delas fique para trás, plasmando personalidades desprezíveis. O corrupto completo, o corrupto de aula de Direito Penal, cujas escorregadas acabam muito perto da porta da cadeia, fala como um falsário, corrompendo a lógica e a razão; distorce os fatos, corrompendo a história; difama adversários, jogando sobre eles seus próprios erros e lhes corrompendo a imagem. Por aí vão, na pluralidade de seus negócios, até que um Sérgio Moro apareça no caminho e o sol comece a parecer quadrado.
 
_______________________________
* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

NATURALMENTE

Era noite e o relógio sobre o armário fazia tic-tac
O ratinho entrou na casa e ficou na despensa roendo
O homem que dormia acordou-se e ficou ouvindo
O gatinho viu o rato e lambeu os beiços
Uma vez
Duas vezes
Três vezes
Meia-noite o relógio sobre o armário tic-tac explodiu 
Era um relógio-bomba
Não sobrou nada do homem
Do rato
Do gato
E do relógio
Naturalmente.

BRONCOS SEM PEJO

Alardeiam tantos estes broncos sem pejo
Em defesa do grupo espúrio vermelho
Que espanto nenhum haveria
Se contrariando tudo que a ciência ensina
Diriam que as estrelas estão no chão
E que os rios correm para cima.

GATOS & GATOS

Gatinhos perambulam na periferia
De olhos atentos
Procurando descuidados
E subindo em telhados
Já os grandes felinos nacionais
Pelo voto escolhidos
Embarcam em aeronaves
E vão para Brasília.

CHICO MELANCIA

“Tenho um primo de 24 anos que já ficou mais tempo preso do que mamando.” (Chico Melancia)

BILU CÃO

“Quando todos empregados aqui em casa, tínhamos aos domingos churrasco e bebes. Agora na maior M do mundo é macarrão com carne moída de segunda. E não sobra nada para o Bilu.” (Bilu Cão)

AVÓ NOVELEIRA



“Ópera? Não conheço nada de ópera. Só ouvi falar de um tal Babeiro de Sevilha, também chamado de Fígado.”

É

O Brasil é um país para anos passados. E como! Mas com essa racinha de políticos e leitores em busca de vida fácil o buraco se alarga.

NÃO!!!

Começamos o domingo dizendo: "Não reeleja ninguém em 2018. Nem a mãe!"