quarta-feira, 22 de março de 2017

A interrupção voluntária do pensamento Desidério Murcho- 2

Como funciona uma revista acadêmica séria de filosofia? Do seguinte modo: em primeiro lugar, há uma política editorial — algures na revista, em geral na contracapa, há um texto que define o tipo de artigos que a revista quer publicar; pode ser uma revista de filosofia da religião ou de qualquer área da filosofia, ou de fenomenologia, ou de lógica. Em segundo lugar, há uma morada para onde as pessoas devem enviar os seus artigos.
Quando uma submissão é recebida, só o secretário ou outra pessoa sabe quem é o autor da submissão. Essa pessoa leva então o artigo à Direção, sem o nome do autor. A Direção estuda o artigo para determinar qual é o melhor especialista da área a quem deve pedir um parecer. Envia-se o artigo ao consultor, que dá um parecer à Direção, dizendo se acha o artigo competente ou não, independentemente de concordar ou não com o seu conteúdo — e sem que a Direção ou o consultor saibam quem é o autor do artigo. Se o parecer do consultor for demasiado ambíguo ou insatisfatório, a direção poderá enviar o artigo a outro consultor, para ter uma segunda opinião. E é com base nestes relatórios que se toma a decisão: publica-se ou recusa-se o artigo. Caso se publique, há em geral várias observações que são enviadas ao autor do artigo, objeções aos seus pontos de vista, etc., que permitem ao autor melhorar o artigo antes de o publicar.
Este sistema não permite evitar que se publique lixo. Nem permite evitar que se recuse artigos geniais incompreendidos. É um sistema péssimo. Mas é muitíssimo melhor do que o sistema nacional das revistas de filosofia, que consiste em publicar os artigos dos nossos próprios colegas, artigos que pedimos aos autores para publicar. Numa revista sem avaliação anônima de submissões não há qualquer controle de qualidade. E depois há o problema de a submissão não ser anônima; mesmo que eu ache que o artigo do meu colega é muito mau, não tenho coragem para lhe dizer isso, porque ele vai ficar ofendido e lá se vai uma amizade por uma ninharia. É por isso que as submissões têm de ser anônimas. Ninguém se zanga, e procuramos a qualidade. E no fim todos ganhamos.
Será que todas as revistas estão ao mesmo nível? Claro que não. Uma revista feita em Portugal, que publica artigos em português que não são anonimamente avaliados é infinitamente inferior a qualquer revista de circulação internacional que tenha submissões anônimas. 30 artigos numa revista portuguesa deste gênero não valem sequer 1 artigo publicado numa revista acadêmica séria. Isto não quer dizer que não tenhamos artigos de grande qualidade nas revistas portuguesas; pura e simplesmente não podemos saber isso, porque é como ter grandes maratonistas que nunca participaram numa prova internacional.
Os artigos em revistas internacionais são um dos mecanismos de controle de qualidade que escapam ao pensamento mítico e que eu ignorava com 20 anos. Mas há mais dois: colóquios e livros.
A situação dos colóquios e conferências nacionais de filosofia é semelhante ao das revistas: não há a mínima noção do que são colóquios e conferências com controle anônimo de qualidade. Um colóquio acadêmico internacional sério funciona como uma revista: põe-se a circular um pedido de submissão de artigos; as pessoas enviam os artigos; estes são anonimamente avaliados; os que forem aceitos serão apresentados pelos respectivos autores na conferência. Em geral, estas conferências têm 1, 2 ou mais conferencistas convidados (filósofos de renome), mas o grosso das comunicações foram artigos submetidos anonimamente.
Uma vez mais, como podia eu saber que o professor arcano de saber medieval e profundo era realmente um grande investigador, se ele nunca publicou artigos em revistas com submissão anônima nem nunca deu conferências com submissão anônima? Claro que não podia saber tal coisa. Mas o poder do pensamento mítico fazia-me ficar à mesma maravilhado com o professor de saber arcano.
