sexta-feira, 31 de julho de 2015

Ainda o “parto humanizado”: uma médica obstetra explica os riscos do parto domiciliar


Ainda o “parto humanizado”: uma médica obstetra explica os riscos do parto domiciliar

Meu texto sobre o tal “parto humanizado” gerou polêmica, como se esperava. Há certas posturas que não são apenas uma questão de preferência, e sim de seita religiosa fanática. A pessoa não opta por ser “vegana” e deixa os “carnívoros” em paz na churrascaria; ela precisa demonizar o ser “moralmente inferior” que ainda come carne. A pessoa não para de fumar e segue sua vida; ela se lança numa cruzada anti-tabagista com cores morais que trata como pária da sociedade o fumante. E por aí vai. Não seria diferente na questão do “parto humanizado”, óbvio.
Mas como isso envolve risco de vida para bebês, acho que é importante ignorar as ofensas e os xingamentos dessa turma e divulgar mais conhecimento técnico aos interessados. Recebi, como resposta ao artigo, uma mensagem de uma médica obstetra dando maiores detalhes sobre os riscos do parto domiciliar, e culpando a ideologia por isso. Abaixo, sua mensagem, para que cada um possa escolher o que fazer, mas de preferência com mais razão e menos emoção:
Rodrigo , boa noite.
Sou obstetra, trabalho em dois hospitais universitários no RJ (UERJ e Servidores) e sou professora adjunta de uma Universidade particular. 
Desde o início do governo do PT, os médicos têm sofrido diversas injustiças. Todos os profissionais estão sendo colocados no mesmo pacote da minoria que não nos representa. Começou com o “Mais Médicos”, baseado num discurso desonesto de que médicos não gostam de pobres e não querem ir para lugares longe. E o resto vc sabe.
Nesta mesma lógica começou o movimento para excluir o médico da assistência ao parto. Com o mesmo discurso desonesto, usaram o termo humanização para contrapor o termo violência obstétrica, que seria praticada pelo médico.
O que é humanização? 
A humanização é uma série de medidas na assistência ao parto, onde a gestante tem autonomia e os recursos, apesar de disponíveis, não são usados quando desnecessários ou indesejados. 
Neste movimento, algumas intervenções que eram feitas de rotina, como ficar restrita ao leito; com soro; em dieta zero; fazer enteróclise e tricotomia, foram abolidas após os estudos não mostrarem benefícios. 
Outras intervenções, como uso de ocitocina; analgesia; episiotomia; fórcipe e cesariana , os estudos mostraram não serem necessárias rotineiramente, mas fundamentais quando indicadas pelo médico. Logo, não são formas de violência. 
O parto de baixo risco pode ser acompanhado por obstetriz (enfermeira especialista em obstetricia). Em caso da obstetriz detectar alguma complicação no trabalho de parto, a gestante é encaminhada para o médico, que faz os procedimentos. Então, o médico é o único capacitado para reverter as complicações e para isso precisa de recursos, como medicamentos, exames complementares ou cirurgias. Logo, o ideal é o parto hospitalar (onde os recursos estão imediatamente disponíveis) com médico na equipe (o único capacitado para reverter). 
O que vem acontecendo? 
Esse termo humanização, que seria apenas considerar o parto como um processo fisiológico e evitar intervenções desnecessárias, foi extrapolado para excluir o médico e criminalizar as intervenções. Isso deu base ao crescimento de um movimento de parteiras, muitas leigas, que faz o seguinte discurso desonesto:
O parto é natural, a mulher sabe parir, o bebê sabe nascer. Os procedimentos médicos são formas de violência. Logo parir em casa, longe do médico e do hospital, é mais seguro. Quanto mais primitivo for o parto, mais mãe a mulher vai ser. O parto é uma forma de “empoderamento”, ativismo, de desafiar o “sistema”. O apelo sentimental é tão grande que muitas pacientes fazem rifas na internet para pagar cerca de 10 mil reais para parir em casa. Outras ficam em depressão ou rejeitam o bebê por não conseguirem parir como sonharam. 
Ao minimizar riscos, esse discurso banaliza o parto. De fato, os partos acontecem. Mas é como uma roleta russa com uma bala só. Na maioria das vezes dá certo, mas não dá pra contar com a sorte. Para médicos, não importa apenas o bebê sair. Precisa nascer vivo, sem sequelas, e sem prejuízo à saúde da mãe. E hoje temos recursos suficientes para evitar quase 100% das mortes no parto. Logo , não justifica voltar a contar com a sorte e a seleção natural. 
Esse discurso coloca de um lado a humanização (como se os procedimentos nunca fossem necessários), feita por parteiras. De outro lado a desumanização da violência obstétrica, feita por médicos. 
Parto humanizado não é sinônimo de parto domiciliar, de sentir dor, de abrir mão dos recursos, de excluir o médico. Parto humanizado não é sinônimo de parto vaginal. A cesariana pode ser indicada ou desejada, afinal, humanização inclui também a autonomia.
Parto humanizado não é sinônimo de ser tratada com respeito. Isso é obrigação em qualquer relação interpessoal. 
Parto humanizado não é abrir mão dos recursos por ideologia, ativismo, feminismo ou empoderamento. É simplesmente um conjunto de medidas, que visam que o parto seja visto como um evento fisiológico e por isso sejam evitadas intervenções desnecessárias ou indesejadas. 
Médicos e hospitais não são contra a humanização. Mas desaconselham o parto domiciliar, devido aos riscos do parto com privação dos recursos.
Que problemas o parto domiciliar causa?
