domingo, 14 de dezembro de 2014

Andrea Faggion- Anarco-capitalismo e governo limitado



Sou da opinião que a conversão ao anarco-capitalismo constitui apenas um pequeno passo para um liberal em sentido clássico ou ortodoxo. Acho muito fácil explicar a lógica anarco-capitalista para liberais, ao passo que é quase impossível alcançar aquela agradável sensação de que fomos compreendidos quando anarco-capitalistas discutimos com o proponente de qualquer outra teoria política. Naturalmente, isso se dá, porque existem argumentos morais no coração do anarco-capitalismo que se baseiam em premissas que o liberal aceita sem hesitação.

Mas este post não trata dessas questões morais. Este post tampouco pretende converter alguém ao anarco-capitalismo. Este post apenas convida o liberal, defensor do governo limitado, a compreender as razões pelas quais anarco-capitalistas não acreditamos que a defesa do monopólio da força seja consistente com a ideia de governo limitado.

O ponto é simples. Se a força é monopolizada, não há força externa se contrapondo a ela para limitá-la. Toda força está concentrada dentro do monopólio. Como os liberais clássicos conceberam então o auto-limite do poder do Estado? Sabemos que, historicamente, eles confiaram em duas estratégias principais: a constituição e a separação dos poderes.

Ora, para analisarmos, ainda que a grosso modo, essas duas estratégias, temos que ter em vista o caso americano. Mas por que não falamos do nosso próprio país? Simples! No Brasil, a constituição não foi concebida para limitar o poder do Estado. Muito pelo contrário! A constituição brasileira, ao converter praticamente todo e qualquer bem em um direito, amplia o poder do Estado a uma escala inimaginável. Até a família é definida no texto de nossa constituição!

No tocante à separação dos poderes, tampouco, com ela, se tem em vista a limitação do Estado brasileiro. Ensina-se, nos cursos de direitos constitucional – os quais, não por acaso, dificilmente, são ministrados por professores liberais -, que a separação dos poderes tem em vista harmonizar o poder da república, e não limitá-lo.

A história do Brasil nada tem de liberal. Aqui, praticamente ninguém quer limitar o poder do povo sobre si mesmo. Como tenho defendido neste blog, a negação do liberalismo consiste justamente na crença de que a liberdade consiste no auto-governo do povo, e não na não-interferência sobre a vida do indivíduo. O Estado brasileiro é organizado em torno dessa concepção política. Vejamos, por outro lado, o caso americano.

A constituição americana, tão diminuta até no volume quando comparada à nossa, foi explicitamente feita para limitar o poder do Estado. Ela nasce em um contexto em que os chamados “Pais Fundadores” temiam que a união esmagasse os estados que estavam para ser unidos. Ela é um documento feito para limitar o poder dessa união, o poder de todos os estados unidos sobre cada um dos estados unidos. Por isso, ela diz expressamente que a federação não pode fazer nada que não esteja autorizado no documento. Tudo que a constituição não autoriza explicitamente a união a determinar, segundo a constituição, cada estado deve decidir para si. Ora, se você ler o documento e constatar o que especificamente é delegado para a união, você verá o protótipo do governo limitado.

Bom, agora, depois de ler o documento, olhe para o que, de fato, faz a união americana, com sua dívida trilionária, e me diga se o governo americano tem agido historicamente como um governo constitucionalmente limitado. Não é à toa que os partidários de Ron Paul costumavam bradar durante sua última campanha em primárias presidenciais: “Paul Revolution, Back to the Constitution”.

Por que o governo respeitaria um documento que limita seu poder, quando ninguém tem força o bastante para empunhar uma arma contra ele e fazê-lo cumprir esse contrato? A história está aí para mostrar como um fato que o monopolista da força não cumpriu o contrato que limitava sua força, o que, convenhamos, não deveria ser nenhuma surpresa.

