sábado, 23 de agosto de 2014
‘O céu é o limite’, de Roberto Pompeu de Toledo
PUBLICADO NA EDIÇÃO IMPRESSA DE VEJA
A cada trinta anos, com margem de erro nunca superior a alguns poucos meses, o sr. Absurdo da Silva bate ponto, com o característico estardalhaço, na política brasileira. Por obra sua, em agosto de 1954, o senhor que então ocupava o Palácio do Catete saiu de uma exaustiva reunião fazendo crer que se licenciava do cargo para, poucas horas depois, amanhecer morto, com uma mancha vermelha no pijama a denunciar o tiro que desferira no coração. Em março de 1985, observada a aludida margem de erro, pregou uma peça no senhor que no dia seguinte ocuparia o Palácio da Alvorada. Forçou-o, em vez disso, a internar-se num hospital, acometido do mal que o mataria no mês seguinte. Na semana passada, com a brutalidade que também lhe é característica, roubou a vida de uma jovem promessa da vida pública brasileira e fez a campanha eleitoral para a Presidência voltar à estaca zero.
Os dois primeiros eventos envolvem diretamente a Presidência da República, não uma candidatura, e por isso têm peso histórico maior. Iguala os três, no entanto, uma outra característica das intervenções do Absurdo da Silva: deixar à sua passagem um fortíssimo rastro emocional. Ao clima de choque com a notícia seguem-se enterros históricos. Foi assim no caso de Getúlio Vargas, a vítima de 1954, assim no de Tancredo Neves, a de 1985, e não há dúvida de que no caso de Eduardo Campos, o sorteado de 2014, ocorrerá o mesmo (esta coluna está sendo escrita quando ainda transcorrem os trabalhos de reconhecimento dos corpos das vítimas do acidente aéreo de Santos). Sendo Absurdo da Silva primo-irmão do Sobrenatural de Almeida, o clima emocional pode operar milagres. Getúlio Vargas recolheu-se a seus aposentos, naquele dia, como um cadáver político – abandonado, vilipendiado, humilhado e sem chance de redenção. Ao amanhecer cadáver de verdade, assestou golpe de mestre nos adversários e garantiu-se o lugar de martirizado por uma causa perante a posteridade. A morte de Eduardo Campos já provocou, se não um milagre, uma primeira grande reviravolta na campanha eleitoral, e pode provocar uma segunda.
A primeira reviravolta foi fazê-lo superar, embora da pior maneira possível, o maior dos desafios que tinha pela frente: tornar-se conhecido. Esse era o motivo pelo qual dormia tão pouco e tanto voava, nestes últimos tempos. Hoje provavelmente superou a todos, até a própria presidente da República, como o candidato mais conhecido da população. A segunda e mais espetacular reviravolta esboça-se no horizonte com o impulso que, morto, pode dar à provável sucessora na candidatura presidencial, a ex-senadora Marina Silva. Quando se formou a surpreendente chapa com Eduardo Campos para presidente e Marina para vice, a expectativa era que Marina, com seus 20% dos votos na eleição passada, alavancaria as pretensões de Campos. Inverte-se agora o quadro, e a memória e o martírio de Eduardo Campos fazem-se de poderosos multiplicadores do potencial de Marina.
Há problemas no caminho. Se Marina fazia um par afinado com Campos, é notória a desafinação com o partido dele, o Socialista, no qual ela se abrigou por mera conveniência, derrotadas suas pretensões de criar o próprio partido. Caso tal estado de coisas impeça a promoção da vice à cabeça da chapa, está pronto o caminho para uma dupla autoimolação: a das aspirações de Marina à Presidência e a do PSB a um papel maior do que o de eterno coadjuvante. Caso se confirme a candidatura de Marina, teremos uma campanha na TV que começará com cenas de Eduardo Campos em ação, lembrará sua sorte ingrata e terá sua figura a servir de fundo à nova candidata. Daí em diante, com o reforço do Sobrenatural de Almeida à ação do Absurdo da Silva, o céu é o limite.
