domingo, 14 de dezembro de 2014

Andrea Faggion- Universidade estatal ou vouchers?



Com a crise financeira afetando várias universidades públicas – sendo mais notório o caso da USP, por ser nossa universidade de maior prestígio – liberais já ensaiam o coro com a solução na ponta da língua: privatização. Por princípio, eu mesma tendo a aderir ao coro.

Mas, se privatizarmos o sistema, o que fazer com quem não pode pagar? Para eles, criemos um programa de vouchers, dizem os liberais que gostam de se considerar práticos e realistas, reconhecendo que a sociedade não toleraria a ausência completa de subsídios estatais para o ensino superior.

Nesse sentido, eu gostaria de ponderar que a combinação nefasta entre recursos públicos e iniciativa privada tende a ser ainda mais deletéria que a completa estatização do ensino superior. Explico meu ponto.

Suponhamos que o governo privatize todo o sistema de universidades estatais e federais. O passo seguinte seria a implementação do tal programa de vouchers, para garantir o acesso do aluno oriundo de classes econômicas mais baixas ao sistema privatizado.

Ora, se o governo concede vouchers para uso exclusivo na educação, em vez de, por exemplo, garantir uma renda mínima a jovens carentes, para que gastem como bem entenderem, então o governo precisa determinar em quais instituições esses vouchers podem ser usados.

Não faz sentido pagar vouchers para o ensino superior e, ao mesmo tempo, reconhecer todo e qualquer serviço prestado como ensino superior. Imagine, por exemplo, que alguém poderia abrir uma “universidade”, cuja metodologia de ensino consistisse unicamente na exibição dos filmes comerciais em cartaz nos principais cinemas. Isso, claro, em troca de vouchers que ele converteria em dinheiro com o governo.

Claro que isso desvirtuaria a ideia do pagamento de vouchers para educação em vez de dinheiro em espécie para qualquer fim. Por isso, pagamento de vouchers para educação superior implica em regulamentação do que o governo reconhece como ensino superior, o que tem sua chancela. Bom, é aqui que a vaca vai para o brejo e não sai mais do atoleiro.

Nós bem sabemos como funciona o mercado do ensino superior atualmente. Podemos nos amparar na realidade atual para encontrarmos evidências para julgarmos um possível sistema de vouchers. Hoje, existe um mercado de universidades privadas que possuem o direito de conceder um documento com o carimbo do MEC. O documento com o carimbo do MEC passou a ter algum valor, independentemente de qual instituição o emite, afinal de contas, será sempre uma instituição chancelada pelo MEC. Com isso, gerou-se demanda por esse documento, muitos mais do que pelos cursos em si. O curso passa a ser visto, no mais das vezes, como um meio para a obtenção do documento. Que tipo de lógica existe nesse mercado? A instituição que conseguir encontrar o meio mais fácil para o aluno colocar as mãos nesse documento – sem perder o carimbo do MEC, naturalmente – ganha uma enorme fatia do mercado.

Vocês já prestaram atenção nas propagandas atuais de universidades privadas? Elas não fazem a menor questão de disfarçar que o diferencial do seu produto é a facilidade para obtenção de um pedaço de papel com o carimbo do MEC. Assim, agora, imagine que os estudantes passem a receber diretamente todos os recursos públicos destinados à educação, para que eles então decidam em qual universidade, dentre aquelas chanceladas pelo MEC, eles vão investir esses recursos. Parece-me natural, com base na experiência atual, imaginarmos que esses alunos, via de regra, escolherão a universidade que oferecer o caminho menos tortuoso para o fim comum do diploma.

Agora, o que acontece quando uma universidade recebe diretamente os recursos do governo, e não precisa disputar estudantes para ser financiada com dinheiro público? Simples, ela não precisa lutar para atrair o aluno que não admite ser reprovado. Isso é uma constatação de fato. Na imensa maioria das universidades privadas, o aluno não pode ser reprovado. Na verdade, ele não pode nem sequer ser contrariado. Eu nunca me esquecerei de um episódio que vivenciei há anos, enquanto aguardava o ônibus em um ponto em frente a uma universidade particular. Os alunos ridicularizavam um professor que, pasmem, tinha pedido que fizessem uma pesquisa. Eles honestamente pareciam ver como um absurdo que o professor demandasse tal tarefa da parte deles. Achavam que o professor estava transferindo para eles, os alunos, as suas próprias responsabilidades. Ao aluno, afinal, só caberia se sentar em uma cadeira quase diariamente por alguns anos, para, finalmente, receber o tal diploma.

