quinta-feira, 23 de julho de 2015

LEANDRO NARLOCH- Gastronomia ou superstição?

Pouca gente levou a sério a recomendação da chef e apresentadora Bela Gil de usar cúrcuma para escovar os dentes. Mas outras opiniões da chef, como a de que os fertilizantes, agrotóxicos e produtos industrializados prejudicam a saúde, têm milhões de adeptos.
Como no caso da cúrcuma, os ataques à alimentação industrial não têm fundamento. Se fosse verdade que aditivos e agrotóxicos não são seguros, a incidência de câncer estaria explodindo, mas a taxa de quase todos os tipos da doença caiu ou ficou estável nas últimas décadas. A maior redução ocorreu justamente nos tipos de câncer do aparelho digestivo, provavelmente porque a popularização da geladeira e dos conservantes garantiu às pessoas alimentos mais frescos.
Um livro novo, The Gluten Lie and other myths about what you eat (“A mentira do glúten e outros mitos sobre o que você come”), explica por que tanta gente acredita nos mitos difundidos pelos gurus das dietas naturebas. O interessante é que o autor, Alan Levinovitz, não é um médico ou nutricionista, mas professor de filosofia da religião. Ele trata as dietas e recomendações alimentares atuais como parte de uma longa tradição humana de criar julgamentos morais, superstições e tabus sobre comida. “A chave para entender as dietas da moda não é a ciência, mas a história”, diz ele.
Analisando superstições alimentares de diferentes sociedades, Levinovitz identificou alguns padrões. Um deles é o hábito de considerar alguns alimentos sagrados e outros profanos, remédios ou venenos. Outro é a crença de que para atingir a salvação é preciso deixar de comer o que todo mundo come.
Por exemplo, monges taoistas do século 1 acreditavam que as pessoas se livrariam de todas as doenças e atingiriam a transcendência se deixassem de comer grãos, base da alimentação daqueles tempos. A proibição dos grãos representava a rejeição à cultura da época e a promessa de retorno para um paraíso mítico pré-agrícola.
Hoje, os gurus da dieta também rejeitam a alimentação corrente – os enlatados, o McDonald’s e a agropecuária intensiva – com base numa imagem paradisíaca do passado. Um parágrafo do livro parece descrever a chef Bela Gil:
A narrativa mítica da modernidade antinatural e do paraíso natural do passado nunca foi tão persuasiva. Figuras religiosas como Adão e Eva não são mais plausíveis, por isso os gurus da dieta os substituíram por ancestrais vigorosos do Paleolítico, que corriam alegremente pela floresta coletando frutos e caçando javalis, sem se preocupar com diabetes ou autismo. Os alimentos que pertencem ao passado culinário são do bem. Por contraste, os produtos da modernidade – o glutamato, o xarope de glicose, os transgênicos e o fast food – são os frutos tóxicos do pecado, as ofertas tentadoras de uma deusa terrível chamada Grande Indústria.
Bela Gil faz um bom trabalho divulgando receitas e técnicas de culinária. Mas, na hora de dar recomendações nutricionais (e odontológicas), precisa ter cuidado para não cair na pseudociência – e no ridículo. A propósito, aqui vai uma dica do filósofo Levinovitz para quem quer evitar ser aterrorizado pelos especialistas nutricionais:
Alimentos do dia a dia não são vivificantes ou letais. Mercearias não são farmácias. Sua cozinha não está cheia de assassinos silenciosos, e os charlatões que ganham dinheiro com falsas promessas e ciência duvidosa precisam ser desmascarados.
@lnarloch

Adendo: muitos leitores comentaram pedindo a fonte das pesquisas sobre a queda da incidência de câncer. A referência é o Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos, neste link. A imagem abaixo mostra a incidência de câncer em homens desde 1930. O único que sobe é o de câncer de pulmão, enquanto o de estômago cai drasticamente e a maioria segue estável. 
cancer rates

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