quarta-feira, 22 de março de 2017

A interrupção voluntária do pensamento Desidério Murcho- 3

É por isso que temos de manter os olhos abertos. A excelência na investigação é só um dos critérios do bom professor. O outro é a excelência no ensino. Mas, ao contrário do que se pensa, o que determina a excelência no ensino não é a pedagogia. O que determina a excelência no ensino é o domínio científico da sua área de estudos no seu todo; é saber filosofia da religião e estética e ética e lógica elementar, ao mesmo tempo em que sabemos os pormenores da tradução radical de Quine. A pedagogia é apenas um acessório de senso comum. Desde que o professor tenha um bom domínio científico da sua área e se esforce por ser um professor competente, será competente; não precisa de nenhuma formação pedagógica que o ensine a contar carteiras vazias e a dispor alunos numa sala.
Em qualquer caso, mesmo que precise de tais tolices pedagógicas, sem o domínio científico teremos maus professores. E em Portugal o problema não é pedagógico, mas sim científico: a esmagadora maioria dos professores de filosofia, a julgar pelos manuais, têm uma formação filosófica altamente deficiente — desconhecem os problemas, teorias e argumentos centrais da filosofia, porque aprenderam a papaguear as palavras dos filósofos sem perceber o que está em causa.
Como podemos avaliar então a qualidade do ensino dos professores? Convidando-os a escrever livros e artigos de caráter introdutório às suas disciplinas e áreas de especialidade; e esses artigos e livros e conferências terão de ser objeto do mesmo tipo de filtragem que os artigos e livros e conferências de investigação. E isto é o que acontece nos países mais desenvolvidos — se eu for publicar um livro de introdução à lógica, ele não é publicado sem ter sido anonimamente avaliado por um especialista em lógica e no ensino da lógica, que irá avaliar duas coisas: 1) a correção científica do meu livro e 2) a sua adequação didática.
2 é muito importante: um livro de introdução à lógica cientificamente correto, mas de tal forma feito que só quem já sabe lógica pode entendê-lo é um livro para ser deitado à velha fogueira de Hume. Infelizmente, acontece muito em Portugal este tipo de situação: um livro ou artigo sem público. Sem público porque apesar de ser introdutório está escrito de maneira que quem não sabe do tema não percebe nada. Claro que um pretenso especialista na filosofia da mente de Dennett que é incapaz de explicar os pontos essenciais da filosofia de Dennett a quem nada sabe de filosofia da mente é um mau especialista, além de mau professor. Nunca conheci uma pessoa que dominasse realmente uma certa área e que fosse incapaz de a explicar a quem nada sabe.
Mas muitas pessoas passam por especialistas porque de tanto decorar o muito que leem, repetem o que dizem sem o perceber senão superficialmente, dando-se ares de conhecedor. E são estes pretensos grandes especialistas que publicam em Portugal os livros e artigos sem público noutro aspecto: artigos e livros avançados de filosofia, para os quais obviamente não há público — porque ninguém pode entender e apreciar e discutir a teoria de Einstein sem saber física elementar. E em Portugal precisamos aprender filosofia elementar antes de podermos discutir e estudar os aspectos mais avançados da disciplina.
Esta realidade é tão pouco romântica que repugna, claro, ao pensamento mítico: a ideia de penetrar nos recantos obscuros do saber arcano é muito mais atraente do que a ideia modesta de aprender honestamente e com seriedade os problemas, as teorias e os argumentos da filosofia. Esta é a medida exata do impulso mítico do pensamento. E é porque o seu resultado é o amadorismo pretensioso e o atraso da cultura filosófica nacional que é preciso saber enfrentar o pensamento mítico e transformar o impulso que lhe deu origem em algo de verdadeiramente criativo e construtivo.
Como penso que o que está na origem do pensamento mítico, no fundo, é um grande apego ao conhecimento, basta compreender que o objetivo de conhecer mais e compreender melhor não pode ser honestamente realizado com princípios míticos (e teses de mil páginas que ninguém avaliou publicamente nem leu) para que comecemos a mudar de atitude. E é essa mudança de atitude que urge fazer em Portugal, substituindo a frase rebuscada pelo pensamento cristalino, o embrulho de luxo do lixo intelectual pelo embrulho ecológico e simples da sutileza mental, a pretensão inchada pelo entusiasmo humilde de conhecer e compreender, o pensamento sibilino sobre o que não se pode dizer pelo pensamento dessacralizado do que se pode pensar. Enquanto não mudarmos de atitude, os nossos jovens mais brilhantes e talentosos terão precisamente as mesmas hipóteses de serem filósofos de renome internacional do que os atuais professores portugueses de filosofia: nenhumas.
  • autor: Desidério Murcho
  • fonte: Crítica

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