quarta-feira, 24 de abril de 2019


O VELHO INÁCIO E O DIABO

Noite escura e temporal daqueles, luzes piscando e o vento zunindo. O velho Inácio está sozinho em casa. Batem. Ele atende, na porta está um sujeito vermelho, com chifres e rabo.
-Inácio Brandão?
-Sim.
-Sou o diabo, vim para levá-lo.
-Você disse quiabo? Que nome estranho!
-Não é quiabo, é diabo!
-Pois é o que estou dizendo, quiabo! Mas que tipo de quiabo?
-Você não vê que sou vermelho, tenho chifres e rabo pontudo?
-É fantasia? Muito bem feita.
-Velho tonto, eu venho do inferno, o reino do fogo eterno.
-Entendo que o senhor vem do inverno, e inverno é fogo mesmo. São Joaquim?
-Duro de entender, não é?
-O quê?
-Que sou satã.
-Maçã? São Joaquim terra da maça? É isso? Mas o que é que o senhor quer aqui em São Paulo? Está vendendo maçã?
-Deixa para lá. Vai para o céu seu velho filho da puta!

E o diabo se mandou enquanto grossa chuva caía.



SEU ONOFRE
Gente brava? Conta Seu Onofre, gaúcho velho passado dos noventa, já rengo pelo andar dos anos, que gente brava tinha lá Barra da Foice na década de 1940. Não era lugar para frouxo.  Em velório era proibido choro; toda mulher carregava e manuseava navalha sem problema; o padre Antônio quando aparecia rezava missa de revólver debaixo da batina e até o professou Anacleto que dava aula até a quarta série não tirava o facão da cinta. Até hoje não se sabe se a turma era comportada por respeito ao professor Anacleto ou por respeito ao facão. Diz ele que acabaram com a mata em volta do lugar só fazendo caixão de defunto. Acha mesmo que com tanto resíduo de gente enterrada que no  subsolo da Barra deve ter petróleo.


A MULA SIBA E DOLORES EMA

Pastava Siba Mula numa campo aberto, degustando o capim delicioso, absorta em seus pensamentos quando se achegou a ela Dolores Ema.
-Boa tarde!
-Boa tarde!
-O capim está bom?
-Muito bom.
-Eu sou Dolores Ema, e você?
-Siba Mula.
-Mula?
-Sim, Mula.
-Mas o que é vem a ser uma mula?
-Ora, filha de uma égua com um jumento.
-Pois veja só, eu não sabia disse. Sem conhecer pensei que você era um burro, digo, uma burra.
-Eu também não nunca tinha visto uma como você.
-Sou Dolores Ema.
-Ema?
-Sim, estamos por aí na América do Sul.  Alimentamo-nos de frutas, sementes, folhas de grandes árvores, lagartos, moscas perto de carne em decomposição, cobras, moluscos, peixes entre outros.
-Puxa! Que cardápio!
-Pois sim.
-Conte-me Dolores, você tem família?
-Não amiga, estou só no mundo.
-Tenho uma ideia. Que tal nós visitarmos a Fada da Gruta Dourada e pedirmos para ela nos transformar em humanos? Poderíamos conhecer o mundo todo!
-Pode isso?
-Pode sim, eu mesmo conheci vários animais que se tornaram humanos.
-Vamos logo cara Siba, vamos logo!

Após dias de viagem e cansaço foram ao encontro da Fada da Gruta Dourada para fazer o pedido. Foram bem recebidas e aceitas a transformação das duas em moçoilas de muita beleza.  Porém antes de tudo feito a Fada disse que a transformação teria uma contrapartida, pois de graça nem mesmo injeção na testa: como humanas elas seriam venezuelanas e amantes de Nicolás Maduro. Elas se entreolharam, agradeceram e decidiram voltar aos campos.


ALFREDO E OFÉLIA

Alfredo bom de bico, manco e dependendo da previdência social arranjou uma amante na mesma rua em que morava. Ofélia era o seu nome.  O marido saía para o trabalho, cama ainda quente lá pousava o manco Alfredo. A mulher nada via, pois também saía para trabalhar na maior santa inocência. Idas e vindas o marido foi apresentado ao chifrado como primo mui querido de longa data não visto. Não demorou o pobre corno comprou um automóvel mesmo não tendo habilitação, então foi o Alfredo que era habilitado colocado como motorista da patroa para compras e passeios. Nos finais de semana pescava com o marido, além de levar o casal para festas e outras atividades sociais. Apresentou Ofélia para sua esposa como prima de tal; amigas ficaram para visitas semanais, anedotas, rezas e salgadinhos. Grande família.   O marido não desconfiava de nada, tinha o falso primo da esposa no maior conceito e os amantes gozavam de uma felicidade radiosa.  Mas como nada é para sempre um dia Ofélia engravidou e a casa caiu.  O marido era estéril. Foi o fim do reinado naquela casa de Alfredo, o manco. A mulher o abandonou quando soube e como o marido traído queria fazer um pandeiro do seu couro liso, fugiu para outra cidade. De Ofélia se soube que perdeu a criança e que hoje trabalha numa esquina de má fama.


