terça-feira, 23 de maio de 2017

MORTOS SEM SEPULTURA- JANER CRISTALDO

MORTOS SEM SEPULTURA  

Três suecos viajam na mesma cabine de um trem. Dois se conhecem há muito e contam piadas. O terceiro ouve em silêncio. Após algum tempo, não podendo mais conter-se, apresenta-se: — Desculpem, chamo-me Perr, os senhores permitem que eu também ria? Os suecos, ao ouvir esta anedota, não a captam em seu significado, como a um brasileiro, por exemplo, não surpreende ou revolta o fato de receber troco em balas ou goma de mascar, como se estas tivessem curso forçado. O meridional que pretenda satirizar os hábitos nórdicos com a anedota ficará decepcionado. Medelsvensson, além de não possuir o mínimo senso de humor, conceberá o episódio como perfeitamente ocorrível. Jamais pensaria em rir de piadas contadas por desconhecidos. 

Não manifestar externamente o que lhe vai por dentro, eis umas das mais rígidas normas de seu comportamento. Se vai ao teatro e gosta da peça, aplaudirá com a ponta dos dedos. Um cantor popular estrangeiro queixou-se certa vez de que os suecos aplaudem por filas. Sem que a primeira fila tenha aplaudido, a segunda não se decidirá a fazê-lo. Se o vizinho deixa as luzes do carro acesas, não o avisará, isso não lhe diz respeito. Não mostra a um colega as fotos de sua família, jamais lhe passaria pela cabeça que o outro pudesse apreciar o gesto. Não pede cigarros a um amigo, mas ao perguntar se ele não tem um para vender-lhe, já leva na mão uma moeda de 25 öre. 

Há poucos anos foi promovida uma campanha nacional para introduzir o uso do tu nas relações diárias. Até então, nem uma dona de casa tutearia uma doméstica. E para não chamá-la com excessiva reverência, tratando-a de senhora, dizia: Pode Anna me alcançar aquele par de sapatos? Mesmo universitários tratavam-se entre si por senhor. A iniciativa do tuteamento cabia ao mais velho. Hoje, um estudante tuteia sem maiores hesitações um catedrático. Este fechamento em si mesmo, respeito e medo ao outro, foram herdados de seus antepassados e da própria terra, e hoje torna-se mais radical ainda em razão das atuais estruturas sociais do país.

 O observador não-nórdico carece de condições para entender qualquer hábito ou manifestação cultural sueca, se não conhece a história e geografia escandinavas. (Os equívocos mais freqüentes ocorrem com Ingmar Bergman. Muitos críticos afirmam ser o verão para Bergman símbolo de vida, fuga da morte, despertar dos instintos. Um outro: na concepção bergmaniana, o sacerdote nada mais é senão um assistente social. Ora, Bergman não está sendo em nada original ao associar o verão à vida, este é um dos sentimentos mais intensos de seu povo. Durante os oito meses do inverno escandinavo, sol é propaganda da agência de turismo. No dia 30 de abril. Valborgsmässoafton, os estocolmenses, muitas vezes sob a neve, comemoram em Skansen, em torno a uma fogueira, o retorno da luz e do verão. 

A 13 de dezembro, quando em Estocolmo o dia clareia às 9 horas e escurece às 16, homenageia-se a luz, é o dia de Santa Lúcia. Mais ao norte, na Lapônia, durante quase um mês, a noite é contínua. Ao meio-dia, uma vaga luminosidade no horizonte insinua a existência do sol. Os primeiros povos que habitaram a região enviavam sentinelas ao mais alto monte, em busca de notícias da Grande Luz. Mal a sentinela vislumbrava os primeiros raios do sol, voava da montanha ao vale transmitindo a boa nova ao povo. O retorno da luz era comemorado como o grande acontecimento do ano. E quando Bergman apresenta um sacerdote como assistente social, está apenas fotografando um padre sueco, Desde os tempos em que Gustav Vasa encampou os bens da Igreja Católica e fundou uma igreja nacional, as funções sacerdotais pouco têm de místicas.) 


O auto-isolamento do sueco, segundo Vilhelm Moberg, tem suas primeiras causas na própria geografia da região: “A Suécia era e continua sendo um grande reino de florestas, onde desde o princípio existia urna grande distancia entre os homens. O sueco está impregnado de sua qualidade de habitante da floresta. Tomou muitos sobrenomes da floresta: Björk, Gran, Ek, Kvist, Gren, Rot, Hägg, Bok, Rönn, Alm, Lind, Stam, Ask, Asp (10).” As distâncias entre cada um teriam seu aspecto positivo: o sueco era obrigado a ajudar-se a si mesmo, nenhum vizinho poderia assisti-lo. Por outro lado, este isolamento originou senso de limites, auto-suficiência, desconfiança e preconceitos contra estranhos. “Vivia sua vida enclausurado; o que acontecia do outro lado de sua cerca não lhe dizia respeito.


