segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Direito alternativo e ditadura da minoria by andreafaggion

A reflexão que proponho hoje começa colocando em suspenso um problema que deve ser recorrente neste espaço: a legitimidade do estado e o decorrente dever moral de obediência a suas leis. Meu ponto é que, ainda que deixemos essa questão em aberto, é possível traçar uma importante distinção entre o que chamamos de "Estado Democrático de Direito" e uma milícia ou quadrilha qualquer. Essa diferença é que os agentes do estado, por maior que seja a autoridade com que foram investidos, precisam agir com base em uma pretensão de correção ou de adequação a normas previamente estabelecidas.
Compare a aplicação de uma lei tida por injusta com a ação de um criminoso comum qualquer. A lei permite que um agente saiba que tipo de ação implica no sofrimento de uma determinada sanção. Portanto, o agente sabe como proceder para evitar sofrer sanções por parte do estado, ou seja, para não sofrer uso de força estatal. Por exemplo, uma lei pode ser brutal a ponto de determinar a pena de morte para quem desrespeite um toque de recolher entre às 22h00 de um dia e às 6h00 do dia seguinte. Mas, por meio da lei, o agente sabe como evitar a pena: não saindo de casa nesse horário. O mesmo vale para o direito civil. Um agente que vende um bem por uma determinada quantia pode ser forçado a devolver o valor recebido, caso não entregue o bem. Mas ele não pode ser aleatoriamente forçado a entregar uma quantia arbitrariamente estabelecida por alguém a alguém arbitrariamente escolhido. Mesmo os tributos seguem leis. (Idealmente) sabemos quanto pagaremos em tributos antes mesmo de efetuarmos uma dada transação.
Passando agora à ação do criminoso comum, ele nos deixa na mais completa insegurança, porque pode estar à espreita em cada esquina a qualquer hora do dia, podendo nos levar a carteira ou a vida, conforme sua disposição de ânimo. Inclusive, embora eu tenha prometido deixar em suspenso a questão da legitimidade do estado, abro um parêntese para dizer que é a angústia permanente provocada por esse estado de coisas de completa insegurança que faz com que muitos aceitem a proteção do estado, se efetiva, por mais injustas que possam ser as leis.
Com essas ponderações em mente, pensemos sobre o chamado "Direito Alternativo". Esse movimento pensa a aplicação do direito como uma aplicação da justiça, que, por sua vez, é entendida de modo exterior à "letra da lei" e em termos das necessidades dos mais carentes. Esse movimento parte de premissas razoáveis. Além de não ser o caso de nosso ordenamento jurídico (ou de qualquer outro) formar um sistema perfeitamente unificado e coerente de normas, que determinaria necessariamente qualquer decisão judicial, mediante a adição dos fatos específicos constantes do processo, deve-se, sobretudo, levar em conta a existência de normas abertas e conceitos jurídicos indeterminados, que fazem com que a justificativa de uma decisão judicial tenha que ir além da simples justificativa da escolha de um código para fundamentar a decisão.
Cláusulas gerais ou abertas se definem em oposição às normas casuísticas, que enumeram as hipóteses de aplicação. Assim, cláusulas abertas concedem mais autonomia ao juiz para que ele considere a subsunção ou não do caso à norma. Já os conceitos jurídicos indeterminados não possuem um conteúdo sem que se acrescente a ele o que poderíamos considerar uma doutrina ou teoria da justiça. Em princípio, essa doutrina deveria ser buscada no direito constitucional, motivo pelo qual se fala, por exemplo, em uma constitucionalização do direito civil, dada a presença desse tipo de conceito indeterminado no novo código civil brasileiro. Porém, a própria constituição está permeada de conceitos do tipo. "Liberdade", "igualdade", "dignidade humana", "interesse público", "interesse coletivo", "função social"... são alguns exemplos de expressões cujo significado varia completamente conforme a doutrina ou teoria da justiça favorecida.
Dada a enorme abrangência dos dispositivos legais que contêm expressões como as citadas, um juiz pode interpretar um desses dispositivos na contra-mão do senso comum e da jurisprudência, correndo o risco de ter sua decisão reformada por instância superior, mas não de ter cometido alguma ilegalidade. É essa abertura do ordenamento jurídico à discrecionariedade do juiz que dá margem ao movimento do "Direito Alternativo". Em outras palavras, não se trata (necessariamente) de um movimento "contra legem", afinal, ele opera nas lacunas, ambiguidades e antinomias do ordenamento jurídico.
Mas se não se trata de descumprir a lei, qual o problema com o "Direito Alternativo"? O grave problema, a meu ver, é que não se propõe que as lacunas do direito sejam preenchidas e suas ambiguidades e antinomias sanadas por meio da jurisprudência e de uma interpretação das regras de justa conduta aceitas pelo senso comum (pelo costume). Em vez disso, o direito é assumido como um grande jogo de interesses, no qual, em sendo impossível a neutralidade, o juiz deve tomar o partido do mais fraco. Eis o ponto nodal, repito: o juiz toma partido!
Ora, o que dissemos acima implica que casos similares sob todos os aspectos relevantes podem ser julgados de modos opostos pelo mesmo juiz, dependendo da condição econômica das partes. Aliás, a condição econômica das partes torna-se "o" aspecto relevante. Assim, eu não sei mais como proceder para, por exemplo, não ter que indenizar alguém. Se terei ou não que pagar uma indenização, pode depender, em última instância, do poder aquisitivo de quem me processa. Da mesma forma, eu não posso ter a segurança de que o estado garantirá o cumprimento de um contrato que alguém firmou comigo, se esse alguém for considerado carente ou necessitado pelo juiz e eu, não.
Vou encerrando por aqui, com duas considerações finais. Primeiro, S e o propósito é amparar os pobres, será que, ao sacrificarmos a segurança jurídica, não estaríamos inviabilizando a produção de riqueza? Considere que o movimento em questão torne-se majoritário. Quem, em sã consciência, ao ganhar seu primeiro (meio) milhão, o arriscaria em um empreendimento no Brasil, em vez de deixá-lo em segurança em uma conta na Suíça? Quem vai fazer negócios formais com aqueles que têm salvaguarda judicial para violar contratos?
Minha segunda e última ponderação diz respeito à democracia. Os defensores do movimento analisado aqui falam em um "direito achado na rua". Mas falam da rua quando ela está sendo usada pelo feirante ou quando ela está sendo tomada por uma passeata? O feirante orienta-se por regras de justa conduta tacitamente partilhadas pela sociedade. Passeatas são feitas por minorias bem organizadas a ponto de formarem juízes, mas que, muitas vezes, não representam muito mais gente do que aqueles que marcham ombro a ombro naquele momento. Considerando então que, no Brasil, juízes não são eleitos pela população, que democracia é essa? Não seria a ditadura das minorias politicamente ativas?

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