sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Instituto Ordem Livre- A extraordinária rede do mercado

Um dia desses, eu tive que recolher alguns recibos para os impostos e entregá-los ao meu contador. O dia 15 de abril se aproximava e meu contador estava em St. Louis. Para dar mais tempo ao meu contador, eu queria que os documentos chegassem lá na manhã seguinte.
O que eu poderia fazer? Minha primeira escolha era pegar um avião e entregá-los em pessoa. Mas seria muito caro e levaria muito tempo.
Tentei minha próxima opção. Fui ao aeroporto e procurei alguma pessoa que estivesse indo para St. Louis. Disse a ela o quanto era importante que meu contador recebesse aqueles recibos no dia seguinte. Felizmente, ela parecia ser bastante simpática. Disse que ficaria feliz em me ajudar. Lacrei o envelope e ela me prometeu que não iria abri-lo.
Acho que sou um pouco ingênuo. Sei que foi estupidez confiar algo tão importante a uma estranha, mas ela parecia honesta e sorria bastante. Mas talvez um bom ladrão pudesse aprender a fazer o mesmo.
Eu fiquei um pouco nervoso quando ela confessou que, na verdade, não poderia entregar o envelope pessoalmente. Tinha negócios a tratar, que a manteriam ocupada até a manhã seguinte. Mas prometeu encontrar pessoas que pudessem fazer a entrega. Eu posso ser ingênuo, mas não sou idiota. Aquilo me deixou com medo. Eu não teria contato algum com essas outras pessoas que supostamente me ajudariam. Como poderia saber se eram tão honestas quanto essa moça parecia ser? Talvez se eu pudesse, pelo menos, falar com eles pelo telefone?
Sem chances, ela me disse, mas acrescentou que não precisava me preocupar. Ela checaria se eram pessoas tão confiáveis quanto ela – pessoas que não abririam meu envelope. Pessoas que não roubariam o número do meu cartão de crédito que estava nos recibos. Pessoas que não jogariam o envio fora, só para evitar o transtorno de ter de entregá-lo. Com certeza tudo correria bem. Além disso, ela não tinha como saber, antecipadamente, quem estaria disponível para fazer a entrega. Só me restava esperar pelo melhor.
Tudo isso parecia uma loucura, mas agora já estava ficando tarde. Eu tinha que confiar nela. Não havia outra forma de cumprir essa tarefa. Eu não tinha opção.
Dei a ela algum dinheiro. Ela não recusou. Talvez já tenha feito isso antes.
Naquela noite, eu dormi como uma pedra. Sempre achei que as pessoas eram essencialmente boas.
Mas e você? Como você se sentiria naquela noite, sabendo que uma remessa sua, de conteúdo importante, estava nas mãos de estranhos que você nunca irá ver e de honestidade e confiabilidade desconhecidas?
Talvez eu devesse ter me importado mais. Quanto dinheiro eu paguei? Muito menos do que me custaria levar o pacote pessoalmente – 19 dólares. Foi tudo o que ela pediu. Além do mais, se ela cumprisse a promessa e entregasse meu pacote ao contador, eu teria uma história para contar para o resto da minha vida.
A verdade é que nem pensei duas vezes. Eu confiei naquela estranha do aeroporto. Eu nunca a tinha visto antes e nunca a verei novamente, mas senti, de alguma forma, que ela cumpriria aquela tarefa por mim.
E ela cumpriu. Eu telefonei para o meu contador no dia seguinte e ele, com toda segurança, tinha recebido o pacote pouco antes das dez da manhã.
Teria sido um milagre? Um golpe de sorte? Ou talvez uma lição perigosa, que pode me levar a ingenuamente confiar em estranhos no futuro?
Nenhuma das respostas acima. Eu não confiei em milagre ou golpe de sorte. Sou um pouco menos ingênuo do que você deve estar pensando.
Aquela estranha a qual eu confiei alguns segredos sobre minhas finanças estava de pé atrás de um balcão da FedEx, vestindo um uniforme da empresa.
E isso muda tudo, não muda? Você vai à FedEx, dá 19 dólares a uma estranha e vai embora sem se preocupar, sabendo que seu envio estará no destino por volta das 10 da manhã do dia seguinte.
Eu não estava preocupado se, depois que eu fosse embora, aquela mulher atrás do balcão abriria ou não o pacote para ver o que eu estava mandando e se aproveitar do conteúdo do envelope. Eu não estava preocupado se a próxima pessoa a manuseá-lo abriria o envelope para ver o que eu tinha ali dentro. Eu não estava preocupado se todas as pessoas que pudessem ter algum contato com a minha remessa fossem checá-la para ver se havia algo ali que valeria a pena ser roubado.
Eu também não me preocupei, nem por um instante, que alguma pessoa que pudesse ter algum contato com meu pacote fosse pensar que demandaria muito esforço entregá-lo e o jogaria fora.
Completos estranhos - que eu nunca veria. Que palavra descreveria melhor minha falta de preocupação? Seria confiança? Fé? Segurança? E qual seria a fonte de meu contentamento quando eu despachei meu pacote?
Não foi confiança. A corrente de pessoas que interagiram com o meu pacote foi longa e não há maneira de entrevistar cada uma delas para saber se eram confiáveis. Então, como eu poderia confiar nelas? Eu nunca as vi. E nunca as verei. A mulher atrás do balcão parecia uma pessoa honesta. Eu, de certa forma, confiei nela. Mas confiança seria uma forma incorreta de descrever a minha relação com todas as demais pessoas envolvidas no processo de envio.