Compare a lógica anarco-capitalista com a lógica contratualista hobbesiana. Hobbes acredita que o Leviatã não tenha qualquer contrato conosco, exatamente porque não faz sentido que alguém possa obrigar o Leviatã a cumprir um contrato. Ele deixaria de ser o Leviatã se pudesse ser forçado por outro ao que quer que seja. Assim, o Leviatã é o “enforcer” de todos os contratos, mas, por isso mesmo, ele próprio não pode firmar contratos.

Ora, como anarco-capitalista, eu acredito que precisamos ter contrato mesmo com o “enforcer” dos contratos, porque eu acredito no direito do indivíduo de não se submeter irrestritamente a ninguém. Acredito que todo liberal compartilhe dessa mesma convicção não absolutista. Mas, se existe contrato entre nós e o governante, deve haver um outro “enforcer de contratos” para forçar o governante a cumprir o contrato conosco. Em outras palavras, não pode haver monopólio do uso da força.

Claro que o estatista, apressadamente, vai dizer que estou caindo em um regresso ao infinito, afinal, eu precisaria de ainda outro “enforcer de contratos” para forçar aquele que forçou o governante a cumprir o contrato comigo para também força-lo a cumprir seu contrato comigo, e assim ao infinito. Porém, penso que a resposta a esse aparente paradoxo seja simples. Quando o poder está pulverizado, descentralizado, o limite é exercido reciprocamente, não linearmente, como se pressupõe na acusação de regresso ao infinito.

Assim, em suma, se o liberal, ao contrário do hobbesiano, acredita que o próprio governante está sob um contrato que limita seu poder, ele tem boas razões para acreditar na quebra do monopólio do uso da força.

Mas aqui entra a segunda estratégia liberal para limitação do poder do Estado. Não seria o bastante dividirmos internamente os poderes em legislativo, executivo e judiciário? Eu diria que essa divisão ameniza em muito a tirania da maioria. Considero a República liberal um mal muito menor que, por exemplo, a democracia direta, o famoso “assembleismo” ilimitado. Mas, não, não me parece que seja o bastante, exatamente porque, em última instância, todo poder emana da maioria do povo.

Os juízes dos tribunais judiciários são indicados pelos membros dos outros poderes, notadamente, pelo executivo, mas, normalmente, com aprovação do legislativo. Por que indicariam um juiz comprometido em diminuir-lhes o poder? Já o executivo tem vínculos viscerais com o legislativo por meio do seu partido político. Pensa-se até que o ideal seja que o portador do poder executivo seja do mesmo partido que possui maioria no legislativo. Regimes parlamentaristas são até estruturados em torno desse fim. Precisa dizer que o poder não será limitado sempre que isso acontecer?

Parece-me que o raciocínio do parágrafo acima provê razões para aqueles que, ainda hoje, simpatizam com o regime monárquico, claro, com poderes de fato atribuídos ao monarca. A ideia seria justamente garantir a imparcialidade do executivo, por excluí-lo do processo partidário. Nesse sentido, se defende também que o detentor do poder executivo não possa ter propriedade privada, além de outros artifícios do gênero.

Mas será que aquele que não depende de votos e nem pode acumular propriedade privada seria incorruptível? Não teria nenhum outro motivo para compactuar com o que quisesse fazer a maioria? Não poderia ser ele próprio aquele que mais quer justamente estender o poder do governo sobre o indivíduo? Se você tem o monopólio do poder por tempo indefinido, você precisa de terras e dinheiro como pessoa privada? Para quê? A democracia não surgiu exatamente pelas tendências corruptas e opressoras da monarquia?

O que fazer então? A proposta anarco-capitalista é simples: acabem com o monopólio. Que cada um seja um “enforcer” de contratos ao menos em potencial. A ideia chave aqui é que não há limite melhor para o poder do que um outro poder externo a ele. Como gostamos de dizer, atiradores entram atirando em escolas e cinemas. Ninguém entra atirando em um club de tiro.

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