sábado, 20 de dezembro de 2014

Rodrigo Constantino- A liberdade científica: Michael Polanyi e a defesa da ciência pura

“A crença principal – diria mesmo, fundamental – que embasa uma sociedade livre é a de que o homem é receptivo à razão e suscetível aos reclamos de sua consciência.” (Michael Polanyi)
Nascido em 1891 em Budapeste, Michael Polanyi vinha de uma família de ilustres cientistas, e ele mesmo acabou se especializando em química. Seu interesse por política se intensificou, no entanto, durante as décadas de 30 e 40, com o mundo vivendo sob intensa incerteza acerca do futuro. Fundou em 1947, ao lado de figuras como Hayek, Popper, Milton Friedman e George Stigler, a Sociedade Mont Pelerin, uma das mais renomadas defensoras do liberalismo no mundo.
No livro A Lógica da Liberdade, defendeu principalmente a liberdade científica, utilizando sólidos argumentos para tanto. Mas sua visão de mundo levava à defesa de uma liberdade mais ampla, de uma sociedade realmente livre, onde as ordens sociais mais importantes para o bem-estar dos homens são espontâneas.
Polanyi depositou uma relevância enorme na necessidade da ciência pura – ciência pela ciência, como busca pela verdade – ser mantida, enquanto muitos defendiam na época que a ciência só era válida se tivesse uma utilidade social clara ou até imediata. Foi bem claro ao escrever: “Temos que reafirmar que a essência da ciência está no amor ao conhecimento e que a utilidade desse último não é nossa preocupação primordial”.
Tal visão batia de frente com o marxismo de seu tempo, que tratava da ciência apenas como um instrumento para o bem-estar material, que seria antes utilizado pela burguesia de acordo com interesses de classe. Ele não aceitava essa imagem da ciência, e lutou para desvincular a atividade científica criativa de uma visão determinista do mundo.
A ciência moderna, para Polanyi, “é o resultado de uma rebelião contra a autoridade”. O caminho teria sido aberto por pessoas como Descartes, Galileu e Newton. A busca pelo conhecimento irá sempre partir de determinadas crenças individuais, e a liberdade da ciência “consiste no direito de buscar a exploração dessas crenças e de defender, sob sua orientação, os padrões da comunidade científica”. Para que isso seja possível, é necessário certo grau de autogoverno que assegure posições independentes para os cientistas.
Como conseqüência, a liberdade da ciência não pode ser defendida com base na concepção positivista da ciência, “a qual envolve um programa positivista para a ordenação da sociedade cuja implementação completa resultaria na destruição da sociedade livre e no estabelecimento do totalitarismo”. O exemplo claro desse perigo estava na Rússia, onde o movimento positivista acabou praticamente culminando com a derrubada da própria ciência.
A liberdade acadêmica se faz crucial para o avanço do conhecimento e da ciência. Esta liberdade consiste “no direito de escolher o problema a investigar, em conduzir a pesquisa sem qualquer controle externo e em ensinar o assunto em pauta à luz de opiniões próprias”. Para Polanyi está muito claro que no dia em que as comunicações entre cientistas forem cortadas, a ciência praticamente paralisará. A cooperação livre e independente entre os cientistas, em um ambiente com uma tradição científica, é fundamental para o processo científico.
De forma espontânea ocorre uma coordenação das atividades individuais, sem a necessidade de intervenção de qualquer autoridade coordenadora. Como analogia, Polanyi oferece o exemplo da montagem de um quebra-cabeça, sendo impossível planejar antecipadamente seus passos. Uma administração centralizada teria que criar uma estrutura hierarquizada e dirigir as atividades a partir de um centro. Cada um teria que esperar a orientação do chefe e tudo ficaria num compasso de espera. Os participantes deixariam de prestar qualquer contribuição apreciável para a sua montagem, e o efeito cooperativo seria quase nulo. A base lógica para a coordenação espontânea dos cientistas na busca da ciência seria tão simples quanto a que opera a autocoordenação de uma equipe engajada na montagem de um quebra-cabeça.
Na verdade, três pilares seriam necessários para a ciência: os cientistas individuais, o corpo de cientistas e a opinião pública. Polanyi diz: “A afirmação da paixão pessoal é a marca registrada do grande pioneiro, aquele cujas qualidades são muito valiosas para a ciência”. Ao mesmo tempo, a tradição científica, o rigor do método científico, impõe um grau excepcional de rigor crítico, que é extremamente importante.
Por fim, a ciência só pode continuar a existir na escala moderna “se a autoridade que pleiteia é aceita por vastos grupos da população”. Se as opiniões anticientíficas predominarem, se as pessoas escolherem o misticismo em vez da ciência para tentar explicar o universo material que as circunda, é porque a ciência fracassou em sua tarefa crucial de ser aceita como fonte de conhecimento. Cada um dos três pilares desempenha uma determinada função no processo do desenvolvimento científico e nenhum deles pode ser delegado a uma autoridade superior.
Quando o Estado se imiscui na ciência, os riscos destes fundamentos serem destruídos e corrompidos são enormes. Um dos motivos, como lembra Polanyi, é que sendo os acadêmicos recompensados pelo Estado, o governo pode muito bem exercer uma pressão que os desvie dos interesses e padrões acadêmicos. Os casos do nazismo alemão e comunismo soviético são sintomáticos disso.
Outro ponto é que existem muitas oportunidades de conflito entre os interesses imediatos do Estado e aqueles do aprendizado e da verdade, “cultivados por amor à ciência e à própria verdade”. Quando as descobertas científicas iam à contramão do marxismo, eram simplesmente descartadas na União Soviética. Polanyi conclui: “O Estado deve encarar a vida acadêmica independente da mesma forma que o faz com a administração independente da justiça”.
O foco de Polanyi não fica restrito ao campo da ciência, mas é extrapolado para todos os demais. Ele diz que “é evidente que a liberdade acadêmica não é jamais um fenômeno isolado”, e que “ela só pode existir numa sociedade livre, porque os princípios em que se baseia são as mesmas fundações sobre as quais repousam as liberdades essenciais da sociedade”. Desta forma que ele chega até a defesa da liberdade econômica: “Encaro a liberdade econômica como uma técnica social adequada, quase indispensável, para a administração de uma determinada técnica produtiva”.
Em resumo, Polanyi defendeu veementemente a liberdade, limitada por certas regras básicas necessárias para o próprio funcionamento desta liberdade. Ele acreditava muito na ordem espontânea, na livre coordenação dos indivíduos. Fez oposição à planificação científica, baseando a epistemologia da ciência na crença na natureza individual dos descobrimentos, livre de interferências dogmáticas ou oficiais. A liberdade científica que defendeu é fundamental para as demais liberdades, e ele mesmo compreendeu isso. Resta trabalhar para que as demais pessoas também possam compreender.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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