quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Andrea Faggion- José, João e uma certa concepção de justiça

José, João e uma certa concepção de justiça

by andreafaggion
José e João nasceram e foram criados no mesmo bairro, onde frequentaram também a mesma escola, ambos destacando-se entre os melhores alunos. As semelhanças entre eles, porém, encerram-se por aí. Não tinham os mesmos objetivos de vida, não compartilhavam os mesmos valores e não encontravam prazer no mesmo tipo de distração.
José foi um menino introspectivo e um leitor voraz desde a adolescência. Sua única ambição era poder dedicar sua vida às letras, o que lhe proporcionava um prazer intrínseco. Quem faz aquilo que gosta não trabalha nunca, dizia ele. Acabou se tornando professor de filosofia em uma universidade respeitada. Para quem apreciava, sobretudo, a contemplação da natureza, a companhia dos amigos e a leitura dos clássicos, seu salário, pouco mais de R$10.000,00 líquidos ao mês, era mais do que suficiente.
Já João, bom, João nunca estudou propriamente por prazer. Seu afinco nos estudos visavam um objetivo. Ele sonhava com carros esportivos, barcos velozes, viagens de luxo, restaurantes sofisticados... Assim, mesmo que João até tivesse suas preferências em certas áreas, ele escolheu aquela profissão que julgou acertadamente ser a mais demandada pela sociedade.
Sua ambição o fez optar por uma carreira em que ele pudesse prestar serviços bem remunerados, desde que se destacasse como profissional. João não mediu esforços para se qualificar mais do que qualquer outro em sua área. Tornou-se um engenheiro de ponta, disputado pelo mercado. Seus serviços, finalmente, eram tão valorizados pela sociedade que ele fechou um contrato que lhe garantiu um salário mensal bruto de R$109.000,00. E, veja bem, ele não "ganhava" esse salário. Afinal, exceto pela mesada do pai, João nunca "ganhou" dinheiro. Obviamente, ele produzia mais do que esse valor para sua companhia e, por isso, assim ele era pago por seus serviços.
José era feliz. João era feliz. Mas nem tudo era perfeito em suas vidas (cada uma à sua maneira) bem sucedidas. Ocorre que José e João viviam sob um Estado corrupto, ineficiente e inconsequente. Como resultado, esse Estado se tornou incrivelmente endividado e, portanto, ávido por receitas.
É verdade que José e João já deixavam uma boa parte de seus vencimentos com esse Estado, além de terem que usar outra parte de seus salários líquidos para pagarem outros impostos diretos e indiretos. Mas isso ainda era pouco para aquele Estado insaciável e fora de controle.
Quanto a José, felizmente, não ocorreu a ninguém que ele devesse ser forçado (digamos, 2 horas por dia) a usar sua capacidade em algo mais útil para a geração de valor, para que ele pudesse contribuir mais ainda com o financiamento daquela gigantesca máquina pública. João é que estava na mira. Como ele optou pelo caminho da utilidade e se preparou para oferecer bens que a sociedade demandava grandemente, pensou-se que ele deveria ser como que punido por sua alta produtividade. Sugeriu-se que nada menos do que 40% de sua remuneração deveriam ir diretamente para o buraco negro estatal.
Agora, devemos nos perguntar o quanto essa curiosa concepção de justiça, que persegue os que mais geram valor à sociedade, teria afetado as decisões do ambicioso João se já fosse vigente à época de suas escolhas iniciais. Ele faria os mesmos sacrifícios se soubesse que, quanto mais útil ele fosse reconhecido pela sociedade, mais pagaria por isso, chegando a tanto no ápice? E o que João decidiria diante da oportunidade de ofertar seus valiosos serviços em outra sociedade, uma que não lhe impusesse um ônus tão grande por fazer bem feito o que tantos querem que seja feito e poucos podem fazer? E se João encontrasse ainda uma sociedade que lhe impusesse um ônus até maior, mas lhe oferecendo em troca a qualidade de vida que sequer se poderia comprar na sua sociedade de origem?
No fim, João quer dinheiro, tantos querem o que João está disposto a produzir em troca desse dinheiro e todos perdem quando o Estado gigante, ignorando o quanto João já está servindo à sociedade para ser tão bem recompensado por ela, cobra essa mesma utilidade uma segunda vez na forma de pesados tributos.
Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e dos programas de mestrado em filosofia da Universidade Estadual de Londrina e da Universidade Estadual de Maringá

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