terça-feira, 16 de julho de 2019

CARTAS DE AMABED- VOLTAIRE- APRESENTAÇÃO



APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia




Voltaire é surpreendente. Nunca chega ao superficial, seja qual for o texto. Às vezes é mais cuidadoso e profundo, em outras mais leve, mas é sempre ele. Não se pode dizer o mesmo, por exemplo, de Shakespeare. Macbeth, Romeu e Julieta ou A Megera Domada parecem escritos por pessoas diferentes. Há letristas (aqueles que fizeram curso de Letras) assegurando que Shakespeare era mais de um ou nenhum deles. Ora, continuem a fazer suas classificações, compliquem a gramática que já conhecíamos, mas deixem o maior dos dramaturgos em paz e, por favor, não incomodem Voltaire; a réplica pode ser fatal. As cartas de Amabed carregam o mesmo estilo do pensador, que as obras didáticas insistem em classificar entre os iluministas e racionalistas (custaria ler com um pouco mais de cuidado?). Falando a sério: século XVIII, na Inglaterra, explodiam os romances em forma de correspondência. Voltaire não simpatizava muito com essa moda, escreveu Amabed como paródia do gênero literário e o fez com a genialidade que lhe era peculiar; valorizou o estilo. 

A perspicácia, o humor irreverente, a sátira sutil ou grotesca continuam presentes. Já vi muitos ironizarem o catolicismo, na sua versão apostólico-romana; como Voltaire nunca. Esculhamba Roma, o Vaticano, a escolha do Papa (a quem chama de vice-Deus). Arrasa os padres, bispos, a religião em suma. Sempre compara com as crenças da Índia, mais antigas, puras e honestas. 

Como sempre, satiriza os costumes; vejamos alguns exemplos: Da Itália, na verdade da língua ali empregada, delicadamente comenta: Ensino a um deles a língua hindu, e ele, em recompensa, ensina-me um jargão que tem curso na Europa e a que chamam italiano. É uma língua engraçada. Quase todas as palavras terminam em a, em e, em i, em o; aprendo-o facilmente, e em breve terei o prazer de ler livros europeus.

 Sobre o eurocentrismo, que ainda hoje prejudica o nosso entendimento sobre a história universal, diz: Lemos juntos um livro de seu país, que me pareceu bastante estranho. É uma história universal na qual não se diz uma só palavra sobre o nosso antigo império, nem nada das imensas regiões de além do Ganges, nada da China, nada da vasta Tartária. Evidentemente, os autores, nesta parte da Europa, devem ser muito ignorantes. Comparo-os a aldeões que falam com ênfase das suas choupanas e não sabem onde é a capital; ou antes àqueles que pensam que o mundo termina nos limites de seu horizonte.


 A divergência entre seitas religiosas, dentro do mesmo catolicismo, não ficou incólume: Disse-me o capitão que esse esmoler é franciscano e que, sendo o outro dominicano, vêem-se obrigados em consciência a nunca estar de acordo. As suas seitas são inimigas declaradas uma da outra; assim, vestem-se eles diversamente, para marcar a sua diversidade de opiniões.

 A Bíblia Sagrada não foi deixada de lado: O nosso esmoler Fa Molto leu-nos coisas ainda mais maravilhosas. Ora é um burro que fala, ora um dos seus santos que passa três dias e três noites no ventre de uma baleia e que dali sai de muito mau-humor. Aqui é um pregador que foi pregar no céu, sobre um carro de fogo puxado por quatro cavalos de fogo. Acolá é um doutor que atravessa o mar a seco, seguido de dois ou três milhões de homens que fogem a seco. Outro doutor faz parar o sol e a lua; mas isto não me surpreende: tu mo ensinaste. O que mais me penaliza, a mim que faço questão de asseio e de pudor, é que o Deus dessa gente ordena a um de seus pregadores que coma certa matéria com o seu pão, e a um outro que durma por dinheiro com mulheres alegres e lhes faça filhos. Ainda há pior. O erudito homem nos deu a conhecer as duas irmãs Oola e Ooliba. Tu bem as conheces, pois tudo leste. Esse trecho muito escandalizou a minha mulher, que enrubesceu até o branco dos olhos. Notei que a boa Dera ficava toda vermelha. Esse franciscano deve ser um pândego. 

O conhecido alcoolismo, de muitos europeus, também teve seu espaço: Cândido. Havia lá dois marinheiros, que também se enciumaram. Terrível paixão, o ciúme. Os dois marinheiros e os dois padres haviam bebido muito desse licor que dizem Inventado pelo seu Noé e cuja autoria atribuímos a Baco: funesto presente, que poderia ser útil, se não nos fosse tão fácil abusar dele. Dizem os europeus que essa beberagem lhes dá espírito. Como pode ser isso, se lhes tira a razão?

 O Papa não escapou: Esse Deus na terra chama-se Leão, décimo do nome. É um belo homem de trinta e quatro a trinta e cinco anos, e muito amável; as mulheres estão loucas por ele. Achava-se atacado de um mal imundo, que só é bem conhecido na Europa, mas que os portugueses começam a introduzir no Indostão. Julgavam que disso morreria, e foi por isso mesmo que o elegeram, a fim de que o sublime posto ficasse logo vago; mas curou-se, e zomba daqueles que o nomearam. Nada mais magnífico do que a sua coroação, na qual gastou ele cinco milhões de rúpias, para prover às necessidades de seu Deus, que foi tão pobre! Não pude escrever-te na agitação das festas; sucederam-se tão rapidamente, tive de assistir a tantas diversões, que não sobrou um momento de lazer. 

Também anunciou o perigo de um povo insatisfeito, ideia que viria a ser defendida por Lenin e Mao-Tse-Tung, muitas décadas depois: Era esse mesmo que fazia as raparigas dançarem sem nenhum ornamento supérfluo. Seus escândalos deviam inspirar desprezo, seus atos de barbárie deviam aguçar mil punhais contra ele; no entanto, viveu cheio de veneração e com toda a tranqüilidade, na sua corte. A razão disso, ao que me parece, é que os padres afinal saíam ganhando com todos os seus crimes, e os povos não perdiam nada. Mas logo que estes se sentirem por demais afrontados, hão de quebrar as cadeias. Cem golpes de aríete não puderam abalar o colosso: um seixo o deitará por terra. 

É o que dizem por aqui as pessoas esclarecidas que gostam de profetizar. O velho lema do cristianismo: "ofereça a outra face", não ficou impune: Mas o de roxo nos disse:
- Bem se vê que os amigos Amabed e Adate ainda não completaram a sua educação: é dever essencial neste país beijar os nossos maiores inimigos; na primeira oportunidade mandem envenená-los, se puderem; mas, enquanto isto, não deixem de lhes demonstrar a mais profunda amizade. Voltaire, mais uma vez, nos ensina a sorrir diante das contradições sociais.

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