terça-feira, 12 de julho de 2016

Andrea Faggion- Propriedade e Impostos

Alguns esclarecimentos conceituais se fazem necessários em virtude de um post mencionando impostos que escrevi recentemente. Todos já nos deparamos com uma espécie de libertarianismo vulgar, digamos assim, praticado ferozmente na internet por jovens cuja formação filosófica não parece ultrapassar muito a leitura auto-didata de pensadores como H. H. Hoppe e similares. Esses jovens não concluem que imposto é roubo após discutir civilizadamente com proponentes de teorias rivais. Eles partem do princípio de que imposto é roubo e acusam o oponente de degeneração moral, valendo-se de agressões verbais e deboches imagéticos. Vejamos então os conceitos.
Primeiramente, temos que distinguir a propriedade da posse. Posse é um conceito descritivo. Não comporta qualquer normatividade. É a mera detenção física ou controle de um corpo. Propriedade, por sua vez, é um conceito normativo, e não descritivo. Significa um direito à posse ou ao controle, com exclusão de outros. Se um indivíduo é proprietário de um objeto cujo uso é pretendido por outro, o segundo precisa da autorização do primeiro para tal uso. Já o não proprietário não pode impedir o uso do proprietário de seu objeto, a menos que este último esteja fazendo uso de seu objeto de forma a violar algum outro direito equivalente ou superior. 
Nota-se que o conceito de propriedade não é nenhuma trivialidade. Por que um indivíduo teria propriedade sobre um corpo, ainda que fosse o seu próprio? Direitos não são realidades observáveis. São alegações contrafatuais. Seu sentido e seu fundamento não são evidentes. Quando estendemos nossos direitos sobre corpos diferentes dos nossos, o desafio filosófico fica ainda maior. Por que eu poderia excluir outros do uso de objetos que são tão disponíveis a eles quanto a mim? Certamente, essa não é uma questão para ser estudada por um único viés, dando-se o assunto por encerrado, um vício comum no auto-didata. 
E o imposto? O imposto é o recolhimento, por parte de uma autoridade, de um bem que está em posse de um indivíduo, mas não é propriedade dele, mas sim da coletividade. Assim, a autoridade pode fazer uma ameaça de uso da força caso o indivíduo persista na posse do que não é seu por direito. Temos aqui outro conceito normativo. O imposto pressupõe a legitimidade de uma autoridade e o próprio conceito de propriedade, agora, pensado para todos, em nome de quem fala a autoridade, com exclusão de cada um em particular. 
Conclui-se que 1) se não existe tal autoridade; 2) se não existe propriedade coletiva; 3) se existe somente propriedade individual; 4) se o indivíduo cobrado pela suposta autoridade é o legítimo proprietário do bem, então sempre que alguém se colocar como uma autoridade, pretendendo, por ameaças, fazer passar a posse desse indivíduo para a coletiva, ele estará roubando uma propriedade privada. 
Por outro lado, 1) se existe autoridade legítima para falar em nome da sociedade; 2) se existe também propriedade coletiva; 3) se o bem em posse de um indivíduo é de propriedade coletiva, então, sempre que o indivíduo pretender continuar de posse desse bem, ele estará roubando a sociedade. Mas como seria possível que o indivíduo que gerou o valor para um objeto fosse o ladrão do bem que ele não tomou de outrem, mas apenas se recusa a entregar para o uso coletivo? 
Classicamente, teorias que reconhecem a propriedade privada e o imposto tratam o último como um custo de manutenção da sociedade sem a qual não haveria bem algum para ser propriedade privada. Se eu compro um carro, eu pago por ele aos indivíduos envolvidos em sua produção e comércio. Mas um carro só existe, porque existe toda uma sociedade. Se a sociedade desaparece, segue o argumento, o que nos resta é uma luta diária pela sobrevivência, com paus e pedras. Daí que, se a ordem social depender da figura de uma autoridade administrando a justiça e protegendo-a de ataques externos, essa figura pode e deve cobrar os custos disso. Aquele que se recusa a pagar os custos passa a ser o chamado "carona": ele se aproveita do pagamento feito pelos outros e os onera mais por não fazer sua parte.
Mas a sociedade precisa de uma organização que a administre de forma centralizada, ou ela pode funcionar com cada um fazendo seus próprios arranjos, coletivamente ou não, para administrar a justiça e proteger direitos? Essa é uma boa discussão, que não deveria ser reduzida a trocas de insultos infantis. Só um néscio, afinal, consideraria evidente a possibilidade da administração privada da justiça e, portanto, que imposto é roubo.

Meu comentário- *Penso que o imposto em si não é roubo. Mas o que ocorre em nosso país  é um verdadeiro assalto.

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