Resta uma palavra sobre o Miguel. Miguel é o bebê de 7 meses que Eduardo Campos deixa órfão de pai, o caçula de seus cinco filhos. Quando ele nasceu, Eduardo Campos escreveu no Facebook: “Hoje os médicos confirmaram o que já estava prédiagnosticado havia algum tempo. Miguel, entre outras características que o fazem especial, nasceu com a síndrome de Down. Seja bem-vindo, querido Miguel. Como disse seu irmão, você nasceu na família certa”. Um pai e uma família que recebem com tanta alegria um filho com síndrome de Down merecem respeito e admiração. Miguel nasceu mesmo na família certa.
Reynaldo-BH: Para fingir que não é política, a Protetora das Saúvas persegue o poder com a fantasia de retirante de butique
REYNALDO ROCHA
Um dia o prefeito da maior capital do país se definiu como alguém que não era de centro, nem de direita e nem de esquerda. Entendi que ele era de baixo.
Agora temos uma política profissional – sempre viveu disso – repetindo o discurso de Collor: cuidado com os políticos (os outros). O perigo maior é ela própria.
Messiânica, com ar de retirante de butique, seringueira de Brasília e acusadora de todos os que ousam discordar do que diz, Marina Silva faz lembrar o que de pior temos nestas terras tupiniquins: o antigo PT, dono de ética e das verdades. Deu no que sabemos. Difícil escolher entre o descaramento explícito e a desfaçatez silenciosa.
Uma escolha entre Dilma e Marina não é sequer um plebiscito. É uma roleta russa. Envolta em panos (caros) e echarpes (mais ainda), Marina se porta frente aos marineiros como guru a ser idolatrado. Concorda com tudo e não assume nada. Diz platitudes que, se não têm consistência, ao menos entendemos. Entendemos?
Como uma madre Teresa do Acre, cultiva a figura que tenta ser uma Quixote de saias. Mesmo sendo um Sancho Pança famélico.
Não é contra nada. Mas sempre longe de ser a favor de algo, pois para ser a favor é preciso ter ideias.
Dizer-se sucessora de dois ex-presidentes é o cúmulo da prepotência. Quer ser a continuidade e oposição ao mesmo tempo. Quer ser herdeira sem ter sido aliada de um deles. Pelo outro foi usada e usou a imagem de pobres e nordestinos. Uma falta de vergonha e compostura que envergonha qualquer povo da floresta, da cidade ou do butequim.
Quem em sã consciência é contra a luz elétrica? Ter como programa o apoio à luz elétrica é tão assustador quanto pretender ser presidente e contar com quadros (que a Rede de Embalar Idiotas não tem) de outros partidos. Um ministério com Aloysio Nunes e José Dirceu? Com Álvaro Dias e Ideli? Todos irmanados em mantras matinais quando a salvadora e casta presidente adentrar qualquer ambiente?
Marina Silva é um engodo. A Rede sabe disso. Eduardo Campos também sabia. O que ela tem de valioso são os votos de quem, sem entender o que diz, prefere uma frase com pé e sem cabeça a frases sem uma coisa nem outra, como as despejadas por Dilma. É pouco. Muito pouco.
Tancredo morreu e herdamos Sarney. Eduardo deixou essa coisa amorfa e arrogante que se julga a nova dona do Brasil
Triste destino nos tem dado a Velha Senhora. Joga com a vida e morte escolhendo o absurdo para além da morte em si.
Marina escolheu o PSB por falta absoluta de opção. Continua apoiando petistas do Acre e do Rio de Janeiro. Continua sem saber que economia é ciência matemática e não slogan de sonháticos e pesadeláticos.
Continua a criar uma seita, que neste início é ainda mais sectária que o PT.
Acha que em se plantando tudo dá, mesmo que seja no quintal das casas dos protegidos pela falta de estrutura. Não enxerga o agronegócio. Assim como o idiotizado Suplicy (isso explica a amizade que os une) é monotemática. Alguém se lembra de UMA ÚNICA palavra de Marina sobre a saúde e os médicos cubanos? Ou a agressão a Yoani Sanches? Política fiscal? Inflação? Política de desenvolvimento da indústria? Agências reguladoras? Sobre os 39 ministérios e Ali Lula Babá? Sobre a amante Rosemary? Sabe-se o que ela pensa sobre política externa? Infraestrutura? Exportações? Política de emprego e renda?
São detalhes para os marineiros. Na visão tacanha desse grupo, que lembra antigos bandos de hippies em Arembepe, mais importantes são os povos da floresta, a plantação de mandioca e a sustentabilidade que NUNCA foi explicada com clareza.