 Eis uma verdade banal mas inegável: na solidão o sueco nutria suas repressões, e conseqüentemente, a dificuldade para conviver aberta e naturalmente com outros homens. Em um ponto são todos os estrangeiros unânimes ao caracterizar-nos: temos dificuldade de relacionamento.” A endoutrinação intensa do governo social-democrata no sentido de extirpar este sentimento atávico de conduzir o povo a hábitos e práticas coletivos, através de escolas, círculos de estudo e mesmo da arquitetura, fracassou. Cadáveres encontrados semanas ou meses após a data da morte em apartamentos na região de Estocolmo são notícias rotineiras na imprensa, nem merecendo mais grandes manchetes. Um dos últimos casos, talvez pela falta de acontecimentos mais importantes, ocupou as primeiras páginas.

 Em maio 72, descobriu-se o cadáver de um velho aposentado, cuja morte ocorrera seis meses atrás. Estava caído na cozinha. Foi visto por operários de uma construção ao lado do edifício, no centro de Estocolmo. Ninguém o conhecia, parente algum o visitava. Sua presença não fazia falta a ninguém. Os vizinhos, interrogados pela imprensa, declararam tê-lo visto pela última vez antes do Natal. Como não o conheciam pessoalmente, jamais se inquietaram por sua ausência. Não é difícil imaginar-se a morte despercebida de um aposentado isolado do mundo e dos homens. Mas casos menos concebíveis já ocorreram. O cadáver de um estudante foi encontrado em uma residência estudantil quatro semanas após sua morte.


 A bem da verdade, tais fatos não ocorrem apenas entre os suecos. Em fevereiro 72, em Sidney, Austrália, um passante pede fogo a um homem sentado em um banco. O interpelado não responde. No dia seguinte, o passante o encontra no mesmo lugar, na mesma posição. Toca-o com a mão, o homem não move um músculo. Morrera há nove dias atrás. Em fevereiro 70, em Lyon, França, foi forçada a porta do apartamento onde residia Aristide Cails, por falta de pagamento de aluguel. Lá dentro, seu esqueleto. Morrera em 64. Como os aluguéis eram descontados diretamente em sua conta bancária, sua existência só foi notada quando seu saldo chegou a zero. 

Reflexo deste drama universal, os jornais suecos mantêm nos classificados uma rubrica — Personligt (pessoal) — onde diariamente centenas de pessoas isoladas e machucadas pela vida buscam outras, tanto para relacionamento sexual ou afetivo como também simplesmente para um passeio ou para tomar juntos um copo de vinho. A proteção total concedida pelo Estado ao cidadão é, uma das causas deste abandono. A pensão paga a todos aos 67 anos fundamenta-se na consideração de que o auxílio aos pais na velhice não constitui dever dos filhos, mas do Estado. O afastamento físico entre pais e filhos ocorre quanto estes atingem a idade universitária, passando então a morar em residências estudantis ou pequenos apartamentos. As visitas espaçam-se. Após um certo tempo passa a ser inclusive descortês visitar os pais sem um prévio contato telefônico. A segregação etária aumenta à medida que os anos passam. 

Hoje, muitas crianças encaram um ancião como um exemplar de zoológico, pelo fato de jamais terem convivido com um. Uma aposentada de 72 anos optou pela fuga desta solidão: embarcou para o Brasil e hoje mora em Recife, onde já construiu três escolas com material de prédios demolidos na Suécia. “Minha vida começou agora”, afirmou. Tal ostracismo tem origem numa velha instituição viking, o ättestupa, palavra que hoje significa precipício. Nos tempos vikings, era o penhasco do qual os anciões se jogavam — voluntariamente ou empurrados em caso de hesitação — diante da assistência da família. Segundo a crença religiosa vigente, quem morresse na cama não teria acesso ao Valhala, destinado apenas aos guerreiros mortos em batalha — ou no ättestupa.

