terça-feira, 13 de junho de 2017

H.L. MENCKEN- O SECRETARIADO CÓSMICO

O argumento da Criação, um baluarte no passado da apologia cristã, ficou tão esburacado de balas que não surpreendeu a ninguém quando foi abandonado. De fato, quanto mais um teólogo tenta provar a sabedoria e a onipotência de Deus por Suas obras, mais é destroçado pelos avanços da ciência que provam a incompetência e estupidez divinas. O mundo não é muito bem dirigido; na verdade, é pessimamente administrado, e nem era preciso que um Huxley queimasse suas pestanas para demonstrar o óbvio. O corpo humano, habilidosamente construído em alguns detalhes, é cruelmente atamancado em outros, e qualquer primeiranista de medicina conhece pelo menos umas cem formas de aperfeiçoá-lo. Como podemos conciliar essa mistura de finura e desatino com o conceito de um único e onipotente Criador, para quem todos os problemas são igualmente fáceis? 


Se Ele foi capaz de criar uma máquina tão durável e eficiente quanto a mão humana, por que não se animou a caprichar mais nas amígdalas, na bexiga, nos ovários e na próstata? Se conseguiu tornar perfeito o cotovelo e o ouvido, por que se atrapalhou com os dentes? Nunca tendo encontrado uma resposta satisfatória ou até plausível para estas perguntas, tive de me dar o trabalho de criar uma, eu mesmo. A qual é muito simples e estritamente de acordos com todos os fatos conhecidos. Em resumo, é a seguinte: a teoria de que o universo é dirigido por um único Deus deve ser abandonada e, em seu lugar, devemos estabelecer a teoria de que, na verdade, ele é administrado por um conselho de deuses, todos com igual poder e autoridade. Uma vez firmado este conceito, todas as dificuldades que têm vexado os teólogos desaparecem e a experiência humana instantaneamente ilumina a cena em brumas. 

Podemos observar no cotidiano o que acontece quando a autoridade é dividida e só se chega às grandes decisões através de consultas e compromissos. Sabemos que os efeitos podem ser, às vezes, muito bons, principalmente quando um dos membros do conselho passa a perna nos outros, mas também sabemos que, em regra, são péssimos. É tal bagunça, precisamente, que se apresenta no cosmos. A seguir, alguns exemplos de brilhantes sucessos em meio a uma infinidade de fracassos. Sou capaz de sustentar que minha teoria é a primeira e única até hoje que leva em consideração o quadro clínico. Qualquer outra teoria, diante de fatos como pecado, a doença ou as catástrofes, é forçada a admitir que a Onipotência, no fim das contas, não teve nada com o peixe, o que seria um absurdo. Não preciso me escorar em tais ridicularias e blasfêmias. Apenas presumo que cada um dos deuses do conselho-diretor do universo é infinitamente sábio e poderoso, sem fugir ao fato cristalino de que muitas das realizações deste conselho são descabidas e ignorantes. 

Na verdade, minha suposição de que tal conselho existe é equivalente a uma suposição a priori de que suas realizações são descabidas e ignorantes, ou não teriam sido concebidas por um conselho. Bem, estávamos dizendo que a mão humana é perfeita ou, no mínimo, prática e funcional, não? Só posso explicar isto pela suposição de que ela foi criada por um único membro do conselho – talvez porque, inadvertidamente, os outros lhe tenham passado a bola ou como resultado de irreconciliáveis diferenças de opinião entre eles. Se mais de um membro tivesse participado ativamente do design da mão, ela teria saído muito menos funcional do que é, porque o esboço original produzido pelo designer seria submetido a uma bateria de críticas e sugestões partidas dos outros conselheiros – todas elas inferiores à idéia original e muitas delas com o único intuito de malhar uma boa idéia. 


Estarei com isso acusando tais deuses de partilhar de vergonhosas fraquezas humanas? Se os acusei, minha desculpa é a de que é impossível imaginá-los fazendo o trabalho que lhes foi universalmente atribuído sem admitir o uso dessas fraquezas. Não se pode imaginar um deus que passa semanas, meses e talvez eras geológicas inteiras, fazendo e refazendo o design do fígado humano sem pressupô-lo movido por um poderoso impulso de se expressa vividamente, ordenar suas idéias e publicá-las, para ganhar o respeito de seus pares – em suma, sem presumi-lo um egoísta. E não se pode presumir que ele seja um egoísta sem presumir que ele prefere suas próprias idéias às idéias dos outros deuses. Desafio qualquer um a fazer uma suposição em contrário sem mergulhar em misticismos. 


Com os misticismos fora do caminho, chega-se inevitavelmente à conclusão de que a inepta condução do universo pode ser atribuída a um choque de egos, i. e., a picuinhas e vinganças entre os deuses – já que qualquer um deles, sozinho, se for infinitamente sábio e poderoso, poderia administrálo perfeitamente. Se sofremos dores de estômago é porque o deus que primeiro teve a idéia de um estômago despertou a inveja dos que não tinham pensado naquilo antes – os quais imediatamente se dedicaram à tarefa de aperfeiçoar, digo avacalhar, o seu trabalho. E a nossa forma de reproduzir a espécie – da maneira trabalhosa, antieconômica, indecente e quase patológica que todos conhecemos – só ficou assim quando o deus que criou o excelente processo aplicado aos seus seus protozoários teve de ser posto em seu lugar quando resolveu estender este processo aos primatas. 

- 1924

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