Marina é insustentável. Insuportável. Despreparada. Fruto de um destino cruel com Eduardo Campos. Dona da verdade. Aproveitadora de partidos e lutas que não são dela.
Marina é – esta sim – um Collor repaginado.
O Caçador de Marajás saiu do Planalto a pontapés do Planalto (aliás, onde estava Marina naquela época?). Quem está tentando entrar é a Protetora das Saúvas, uma praga que agora age em rede.
CÃO BRAVO
Naquela casa tinha uma
placa
De cuidado com o cão bravo
Mas depois algumas
desavenças entre vizinhos
Descobriu-se que o cão não
era de nada
E que quem mordia mesmo
era o seu dono.
Ciência
“O maior pecado contra a mente humana é acreditar em coisas sem evidências. A ciência é somente o supra-sumo do bom-senso – isto é, rigidamente precisa em sua observação e inimiga da lógica falaciosa.”
Thomas Henry Huxley
Princípios
Já que somos imperfeitos,carregamos nas costas uma gama enorme de defeitos de todo tipo.Porém o mais desprezível,o mais torpe de todos os sujeitos é aquele que deixa seus princípios de lado para trocá-los por dinheiro,poder ou fama.Rasteja pelo chão,oh vil miserável!No dia em que fores deixar essa vida,verás que mais vale morrer em paz do que falecer tendo o próprio rabo enrolado no pescoço.Ande pela terra procurando fazer o melhor que manda a tua consciência e não acreditar que os que te pagam estão sempre certos.Se caminhares pela trilha da justiça, terás uma morte cantada em verso e prosa,além das lágrimas verdadeiras daqueles que te amaram por suas idéias e atos.
ÔNIBUS BRASIL
Um ônibus lotado de turistas brasileiros subia pelos Andes, abismos assustadores deixavam inquietos os passageiros. O veículo apresentava ruídos estranhos, que todos a bordo notaram. Por diversas vezes foram falar com o motorista sobre isso, que apenas dizia: “tudo normal, logo ali na frente vai parar.” Assim foi até que o ônibus despencou pela ribanceira. Quando parou lá embaixo, um dos viajantes que não estava totalmente quebrado perguntou para o colega:
”Como é mesmo nome desse motorista filho da puta?”
“Parece que é Mantega”, respondeu o outro se esvaindo em sangue.
Janer Cristaldo- MAIS UMA TOMADA DE TRÊS PINOS
Nem foi ainda consolidado o último acordo ortográfico e o Senado nos propõe outra tomada de três pinos. Pois reformas ortográficas e tomadas de três pinos em muito se parecem. Inocentes e inócuas inovações, à primeira vista, servem para locupletar as burras dos manipuladores da indústria do inútil.
Leio nos jornais que o projeto “Simplificando a Ortografia”, idealizado por um tal professor Ernani Pimentel, ganhou destaque na Comissão de Educação da casa. O objetivo do projeto, segundo o professor, é criar uma língua portuguesa com um menor número de regras, para tornar seu aprendizado mais rápido e eficaz.
Ou seja, ainda não é consenso o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990 por Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e mais tarde Timor-Leste, e já temos mais uma reforma. Fruto dos sumos bestuntos da Academia Brasileira de Letras (leia-se Antonio Houaiss, que já tinha pronto seu dicionário na nova ortografia proposta) e da Academia das Ciências de Lisboa, o acordo entrou em vigor no início de 2009 no Brasil e em 13 de maio de 2009 em Portugal, embora os lusos, os pais da língua, até hoje hesitem em adotá-lo. Foi estabelecido nos dois países um período de transição em que tanto as normas anteriormente em vigor como a introduzida por esta nova reforma são válidas: esse período era de três anos no Brasil (foi estendido agora para 2018) e de seis anos em Portugal.
Os brasileiros, como que obedecendo uma ordem divina, adotaram o acordo no dia seguinte, sem que nenhuma sanção recaísse sobre quem não o adotasse. Que os editores se apressassem em ratificá-lo, entende-se: muda-se uma letrinha cá, outra acolá, retira-se o trema, o hífen e alguns acentos cá e lá, e bilhões de reais vão para a indústria editorial. Mais ou menos como a tomada de três pinos.
O que não se entende é como a imprensa e as universidades se dobraram imediatamente às novas regras, sem ter por quê: se não há sanção para quem descumpre uma lei, tanto faz como tanto fez cumpri-la ou não.