Fé? Pareceria muito vago... A fé viria de ter usado a FedEx antes e de saber que ela sempre executa bem as tarefas. Há, é claro, um pouco disso. Mas eu não estive preocupado nem na primeira vez que eu usei FedEx.
Segurança parece ser a palavra certa. Minha segurança nasceu da compreensão de como a divisão do trabalho funciona na economia moderna. O que Hayek chamou de ampla ordem de cooperação humana.
Você pode perceber o milagre que é a economia moderna se comparar a FedEx com um sistema diferente, no qual eu realmente encontre um estranho que pareça honesto, no portão do aeroporto, a caminho de St. Louis. Tome aqui, eu diria. Pegue esse dinheiro e esse pacote. E não se preocupe se você precisar de ajuda de mais alguém para levar o pacote até o destino. Leve até onde puder e entregue o pacote e parte do dinheiro à próxima pessoa, com a promessa de que os próximos continuarão sempre a corrente.
Quem apostaria que uma jogada dessas pudesse dar certo?
Então, qual seria a diferença em relação à FedEx? Em princípio, nenhuma. Eu esperava que vários estranhos fossem fazer um trabalho por mim e manter suas promessas. Ainda assim, tudo é diferente.
Quando eu uso a FedEx, há conseqüências se a falha de estranhos me causa prejuízos. Há uma troca de informações que premia a excelência e pune as falhas e a desonestidade. Essa troca de informações cria uma forma de controle por parte dos consumidores.
A FedEx tenta empregar pessoas honestas e agradáveis, que sorriem quando você fala com elas. Ela demite pessoas rudes que freqüentemente perdem ou roubam pacotes. Premia e exalta pessoas que fazem bem seu trabalho. E por que a FedEx se esforça tanto? Parte da resposta é a reputação. Mas por que a FedEx se empenha tanto em manter sua reputação intacta? A competição responderia parte da pergunta. Mas há algo a mais.
Mesmo aquela troca de informações, que mantém os empregados da FedEx honestos, funciona melhor quando as pessoas se sentem culpadas por serem ladrões ou lerdos. Será que o capitalismo funciona melhor quando as pessoas são essencialmente honestas ou será que o capitalismo ajuda a criar virtudes que o fazem funcionar bem? Provavelmente os dois.
O sistema funciona tão bem que nós raramente o notamos ou sequer apreciamos suas maravilhas. A empregada sorridente da FedEx está sempre atrás do balcão esperando para levar meu pacote para St. Louis. Um estranho entrega meus jornais todas as manhãs. Eu nem mesmo sei como ele ou ela é. Estranhos montaram meu carro, costuraram minhas roupas e preencheram a receita do antibiótico que curou a pneumonia da minha esposa no último inverno. Incontáveis estranhos trabalhando juntos em algum laboratório de pesquisas, em algum lugar desconhecido, descobriram aquele antibiótico.
Não pensamos em nada disso. Já se tornou algo natural para nós confiar naqueles que não vemos e nem podemos verificar a honestidade, confiabilidade e excelência. Ainda assim, na maior parte do tempo, essa ampla ordem de cooperação humana preenche nossas expectativas de que produtos e serviços que desejamos estarão esperando por nós quando quisermos.
Entendemos que o papel da competição é sustentar esse sistema. Ter alternativas ajuda a criar esse controle por parte do consumidor e aumenta a punição às empresas que não atentem à nossas expectativas. Porém, na maioria das vezes, não entendemos ou não notamos a cooperação entre estranhos que resulta de suas ações coordenadas através das empresas que nos servem.
Surpreendentemente, confiar em estranhos pode ser mais vantajoso do que confiar em amigos. Afinal, não temos tantos amigos para podermos confiar somente neles e, ainda assim, gozarmos de um bom padrão de vida, com satisfação material e imaterial. Confiar somente em amigos ou em familiares traria nosso padrão de vida de volta ao nível de subsistência e a autosuficiência é o caminho para a pobreza.
Confiar em estranhos também libera nossos amigos para se especializarem em serem apenas amigos e fazerem o que amigos fazem de melhor. Quando tenho problemas, eu não quero comprar o “ombro amigo” de um desconhecido, que esteja atrás de um balcão disposto a vendê-lo barato. Eu desejo que meus amigos e parentes me dêem amor. Mas meus amigos e parentes têm mais tempo para seu conforto e alegria porque a ampla ordem de cooperação humana, em ação no mercado, significa que eu não espero que eles costurem minhas roupas ou fabriquem meu carro.
Confiar em estranhos cria uma rede extraordinária de cooperação que é a economia moderna. Um mundo onde a divisão do trabalho e a especialização – frutos do comércio e confiança reforçados pela troca de informações sobre preços, lucro e competição – me permitem enviar um pacote de Washington para St. Louis pelo preço de uma hora de trabalho de um americano.
É fantástico que um tanto de segurança possa ser comprado por apenas 19 dólares. E essa maravilha de cooperação funciona, mesmo que a maioria de nós não preste atenção nela, nem saiba como ela funciona. Porém, apreciar essa maravilha pode nos ajudar a lembrar do valor do sistema de preços e lucros que faz com que tudo isso continue funcionando.
Russell Roberts é Professor de economia da Universidade George Mason. Roberts é apresentador do podcast EconTalk e um dos autores do blog Cafe Hayek.
* Publicado originalmente em 22/02/2008.

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