quarta-feira, 22 de março de 2017

A interrupção voluntária do pensamento Desidério Murcho -1

O pensamento mítico sempre exerceu uma forte influência sobre os seres humanos. Como Hume mostrou de forma definitiva nos seus ensaios sobre a religião, os seres humanos sentem-se atraídos pelo estrondoso, pelo invulgar, pelo numinoso. É por isso que o mito nos atrai tanto. Não há que tentar fingir que esta atração não existe. Essa é uma falsa opção. A verdadeira opção é entre saber reagir adequadamente ao nosso gosto pelo maravilhoso, ou ir na onda acriticamente, rendendo o nosso pensamento mais cuidado aos nossos primeiros impulsos. A opção é entre ser vítima desses impulsos ou estar atento a eles e transformá-los criativamente em qualquer coisa verdadeiramente valiosa. Infelizmente, o pensamento mítico impera nas nossas escolas e universidades, invisível e sem que as suas vítimas se deem conta disso — e por isso, dominando-as de forma primitiva.
Uma escola tem dois papéis: transmitir conhecimento e produzir conhecimento. Tanto num caso como noutro são necessários mecanismos de controle de qualidade. É claro que este é o tipo de ideia que não interessa a muitos professores; e é o tipo de ideia que não ocorre a muitos estudantes. E essa é uma das razões pelas quais o estado do ensino da filosofia é tão mau.
Um estudante de 18 anos entra numa universidade e é imediatamente esmagado com o poder do mito: teses de professores ilustres, grandes especialistas mundiais, autores de teses de mil páginas, aulas em que esses arcanos sábios percorrem os textos sagrados da filosofia, em latim, grego e alemão, criticando más traduções e exibindo o seu profundo saber. (Todavia, é significativo que sejam tão ligeiros a criticar traduções, mas tão parcos a traduzir.) Isto impressiona, claro. Impressiona sobretudo o jovem romântico, sedento de conhecimento, que na sua imaginação se vê a entrar no templo sagrado do Saber, ciente de que levará anos a atingir o nirvana de uma tese de mil páginas. Está criado o mito. O jovem fica pelo beicinho, apaixonado pelo saber arcano, pelos livros com bolor, pelas línguas mortas, pelos calhamaços de 1000 páginas — e quanto mais desconhecidos, melhor, porque dá a sensação maravilhosa de que estamos a descobrir segredos inacessíveis ao comum dos mortais.
Tudo isto é compreensível. Eu sinto isso — senti isso quando entrei para a faculdade. Felizmente, acordei a tempo desta interrupção voluntária do pensamento. E isso aconteceu no dia em que me perguntei: como é que eu sei que não estou iludido com tudo isto? E a resposta não se fez esperar: não posso saber.
Levei então anos a compreender melhor o que é uma comunidade acadêmica, e a distinguir o trigo do joio. É um mito pensar que o nosso professor de violino é o maior violinista do mundo se ele nunca atuou em público. Mas é um mito delicioso, porque nos põe em contato com o Inefável Violinista Desconhecido. É um mito pensar que o nosso professor de filosofia é o melhor especialista de Kant do mundo, se ele nunca publicou um só artigo numa revista internacional com submissão anônima ou se nunca publicou um só livro que seja sistematicamente referido na melhor bibliografia filosófica internacional. Mas é um mito delicioso: ali estamos nós, à sombra do Grande Filósofo de Arcana Sabedoria — que ninguém exceto estudantes de 20 anos reconhece como um grande especialista.
Este é o poder do pensamento mítico: é tão agradável pensar que estamos à mesa do café com o maior maratonista de todos os tempos, que nos esquecemos de lhe perguntar em que maratonas e em que jogos olímpicos é que ele participou. E no dia em que fazemos a pergunta, percebemos que o grande maratonista não passa de um amador que faz umas corridas à volta do quarteirão para impressionar a vizinhança.
Um investigador tem de mostrar em público o que vale. Tem de submeter e publicar artigos nas grandes revistas internacionais de filosofia — revistas que funcionem com sistema de submissão anônima, cujos artigos sejam constantemente referidos nas publicações da especialidade e que tenham um alto índice de recusas. As submissões anônimas são um dos muitos mecanismos para procurar filtrar o joio e ficar com o trigo. Claro que toda a gente sabe que nenhuma peneira é assim tão boa. Mas mais vale uma peneira o mais perfeita possível do que nenhuma peneira — a democracia é um péssimo sistema político, mas é melhor que qualquer outro; a publicação em revistas internacionais com submissão anônima é um péssimo sistema, mas é melhor do que qualquer outro.
Um pretenso especialista que só publica em revistas que o convidam a publicar, em revistas dos seus próprios colegas, em revistas sem qualquer circulação internacional, em revistas que não têm submissão anônima, é um especialista de nível zero. Pode ser um gênio; mas a improbabilidade de o ser é muito elevada — e nem ele, nem nós temos qualquer razão para pensar que é um gênio. Pode ser apenas um amador, a leste do que se faz pelo mundo fora, que escreve coisas originais só porque estão eivadas de erros e portanto são coisas que ninguém mais escreve. Mas nada disto me ocorria nos meus 20 anos — era o poder do mito a interromper-me o pensamento.

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