Vamos ao novíssimo projeto. Entre as medidas estudadas pela Comissão, está a eliminação do “x” com som de “z” e a substituição do fonema “ch” pelo “x”. Desta forma, palavras como “exibir” e “chefe” passariam a ser escritas “ezibir” e “xefe”. As sílabas “ce” e “ci” também seriam extintas: censura passaria a ser “sensura” e palavras cidade seria escrita “sidade”. Palavras iniciadas em “qu” também receberiam alterações: uma das propostas é eliminar o “u”, o que transformaria palavras como “queijo” e “qualidade” em “qeijo” e “qalidade”.
Segundo o professor Ernani, a necessidade da simplificação ortográfica reside principalmente no fato da grande dificuldade de lecionar a língua. Traduzindo: leia-se má formação de alunos e mesmo de professores que, por não cultivarem o hábito da leitura, não conseguem escrever corretamente.
De acordo com o autor do projeto, os professores gastam atualmente 400 horas para ensinar ortografia. Após a reforma, esse tempo passaria para 150: “com 150 horas você pode ensinar com muito mais eficiência o que 400 horas não ensinam. E isso significa muito dinheiro. Só pra você ter uma ideia, essas 250 horas significam 2 bilhões (…) por ano em educação e economia, porque você pode tá aplicando em outras coisas que o aluno precisa aprender”, afirmou.
Quanto bihões custará a segunda reforma, proposta apenas cinco anos após a primeira? O professor Ernani e o Senado estão brincando com o dinheiro dos cidadãos.
O projeto de simplificação ainda prevê eliminar o “h” no início de palavras como “hoje” e “hora” (que passariam a ser escritas “oje” e “ora”).
“Então, como é que se resolve esse problema da dúvida do h inicial?” – pergunta-se o professor – “Existe uma regra básica que é: consoante não pronunciada, não se escreve. Então joga-se todo h inicial fora e aí você vai ter o que o italiano já fez. (…) E então você não tem mais dúvidas para escrever. E isso é economia, é qualidade de vida de quem tá escrevendo”, afirma o professor. Sem notar que com a água do balde vai junto a criança: perde-se a noção de etimologia. Segundo a novíssima ortografia, escreveríamos então omem, otel, oje, umor, flexa, maxo bluza, ezame, êzito, amasar, asúcar, moso, ausílio, múzica, deuzes e daí por diante. Uma festa para os analfabetos.
Sem falar que a proposição do professor Ernani nada tem de original. A primeira proposta de reforma semelhante foi feita ainda no século XIX, pelo gaúcho Qorpo Santo. Republico abaixo crônica que escrevi há sete anos. O que talvez diga algo sobre as inspirações do professor. A propósito, leia Qorpo Santo de Corpo Inteiro: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/qorposanto.html
NÓS, QORPO E A REFORMA *
O qe doe, o qe eizaspera, o qe qonfrange ainda a vontade a mais forte – é ter lutado inseçantemente qontra os autores de tantos qrimes: qonseguido auciliado de tantos outros qe igualmente padecião – derribar este poder qorruto: essas autoridades immoraes qe o eizersião: haverem subido ou occupado seus distintos lugares de tão grande número daqeles qe os qombaterão; q os derribarão; e ainda assim – estarem sendo protelados nossos direitos por alguns de taes qriminosos há mais de trez, há mais de quatro anos. (Novembro 8 de 1868)
Que assim escrevia, há praticamente dois séculos atrás, era José Joaquim Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). Gaúcho de Triunfo, interior do Rio Grande do Sul, Qorpo Santo foi vereador, delegado de polícia, professor, jornalista, dramaturgo. Em 1861, começou a escrever sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade, de onde extraí o texto supra.
Suas peças nunca foram encenadas durante sua vida. Foi tido como louco e não era para menos. Consta que trancou a porta de sua casa e entrava pela janela. Sabe-se também que andou arrastando sua mulher pelos cabelos pela Rua da Praia. Não via objeção alguma em mulheres no serviço militar.
Enquanto os homens lutavam, as mulheres deitavam-se e pariam novos soldados. Seu teatro só foi descoberto, um século depois, pelos esforços de Aníbal Damasceno Ferreira, hoje professor de cinema na PUC de Porto Alegre.