Dentro das universidades públicas, já enfrentamos problemas seríssimos com esse tipo de atitude por parte dos graduandos. Todavia, temos mais autonomia para lidarmos com a situação. Em suma, ainda podemos verdadeiramente cobrar tarefas do aluno e avaliar seu desempenho nelas. Se ele desistir por considerar muito trabalho, problema dele. A universidade não perde recursos por isso.

Agora, seria um erro acreditarmos que é o mercado que subverte a lógica do ensino superior, relegando o aprendizado para o segundo plano. Por quê? Ora, imaginemos agora que não existe mais MEC. Isso mesmo! O governo não vai mais regulamentar o ensino superior. E, sim, com isso, acabaram-se os vouchers para educação. Agora, sim, temos uma autêntica situação de livre mercado do ensino superior.

O que aconteceria? Pense no destino imediato daquela faculdade da esquina cujo único produto comercial era um papel carimbado pelo MEC. Game overpara ela! No outro dia, ela não terá mais um único aluno.

Mas qual universidade ainda terá alunos? Simples, aquela que puder emitir um papel timbrado por ela mesma, de tal forma que esse timbre abra portas no mercado de trabalho. O certificado dessa universidade será visto pelo seu futuro empregador como uma garantia de que ele não ficará desapontado com seu trabalho.

Sim, meus amigos, em um livre mercado do ensino superior a universidade, pasmem, teria que formar mão-de-obra especializada para as reais demandas do mercado. As demandas das empresas contratantes é que ditariam, ainda que indiretamente, quais cursos existiriam e quais seus currículos.

E os alunos pobres? Já que estamos sem os vouchers, um aluno brilhante, porém pobre, não seria um talento desperdiçado? Pensemos no seguinte. A universidade que pode garantir boa formação aos empregadores seria uma universidade concorrida pelos aspirantes a boas posições no mercado de trabalho. Como uma instituição poderia provar que é esse tipo de universidade? Simples, mostrando quantos alunos formados por ela estão bem empregados.

Ora, essa instituição, mais do que qualquer outra, tem interesse em alunos brilhantes. Para ela, é um investimento ensinar de graça o aluno no qual ela reconhece um grande potencial. Quando esse aluno se tornar o CEO de uma multinacional, ele será a sua maior propaganda.

Mas tem outro problema. E a ciência pura? E a sua amada filosofia, Andrea? Pois bem, um projeto de pesquisa em filosofia custa muito, mas muito pouco em comparação com um projeto de pesquisa em desenvolvimento tecnológico ou qualquer ciência aplicada. Meus experimentos, afinal de contas, são experimentos de pensamento.

Para uma universidade que se tornasse uma empresa de sucesso no mercado, manter alguns projetos de pesquisa em filosofia seria um investimento muito pequeno para um retorno muito grande. Por que um retorno muito grande? Simples, porque eu (mas não apenas eu) honestamente acredito que a filosofia possa contribuir com a formação de grandes gestores em um mundo dinâmico e complexo como o de hoje. A simples competência para a adoção de diferentes perspectivas de análise sobre um mesmo problema – competência que é bem característica da filosofia – já justificaria o desenvolvimento e o ensino de conteúdos filosóficos quaisquer em uma empresa de ensino superior.

Para sintetizar, o meu ideal de ensino superior é a mais absoluta desregulamentação, com subsídio estatal zero. Que a sobrevivência no mercado seja a chancela de uma boa universidade. Agora, se vocês quiserem manter o financiamento estatal e, por conseguinte, a regulamentação governamental, pelo amor de Deus, mantenham as universidades públicas, porque o livre mercado de diplomas atestados pelo MEC é só uma máquina de moer dinheiro público sem propósito algum.

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