PACIÊNCIA ESGOTADA
Dentro do supermercado um menino de aproximadamente cinco anos esperneava, gritava e chorava em altos brados sob o olhar complacente da mãe. Já havia ingerido algumas guloseimas e estragados outras, mas não estava satisfeito. A mãe dizia algumas palavras mornas e o pestinha só fazia espernear ainda mais. Alguns clientes já estavam ficando incomodados outros agoniados com a falta de atitude de quem deveria zelar pelo pequeno. Os minutos transcorriam em balbúrdia e irritação. Nisso veio pelo corredor um senhor bem idoso, vestido de maneira simples, tirou o cinto e deu três pegadas firmes nas pernas do moleque que aí sim berrou com vontade. Foi para cima da mãe do garoto e mandou o cinto no lombo dela por mais de oito vezes. O idoso era bem forte, ela ficou imobilizada. Ninguém interveio. Vendo a mãe apanhar o menino parou de chorar e começou a rir. O idoso pensou consigo: “deve ser coisa da educação moderna. ” Saiu do estabelecimento aplaudido.

FUNDAMENTO METAFÍSICO DA LIBERDADE HUMANA

ATHEUS-NET

O PAI DA CRIANÇA
Médico e enfermeira na sala de parto. A parturiente sofria, Romualdo, o pai, que nunca fora um marido exemplar andava de um lado para outro sem parar. Olhava à mulher e o relógio, tinha a impressão que o tempo tinha parado, suava de nervoso. Pediu licença e saiu da sala para fumar, mas não ficou nisso. Correu ao estacionamento e roubou o automóvel do médico que cuidava do parto, automóvel este que usou para fugir com seu amante, que era o marido da enfermeira. Foram vistos pela última vez curtindo praia em Porto Seguro.


MOISÉS


Moisés, podemos dizer, nasceu ladrão. Não tinha sete anos e já roubava bolas de gude, figurinhas e gibis dos amiguinhos. Adolescente, cigarros e bebidas. Um dia seu pai cansado de tudo, pois era um homem de bem, cortou fora suas mãos para que parasse com as gatunagens. Não adiantou. Moisés passou a roubar com os pés.

O JOGO DA VIDA

VIDA APÓS A MORTE


PORCA E PARAFUSO

PARAFUSO-Estive no Bar do Zé. O papo que rola por lá é que tu estás dando mole para um alicate novo na praça. Todos sabem que te adoro e aí zombam de mim.
PORCA-Tu estás é doido. Bem sabes que quem me aperta além de tu é somente a chave de boca que é lésbica.
PARAFUSO-Estou desconfiado, andas com muito desgaste nas beiradas.
PORCA-Basta! Faço minhas malas e volto pra casa de mamãe. Onde está o respeito?
PARAFUSO-Não me engana, nunca foste santa. Lembre-se da história do imã nosso vizinho que te deu uns amassos?
PORCA- Eu era jovem, coisa do passado, melhor esquecer.
PARAFUSO-Passado sim, mas quem carrega os chifres até hoje sou eu.
PORCA-Quer saber? Irei dar uma volta por aí, quem sabe eu encontre mesmo esse novo alicate bonitão dando sopa por aí.
Dito isso saiu arrumou-se e saiu porta afora. O parafuso doente de paixão jogou-se dentro de um tambor de óleo.


NA LOJA DE BEBIDAS
Um uísque Passport puxa conversa com uma Caninha 51.
-E aí irmã, quente não?
-Não sou sua irmã!
-Como não?
-Você é uísque, eu sou cachaça.
-Então não somos irmãos?
-Não.
-Melhor assim.
-Melhor por quê?
-Não sendo irmãos podemos namorar.
-Sai fora! Não gosto de estrangeiros.  Ainda mais se vier com gelo.
-Preconceituosa então, só me faltava essa.
-Sou mesmo assim.
-Nem uma bitoquinha?
-Sem chance.
-Magoei. Tomara que você caia dessa prateleira e se quebre toda!
-É praga é? Então tomara que gelem você com gelo de xixi.
E daquele dia em diante não mais se falaram. Ela não caiu da prateleira e foi vendida para um churrasqueiro. Ele foi gelado com cubos de água de coco e desapareceu feliz.





O QUARTO
Genivaldo veio do interior do Ceará para morar em São Paulo. Arrumou um quarto para morar que na verdade não era nem um terço. Para conseguir abotoar a camisa ele precisava sair para o lado de fora ou nada feito. Dormir e sonhar nem pensar; o sonho ficava do lado na rua em frente. Arranjou uma namorada, mas ele namorava um dentro e ela no sereno ou na chuva. Genivaldo ficou um mês e se cansou daquele cubículo. Aborreceu-se e foi morar dentro de uma caixa de fósforos. De graça.


NA DESPENSA

Um pedaço de queijo dando sopa na despensa. Dois ratos estranhos entram no local ao mesmo tempo. Olham um para o outro e hesitam em avançar sobre o alimento.


-Acho que cheguei primeiro, não?
-Creio que não. Chegamos juntos.
-Temos um impasse. Que faremos? Na sorte?
- Pode ser. Tem aí uma moeda?
-Não.
-Então penso que teremos que decidir no dente?
-Vai ter que ser.
- Antes pense bem, sou mais dentuço.
-Até parece.
-Quer fazer um último pedido? Uma cartinha de despedida?
-Quem deve fazer é você. Tem família?
-Tenho. Cento e cinquenta filhos.
-Família pequena.
-E você?
-Um pouco menor que a sua.
-Deixou testamento?
-Deixei. E...
-Também deixei.
Nisso ouviram uma voz:
-Por que vocês palhaços dois não dividem o pedaço de queijo?
Enquanto pensavam se dividiriam em partes iguais ou não o gato que havia dado a ideia comeu os dois.



NA LUA

ANO DE 2200, fábrica de componentes eletrônicos na Lua. O diretor cansado de tantos erros cometidos por distrações manda um recado para todos os funcionários:

“Senhores, peço encarecidamente pelo bem da empresa e dos vossos empregos que mantenham suas cabeças no mundo da lua. ”