Há toda uma intriga sórdida em sua ressurreição. Um professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Guilhermino César da Silva, que escreveu uma História da Literatura do Rio Grande do Sul, na qual ignorou solenemente a existência de Qorpo Santo, pretendeu roubar a descoberta de Aníbal Damasceno, quando o dramaturgo se tornou nome nacional.
Mas não era disto que pretendia falar, e sim da reforma ortográfica proposta por Qorpo ao escrever. Em seus textos, ela é apresentada de forma incoerente, nem sempre mantendo uma unidade. Em suma, o som de cá do C passa a ser assumido pela letra Q. O C assume o som de S sibilante, embora o S também permaneça com a mesma função. Qorpo também admite o Ç como sibilante. Vê-se que o maluco da Rua da Praia intuiu a necessidade de uma reforma ortográfica, já no final do século XIX, mas não chegou a sistematizá-la. No entanto, sem nem sonhar com Internet, Qorpo Santo antecipou, há dois séculos, o uso do Q no internetês.
Nos anos 60, em Dom Pedrito, sem nunca termos ouvido falar de Qorpo Santo - que naquela época permanecia envolto pelo pó de algumas raras bibliotecas - três ou quatro estudantes de 15 e poucos anos, elaboraram um novo sistema ortográfico nacional. Eu era um deles, mas não o autor da reforma. Este mérito é de Danilo Morales, meu colega de ginásio, científico e mais tarde Filosofia.
Eliminamos algumas letras inúteis do sistema ortográfico. O C tinha sempre o som de K, o S de sibilante, e nunca assumia o som de Z, quando entre vogais. O Z assumia seu próprio som, como em rezar, e também o de X, como em exame. O X ficava apenas com o som de CH, como em xadrez, e substituía definitivamente o CH em qualquer palavra. Eliminávamos o SS, o CH, o K, o Ç, o Q e o QU e o trema. K, Y e W - nomes próprios à parte - também não tinham lugar em nossa ortografia.
Como a de Qorpo Santo, era uma ortografia antietimológica. Os étimos eram ignorados em nossa reforma. Nosso critério era, como no alemão, o fonético. Batizamos nosso achado como o Novo Sistema Ortográfico Eclético-nacionalista.
Claro que ninguém levou a sério nossa proposta. Nem nossas mães, que não gostavam de nos ver reunidos, tentando reformar o homem, a língua e o mundo. Expulsos de casa, nos refugiávamos nos raros bares de Dom Pedrito. Mas os bares fechavam cedo. Expulsos dos bares, nos refugiávamos nos bordéis, únicos lugares que admitiam tertúlias madrugadas adentro.
Nossas tertúlias não tiveram futuro. Sempre preocupados com os homens e o mundo, pouco nos interessava fazer o que se faz num bordel. Por um lado, não tínhamos dinheiro. Por outro, mulher era coisa que nos assustava um pouco. Com o tempo, as profissionais colocaram uma atalaia na janela. Quando apareciam os “filósofos” na esquina, as mulheres fechavam a casa. De nós, saía no máximo a grana da cerveja.
Mas isto é outra história. Assim se perdeu no oblívio, como o de Qorpo Santo, um excelente projeto de reforma ortográfica. A meu ver, bem mais radical e eficaz que o agora proposto.
* 14/09/2007
Leio nos jornais que o projeto “Simplificando a Ortografia”, idealizado por um tal professor Ernani Pimentel, ganhou destaque na Comissão de Educação da casa. O objetivo do projeto, segundo o professor, é criar uma língua portuguesa com um menor número de regras, para tornar seu aprendizado mais rápido e eficaz.
Ou seja, ainda não é consenso o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990 por Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e mais tarde Timor-Leste, e já temos mais uma reforma. Fruto dos sumos bestuntos da Academia Brasileira de Letras (leia-se Antonio Houaiss, que já tinha pronto seu dicionário na nova ortografia proposta) e da Academia das Ciências de Lisboa, o acordo entrou em vigor no início de 2009 no Brasil e em 13 de maio de 2009 em Portugal, embora os lusos, os pais da língua, até hoje hesitem em adotá-lo. Foi estabelecido nos dois países um período de transição em que tanto as normas anteriormente em vigor como a introduzida por esta nova reforma são válidas: esse período era de três anos no Brasil (foi estendido agora para 2018) e de seis anos em Portugal.