- o trabalho de parto precisa ser acompanhado por especialista (enfermeiro capacitado ou médico). Mesmo partos de baixo risco podem complicar. Se acontecer parada da progressão do parto (descida do bebê e dilatação), precisa ser prontamente diagnosticada e corrigida. Sem isso o trabalho de parto fica prolongado e leva ao sofrimento fetal. Nesse modelo de assistência, nem sempre a gestante está sendo acompanhada por um profissional capacitado e muitas vezes, quando encaminham ao hospital, já tem complicações graves ou irreversíveis instaladas.
- muitas emergências podem acontecer em qualquer trabalho de parto ou pós-parto, e temos alguns poucos minutos para resolver. É o caso do prolapso de cordão, descolamento prematuro de placenta, sofrimento fetal, embolia amniotica, rotura uterina, atonia uterina. Em ambiente hospitalar, a mortalidade é praticamente zero, já em casa é praticamente 100%. Mesmo tendo medico dando suporte em casa, sem os recursos do hospital ele pouco pode fazer. O risco de morte do bebê no parto domiciliar é 3 vezes maior, segundo as evidências cientificas.
- Como não resolvem as complicações , mandam para o hospital, para o médico para fazer os procedimentos (o mesmo médico que difamaram como violento por fazer tais procedimentos!). Mães e bebês encaminhados, quando morrem, entram para a estatística de morte hospitalar.
Seria mais justo:
1) Ser coerente com o discurso: Nascer e morrer naturalmente no parto, sem intervenções.
2) Ter um hospital de suporte, só com médicos que concordem com essa prática. Deixar as complicações para obstetras e pediatras difamados pelo movimento resolverem é incoerente. As complicações são encaminhadas tardiamente, já em estágios avançados ou irreversíveis, e o médico ainda é criminalizado.
- criminalizam a cesariana. 
A cesariana é um procedimento seguro. A morte pelo procedimento em si (erro de técnica) é raríssima. O que mata na cesariana é o mesmo que mata no parto normal: hemorragia e infecção.
As cesarianas sucessivas, depois que já fez mais de duas, aumentam riscos de dor pélvica, acretismo placentario, placenta prévia, rotura uterina.
A nível de saúde pública é interessante evitar cesarianas, porque:
- é cara, precisa de médico e estrutura
- pacientes não tem acesso ao planejamento familiar , assim se arriscam com cesarianas sucessivas
A nível da saúde suplementar, em mulheres que fazem planejamento, pode sim ser a escolha. 
A cesariana não é  a causa da mortalidade materna. Mães e bebês morrem de: 
- pre-natal inadequado para rastreamento dos riscos e diagnóstico precoce de intercorrências clínicas ou obstétricas.
- Acompanhamento inadequado do trabalho de parto, por profissionais sem capacitação, com diagnósticos tardios de complicações maternas, parada de progressão e sofrimento fetal.
- Falta de estrutura para reverter as complicações imediatamente
- Falta de pediatra na sala de parto
- Acompanhamento pós-parto inadequado, com diagnóstico e tratamento tardios de intercorrências clínicas, como hemorragias e infecções. 
Independente da via do parto, as mortes são, na maioria das vezes, relacionadas à assistência inadequada, e não à via do parto isoladamente.
Por isso morrem mais em casa, mas também em hospitais sem estrutura e com parto acompanhado por obstetrizes sem capacitação. A Maria Amelia é um exemplo, onde a responsabilidade é do médico, que dizem que nem sabe fazer o parto, quando na verdade: 
Eu concordaria se os bebês tivessem morrido do parto. Mas não, eles morreram do acompanhamento inadequado do trabalho de parto, do qual o médico não participou de forma ideal por acumular tantas funções, numa maternidade superlotada. 
Eles não morreram de falta de manobras no parto, morreram de trabalho de parto prolongado que levou ao sofrimento fetal. 
O que falta para melhorar a assistência é contratar obstetras e capacitar outros profissionais. Em muitos países o parto é acompanhado por obstetrizes, mas com formação de cerca de 7 a 8 anos em obstetrícia, e atuando em estruturas ideais. Aqui, a banalização da saúde leva ao acompanhamento por profissionais sem formação adequada, em maternidades superlotadas.
Não defendo maus médicos, mas com esse movimento de atendimentos e partos, nem obstetras com a melhor formação do mundo conseguem resultados favoráveis. Humanização precisa de estrutura e equipe capacitada e em número suficiente.
O que mata mães e bebês todos os dias em maternidades públicas não é o parto, é o pré-natal inadequado e trabalho de parto sem acompanhamento ideal. Parto qualquer um faz, na maioria das vezes nasce até sozinho. Mas detectar precocemente complicações e fazer intervenções no tempo certo, só profissionais capacitados.
Desculpa pelo texto tão longo. Não estou aqui defendendo os maus médicos. Mas mostrando como estamos sendo injustiçados e quantas mortes de mães e bebês ainda vão acontecer nesse caminho. A exclusão do médico leva ao acompanhamento da gestação e do parto por pessoas pouco capacitadas, que fazem  diagnósticos tardios, muitas vezes em ambientes, hospitalares ou domésticos, sem estrutura e isso, sim, tem sido causa de mortes em casa e em maternidades como a Maria Amelia. Incriminar a cesariana é mais fácil que estruturar para evitar as verdadeiras causas. Ao governo interessa para reduzir custos. Às ativistas , sob a bandeira da humanização, interessa para cobrar caro por partos “humanizados”. Só não interessa ao médico, que recebe a complicação e assina o óbito. E, principalmente, não interessa às gestantes, que perdem a vida ou os filhos numa assistência inadequada.
Obrigada Rodrigo, por seus textos sempre sensatos e pela atenção com esse tema. Se precisar de qualquer coisa estou à sua disposição. 
Obrigado a você, doutora, pelos esclarecimentos aos meus leitores.
Rodrigo Constantino

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