Com os livros acontece o mesmo. Os editores portugueses publicam os livros sem qualquer filtro de qualidade. Um livro numa editora acadêmica séria passa uma vez mais pelo filtro da leitura crítica dos especialistas na área. Eu envio um livro para a editora acadêmica séria X. A editora dá o livro a ler a 2 ou 3 especialistas, anonimamente, que se pronunciam sobre a sua qualidade, propõem correções, etc. Isto é trabalho sério. Não é assim que se publica em Portugal. Por isso, publicar 10 livros de filosofia em português não vale a publicação de 1 só livro numa língua culta numa editora de prestígio — os editores que mais livros de alta qualidade publicam, livros que são discutidos e estudados por toda a comunidade acadêmica internacional.
Mas talvez o pensamento mítico resista ainda com o seguinte falso pensamento: que interessa a internacionalização? Cada qual faz filosofia na sua língua e no seu país e pronto. Com que direito dizemos que uma revista de língua estrangeira é melhor? Só porque é estrangeira?
A resposta é: não. Não é só porque é estrangeira. É porque essas revistas têm 1) os mecanismos de filtragem que já expliquei e 2) são verdadeiros fóruns internacionais, onde os melhores estudiosos de todo o mundo discutem ideias, se corrigem, e procuram fazer avançar o conhecimento. A filosofia, como as artes e as ciências, é universal; não é um folclore local. Uma lei da física que só funciona em Portugal, no laboratório fechado do Professor Pardal, é uma farsa. Uma teoria ou um argumento filosófico que só se afirma numa revista em português, sem qualquer controle de qualidade, é igualmente uma farsa.
A importância de 2 escapa-nos quando estamos em pleno pensamento mítico, a olhar embasbacados para o Grande Professor do Saber Profundo. E é por isso que vale a pena falar mais disso. Os seres humanos erram, enganam-se, iludem-se, etc. Todos nós sabemos disto, claro. Só a interrupção voluntária do pensamento, provocada pelo pensamento mítico, nos faz esquecer esta verdade comezinha. Ora, é precisamente porque as pessoas erram que o controle dos nossos pares é tão importante. Eu preciso que os meus colegas leiam os meus artigos e os critiquem e os discutam e os corrijam. E quantas mais pessoas fizeram isso melhor, mais garantias tenho de não estar a fazer erros elementares. É assim triste verificar como os artigos de filosofia das grandes revistas internacionais provocam discussão, correção, etc., ao passo que os artigos nas revistas nacionais só provocam mais uma linha nos currículos dos respectivos autores. Assim como os livros e as conferências. Assim como os doutoramentos nacionais.
O pensamento mítico rende-se, finalmente. Mas é agora que é preciso não resvalar sem querermos para o oposto do Professor Arcano — como tem acontecido nas ciências em Portugal. Nas ciências tem havido uma revolução surda — as pessoas foram doutorar-se para o estrangeiro, entraram na comunidade internacional, perceberam o que são revistas de física a sério, o que são conferências a sério e hoje as nossas faculdades estão parcialmente integradas na comunidade internacional. Mas é preciso não resvalar para o Grande Investigador Internacional Que Só Vê o Umbigo e Não Sabe Dar Aulas.
Como eu disse, os processos de filtragem de qualidade das revistas, colóquios e livros internacionais são péssimos ­— mas são melhores do que as alternativas. Mas são realmente péssimos: porque podemos publicar vários artigos e livros a vida toda e ser péssimos profissionais de filosofia ou de física. Seremos tecnicamente perfeitos, mas estaremos embrenhados em pormenores, veremos apenas uma das folhas de uma das árvores da imensa floresta do conhecimento da nossa disciplina. E consequentemente seremos maus professores. É porque os professores do ensino secundário sabem instintivamente disto que desprezam a comunidade acadêmica nacional — e com razão. O honesto professor de filosofia ou de física tem de saber ensinar com competência aos seus alunos alguns elementos gerais da disciplina. Ser um Grande Investigador Internacional Cego em nada ajuda tal coisa. Podemos saber em pormenor os argumentos e as teorias da tradução radical de Quine; mas não sabemos ensinar filosofia da religião, estética, ética, filosofia política, introdução à filosofia e lógica elementar. E isto é mau.

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