Os brasileiros, como que obedecendo uma ordem divina, adotaram o acordo no dia seguinte, sem que nenhuma sanção recaísse sobre quem não o adotasse. Que os editores se apressassem em ratificá-lo, entende-se: muda-se uma letrinha cá, outra acolá, retira-se o trema, o hífen e alguns acentos cá e lá, e bilhões de reais vão para a indústria editorial. Mais ou menos como a tomada de três pinos.
O que não se entende é como a imprensa e as universidades se dobraram imediatamente às novas regras, sem ter por quê: se não há sanção para quem descumpre uma lei, tanto faz como tanto fez cumpri-la ou não.
Vamos ao novíssimo projeto. Entre as medidas estudadas pela Comissão, está a eliminação do “x” com som de “z” e a substituição do fonema “ch” pelo “x”. Desta forma, palavras como “exibir” e “chefe” passariam a ser escritas “ezibir” e “xefe”. As sílabas “ce” e “ci” também seriam extintas: censura passaria a ser “sensura” e palavras cidade seria escrita “sidade”. Palavras iniciadas em “qu” também receberiam alterações: uma das propostas é eliminar o “u”, o que transformaria palavras como “queijo” e “qualidade” em “qeijo” e “qalidade”.
Segundo o professor Ernani, a necessidade da simplificação ortográfica reside principalmente no fato da grande dificuldade de lecionar a língua. Traduzindo: leia-se má formação de alunos e mesmo de professores que, por não cultivarem o hábito da leitura, não conseguem escrever corretamente.
De acordo com o autor do projeto, os professores gastam atualmente 400 horas para ensinar ortografia. Após a reforma, esse tempo passaria para 150: “com 150 horas você pode ensinar com muito mais eficiência o que 400 horas não ensinam. E isso significa muito dinheiro. Só pra você ter uma ideia, essas 250 horas significam 2 bilhões (…) por ano em educação e economia, porque você pode tá aplicando em outras coisas que o aluno precisa aprender”, afirmou.
Quanto bihões custará a segunda reforma, proposta apenas cinco anos após a primeira? O professor Ernani e o Senado estão brincando com o dinheiro dos cidadãos.
O projeto de simplificação ainda prevê eliminar o “h” no início de palavras como “hoje” e “hora” (que passariam a ser escritas “oje” e “ora”).
“Então, como é que se resolve esse problema da dúvida do h inicial?” – pergunta-se o professor – “Existe uma regra básica que é: consoante não pronunciada, não se escreve. Então joga-se todo h inicial fora e aí você vai ter o que o italiano já fez. (…) E então você não tem mais dúvidas para escrever. E isso é economia, é qualidade de vida de quem tá escrevendo”, afirma o professor. Sem notar que com a água do balde vai junto a criança: perde-se a noção de etimologia. Segundo a novíssima ortografia, escreveríamos então omem, otel, oje, umor, flexa, maxo bluza, ezame, êzito, amasar, asúcar, moso, ausílio, múzica, deuzes e daí por diante. Uma festa para os analfabetos.
Sem falar que a proposição do professor Ernani nada tem de original. A primeira proposta de reforma semelhante foi feita ainda no século XIX, pelo gaúcho Qorpo Santo. Republico abaixo crônica que escrevi há sete anos. O que talvez diga algo sobre as inspirações do professor. A propósito, leia Qorpo Santo de Corpo Inteiro: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/qorposanto.html
NÓS, QORPO E A REFORMA *
O qe doe, o qe eizaspera, o qe qonfrange ainda a vontade a mais forte – é ter lutado inseçantemente qontra os autores de tantos qrimes: qonseguido auciliado de tantos outros qe igualmente padecião – derribar este poder qorruto: essas autoridades immoraes qe o eizersião: haverem subido ou occupado seus distintos lugares de tão grande número daqeles qe os qombaterão; q os derribarão; e ainda assim – estarem sendo protelados nossos direitos por alguns de taes qriminosos há mais de trez, há mais de quatro anos. (Novembro 8 de 1868)
Que assim escrevia, há praticamente dois séculos atrás, era José Joaquim Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). Gaúcho de Triunfo, interior do Rio Grande do Sul, Qorpo Santo foi vereador, delegado de polícia, professor, jornalista, dramaturgo. Em 1861, começou a escrever sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade, de onde extraí o texto supra.