Sob a ficção religiosa, a realidade de um solo e clima hostis ao homem: quem não trabalha não come. Da mesma época data o ölgrav (literalmente, cerveja da tumba). Uma morte era sempre celebrada pelos familiares e vizinhos com uma cervejada em torno ao caixão do defunto. Uma boca a menos é sempre motivo de alegria. A alimentação, desde a era glacial até os tempos social-democratas, constituiu problema e pomo de discórdia para os escandinavos. Antes do evento dó cristianismo na Suécia, no caso do nascimento de uma filha, não era raro abandoná-la na floresta. Uma mulher seria sempre uma carga para a família, um varão nova força de trabalho. Na mitologia nórdica vemos o reflexo destes tempos de fome.


 Enquanto o catolicismo — religião intensamente marcada pela sexualidade — acena a seus crentes com as 44 mil virgens no paraíso, no Valhala abate-se todos os dias o porco gordo Särimener, que ressuscita na manhã seguinte, para ser carneado novamente pela tarde. E na história escandinava, encontramos talvez a única rainha que experimentou fome, Margareta Valdemarsdotter — Rei sem Calças para seus desafetos — promotora da União de Kalmar que originou a comunidade nórdica (Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia) escreve em 1369 a seu esposo, rei Hakan, da Noruega, que ela e seus servidores se ressentem da falta de alimentos e bebida. Não têm provisões para as necessidades do dia, e teme que seus servos a abandonem por razões de fome. Antes, era a luta do homem contra uma natureza avara de seus recursos, que só se renderia a técnicas agrícolas posteriores, e olhe lá!

 Hoje, o problema é antes de tudo de orientação política e segurança nacional. Para garantir sua “neutralidade” no caso de um bloqueio econômico, a legislação do país dispõe que 80% da produção de alimentos deverá ser feita em seu solo, apesar do clima desfavorável à agricultura. Mais que uma continuidade da Europa, a Suécia é um prolongamento da Sibéria. Não fossem as correntes do Gulf Stream, aquecidas pelos trópicos, o país estaria constantemente coberto pela neve. Em tais condições, a agricultura e pecuária exigem uma série de cuidados que encarecem o produto final, o que se reflete não apenas nos hábitos alimentares como também no modus vivendi. Fossem os alimentos importados, seriam mais baratos. Christina Kellberg, em reportagem em DAGENS NYHETER, propunha algumas questões embaraçosas: Temos condições de ser hospitaleiros? Hoje, nossa economia não permite a hospitalidade dos velhos tempos, mas sempre desejamos conviver com nossos amigos. Precisaremos chegar ao ponto de pedir-lhes que paguem suas despesas? 

Os suecos concluíram pela resposta afirmativa. Ou cada um paga as despesas da visita, ou não se confraterniza. Em muitos lares, na cozinha há um aviso: Adoramos ver nossos amigos tanto quanto possível, mas isso torna-se muito caro. Deixe portanto algum dinheiro nesta caixinha para cobrir os custos da comida. 

LISTA DE PREÇOS
 Almoço 5 coroas 
 Diária com pernoite 10 coroas 
Cerveja 3 coroas 
Garrafa de vinho 5 coroas
 Crianças abaixo de 10 anos metade do preço 

Uma dona de casa relata à repórter sua experiência de uma visita de parentes à stuga: — Eu e meu marido fomos para o campo numa tarde de segunda- feira. A stuga estava ocupada por nossa filha e genro. Concordamos em dividir os gastos em comida. O varubuss (11) passou, ela comprou mantimentos, pagou e entrou com caixas e notas. O custo total era de 40 coroas, 20 para cada casal. Mas meu marido não quis pagar as maçãs (4 coroas), pois o pátio estava cheio delas. — Ah é? — disse a filha com azedume. E pagou 22 coroas. Na terça-feira, o pai apanhou uma das maçãs compradas. A filha arrancou-a das mãos, pois ele não havia pago maçã alguma. Na quarta-feira, pai e mãe voltavam para a cidade. Muitos casais das gerações mais velhas, por uma questão de dignidade, recusam-se a cobrar — ou pagar — despesas de festas. Condenam-se então a um isolamento ainda maior, pois não têm realmente condições de receber em casa. Mas por outro lado, muitas vezes Medelsvensson não pode receber gratuitamente suas visitas por estar pagando as prestações de seu veleiro, lancha ou stuga. Os bravos suecos construíram uma bela nação, cujo nível de vida é o mais alto de toda a Europa. Mas standard se paga caro, e o preço traduz-se não apenas monetariamente, como também no deterioramento das relações humanas.

Do livro o PARAÍSO SOCIAL DEMOCRATA-©2012 — Janer Cristaldo

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