PRIMEIRA CARTA
de Amabed a Xastasid, grande brâmane de Madura
Benares, a dois do mês do rato do ano 115.652 da renovação do mundo.(1)
Luz de minh'alma, pai de meus pensamentos, tu que conduzes os homens nas vias do Eterno, a ti,
sábio Xastasid, respeito e ternura.
De tal forma já me familiarizei com a língua chinesa, conforme os teus sábios conselhos, que leio com
proveito os seus cinco Kings, que me parecem igualar-se em antigüidade ao nosso Xasta, de que és
intérprete, às sentenças do primeiro Zoroastro e aos livros do egípcio Thaut.
Cândido.
Afigura-se a minh'alma, que sempre se abre diante de ti, que esses escritos e esses cultos nada
tomaram uns dos outros: pois somos os únicos a quem Brama, confidente do Eterno, ensinou a rebelião
das criaturas celestes, o perdão que o Eterno lhes concede e a formação do homem; os outros nada
disseram, ao que me parece, dessas coisas sublimes.
Creio sobretudo que nada tomamos, nem nós, nem os chineses, aos egípcios. Não conseguiram formar
uma sociedade policiada e sensata senão muito tempo depois de nós, pois tiveram de dominar o Nilo
antes que pudessem cultivar os campos e construir cidades.
Confesso que o nosso divino Xasta tem apenas 4.552 anos de antigüidade; mas está provado por
nossos monumentos que essa doutrina era ensinada de pai para filho e mais de cem séculos antes da
publicação desse livro sagrado. Espero, quanto a isto, as instruções de tua paternidade. Depois da tomada
de Goa pelos portugueses, chegaram a Benares alguns doutores da Europa. Ensino a um deles a língua
hindu, e ele, em recompensa, ensina-me um jargão que tem curso na Europa e a que chamam italiano. É
uma língua engraçada. Quase todas as palavras terminam em a, em e, em i, em o; aprendo-o facilmente, e
em breve terei o prazer de ler livros europeus.
Esse doutor chama-se o padre Fa Tutto; parece polido e insinuante; apresentei-o a Encanto dos Olhos,
a bela Adate, que os meus pais e os seus me destinam para esposa; ela aprende italiano comigo.
Conjugamos juntos o verbo amar, logo no primeiro dia. Levamos dois dias com todos os outros verbos.
Depois dela, és tu o mortal mais perto de meu coração. Rogo a Birma e a Brama que conservem teus dias
até a idade de cento e trinta anos, passados os quais a vida não é mais que um fardo.
RESPOSTA
de Xastasid
Recebi tua carta, espírito filho de meu espírito. Possa Druga,(2) montada no seu dragão, estender
sempre sobre ti os seus dez braços vencedores dos vícios.
É verdade (e por isso não nos devemos envaidecer) que somos o povo mais antigamente civilizado do
mundo. Os próprios chineses não o negam. Os egípcios são um povo muito recente, que foi ensinado
pelos caldeus. Não nos gloriemos por sermos os mais antigos; e tratemos de ser sempre os mais justos.
Saberás, meu caro Amabed, que, não faz muito, chegou até os ocidentais uma fraca imagem da nossa
revelação sobre a queda dos seres celestiais e a renovação do mundo. Encontro, numa tradução árabe de
um livro sírio, composto apenas há uns mil e quatrocentos anos, estas palavras textuais: E os anjos que
não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, conservou-os o Senhor em
prisões eternas, até o juízo daquele grande dia.(3) Cita o autor em abono um livro composto por um de
seus primeiros homens, chamado Enoch. Bem vês que as nações bárbaras não foram jamais esclarecidas
senão por um flébil raio enganoso, que até eles se desviou do seio da nossa luz.
Muito receio, caro filho, a irrupção dos bárbaros da Europa em nossas felizes plagas. Sei muito bem
quem é esse Albuquerque que aportou das ribas do Ocidente a estas terras prediletas do sol. E um dos
mais ilustres salteadores que já assolaram a face da terra. Apoderou-se de Goa contra a fé pública.
Afogou no sangue a homens justos e pacíficos. Esses ocidentais habitam um país pobre que lhes dá muito
pouca seda: nada de algodão, nada de açúcar, nenhuma especiaria. Falta-lhes até a espécie de terra com
que fabricamos porcelana. Deus lhes recusou o coqueiro, que dá sombra, abriga, veste, nutre e dessedenta
aos filhos de Brama. Não conhecem senão um licor, que lhes tira a razão. Sua verdadeira divindade é o
ouro; saem em busca desse deus até os confins do mundo.
Quero crer que o teu doutor seja um homem de bem; mas o Eterno nos permite desconfiar desses
estrangeiros. Se são carneiros em Benares, dizem que são tigres nas regiões onde os europeus se
estabeleceram.
Queira Deus que nem tu, nem a bela Adate tenha jamais a mínima razão de queixa contra o padre Fa
Tutto! Mas alarma-me um secreto pressentimento. Adeus. Que em breve Adate, a ti unida por um santo
matrimônio, possa gozar nos teus braços as alegrias celestiais!
Esta carta te chegará por um baniano, que só partirá na lua cheia do elefante.
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