Suas peças nunca foram encenadas durante sua vida. Foi tido como louco e não era para menos. Consta que trancou a porta de sua casa e entrava pela janela. Sabe-se também que andou arrastando sua mulher pelos cabelos pela Rua da Praia. Não via objeção alguma em mulheres no serviço militar.
Enquanto os homens lutavam, as mulheres deitavam-se e pariam novos soldados. Seu teatro só foi descoberto, um século depois, pelos esforços de Aníbal Damasceno Ferreira, hoje professor de cinema na PUC de Porto Alegre.
Há toda uma intriga sórdida em sua ressurreição. Um professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Guilhermino César da Silva, que escreveu uma História da Literatura do Rio Grande do Sul, na qual ignorou solenemente a existência de Qorpo Santo, pretendeu roubar a descoberta de Aníbal Damasceno, quando o dramaturgo se tornou nome nacional.
Mas não era disto que pretendia falar, e sim da reforma ortográfica proposta por Qorpo ao escrever. Em seus textos, ela é apresentada de forma incoerente, nem sempre mantendo uma unidade. Em suma, o som de cá do C passa a ser assumido pela letra Q. O C assume o som de S sibilante, embora o S também permaneça com a mesma função. Qorpo também admite o Ç como sibilante. Vê-se que o maluco da Rua da Praia intuiu a necessidade de uma reforma ortográfica, já no final do século XIX, mas não chegou a sistematizá-la. No entanto, sem nem sonhar com Internet, Qorpo Santo antecipou, há dois séculos, o uso do Q no internetês.
Nos anos 60, em Dom Pedrito, sem nunca termos ouvido falar de Qorpo Santo - que naquela época permanecia envolto pelo pó de algumas raras bibliotecas - três ou quatro estudantes de 15 e poucos anos, elaboraram um novo sistema ortográfico nacional. Eu era um deles, mas não o autor da reforma. Este mérito é de Danilo Morales, meu colega de ginásio, científico e mais tarde Filosofia.
Eliminamos algumas letras inúteis do sistema ortográfico. O C tinha sempre o som de K, o S de sibilante, e nunca assumia o som de Z, quando entre vogais. O Z assumia seu próprio som, como em rezar, e também o de X, como em exame. O X ficava apenas com o som de CH, como em xadrez, e substituía definitivamente o CH em qualquer palavra. Eliminávamos o SS, o CH, o K, o Ç, o Q e o QU e o trema. K, Y e W - nomes próprios à parte - também não tinham lugar em nossa ortografia.
Como a de Qorpo Santo, era uma ortografia antietimológica. Os étimos eram ignorados em nossa reforma. Nosso critério era, como no alemão, o fonético. Batizamos nosso achado como o Novo Sistema Ortográfico Eclético-nacionalista.
Claro que ninguém levou a sério nossa proposta. Nem nossas mães, que não gostavam de nos ver reunidos, tentando reformar o homem, a língua e o mundo. Expulsos de casa, nos refugiávamos nos raros bares de Dom Pedrito. Mas os bares fechavam cedo. Expulsos dos bares, nos refugiávamos nos bordéis, únicos lugares que admitiam tertúlias madrugadas adentro.
Nossas tertúlias não tiveram futuro. Sempre preocupados com os homens e o mundo, pouco nos interessava fazer o que se faz num bordel. Por um lado, não tínhamos dinheiro. Por outro, mulher era coisa que nos assustava um pouco. Com o tempo, as profissionais colocaram uma atalaia na janela. Quando apareciam os “filósofos” na esquina, as mulheres fechavam a casa. De nós, saía no máximo a grana da cerveja.
Mas isto é outra história. Assim se perdeu no oblívio, como o de Qorpo Santo, um excelente projeto de reforma ortográfica. A meu ver, bem mais radical e eficaz que o agora proposto.
* 14/09/2007
E não é?
“Filhos não devem ser bajulados. Que recebam amor e disciplina na medida certa. Bajulados pelos pais eles inflam como enormes balões que depois ao bater-se contra os espinhos da vida explodem, murcham e só então conhecem a própria realidade.” (Filosofeno)
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“Quando a fome é grande não tem jeito, precisamos apelar. Ontem peleei com um hipopótamo. Quase perdi o pelo.” (Leão Bob)