terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

IMB-O cinema no Brasil e a mentalidade anticapitalista

A intervenção do governo brasileiro nos mais distintos aspectos da vida cotidiana está em níveis tão acentuados, que até atividades triviais do cidadão comum são afetadas.  O simples ato de ir ao cinema é uma delas.  Em especial, ir ao cinema para assistir aos filmes que justamente têm grande apelo de público: os tais megalançamentos do cinema de Hollywood.
Se você gosta de assistir a filmes como Guerra nas EstrelasParque dos DinossaurosVingadores,Homem-AranhaBatmanSenhor dos Anéis, entre outros, é bom que saiba que a intervenção do governo brasileiro está afetando, e afetará mais ainda, a sua vida até nesse particular e quase supérfluo hábito.
cota de tela
O governo brasileiro recentemente publicou o Decreto nº 8.386, de 30 de dezembro de 2014, que basicamente regula duas intervenções no mercado de distribuição e divulgação de filmes no Brasil, em especial nos cinemas.
A primeira delas é a cota de tela.  Essa cota determina a quantidade de filmes brasileiros que deve ser exposta nos complexos de cinema de todo o país.  Essa medida não é nova e será motivo de uma análise mais detalhada ao longo do presente artigo.
A segunda medida é bem atual.  Trata-se da imposição de um limite máximo de salas em que o mesmo filme (um título) poderá ser exibido.  O limite máximo de título por sala varia em cada caso, mas, a rigor, complexos com seis ou mais salas de cinema poderão colocar no máximo algo em torno de 30% a 35% de suas salas com o mesmo filme.
Como colocado anteriormente, a criação de uma cota para filmes brasileiros exibidos no cinema não é algo propriamente novo.  E, para ser justo, nem algo exclusivo do Brasil. México, Argentina, Coreia do Sul, Colômbia, Espanha, União Europeia — todos eles a utilizam.  Com o objetivo oficial de incentivar e proteger a cultura nacional, a cota de tela no Brasil estipula um número mínimo de dias, de quantidade e de títulos nacionais que devem ser exibidos nos complexos cinematográficos.
A intervenção governamental no mercado — no caso, o mercado de produção audiovisual — com o intuito de instituir uma cota para privilegiados é das mais antigas e mais historicamente desastradas medidas estatais, vide a Lei da Informática da década de 1980 .  
Nesse sentido, para analisar os efeitos dessa interferência, vamos à abordagem de Mises, que resume a problemática da intervenção governamental da forma bastante clara:
"Em contraposição a todo esse formalismo e dogmatismo legal, é necessário enfatizar novamente que... [e]stamos diante de uma questão exclusivamente praxeológica e econômica.  Nem a filosofia do direito, nem a ciência política têm qualquer contribuição a dar para esclarecê-la.
O problema que temos de examinar ao analisar o intervencionismo não consiste em procurar definir quais seriam as tarefas 'naturais', 'justas' e 'adequadas' do governo. A questão a examinar é a seguinte: como funciona um sistema intervencionista? Poderá esse sistema alcançar aqueles objetivos que o governo, ao adotá-lo, pretende atingir?"Mises, Ação Humana, págs. 821 e 822.
Resta-nos então a tarefa de analisar economicamente se esse mecanismo de intervenção é uma forma de incentivar a cultura nacional ou, mais especificamente, o cinema nacional.  
E, nesse caso, iniciamos por constatar o elemento mais básico e óbvio: o fato de que é um equívoco pensar em termos de "cinema nacional".  Um filme, tal como uma obra artística, é uma manifestação da ação de um conjunto de indivíduos — que podem ter inúmeras nacionalidades, por sinal.  No caso do cinema, deve-se ressaltar em especial a participação do(s) produtor(es) do filme, do(s) diretor(es), atores e atrizes.  Logo, não há por que classificar um filme apenas de acordo com sua "nacionalidade".
Mas a questão é que a medida trata os filmes produzidos por empresas brasileiras de forma distinta dos filmes produzidos por empresas estrangeiras; e, por isso, tem-se que estudar a medida a partir deste fato.
Assim, seguindo a análise, o efeito concreto da medida é privilegiar empresas de produção que são brasileiras em detrimento de empresas de produção que não são brasileiras.  Ao fazer isso, a medida diminui o acesso dos produtores, diretores e atores não-nacionais ao público do Brasil.  E o sentido contrário também é verdadeiro: o acesso do público brasileiro a artistas estrangeiros é reduzido.
O efeito prático é a restrição a vários filmes estrangeiros que poderiam ser mais bem difundidos caso não existisse a cota nacional, já que se trata de uma restrição baseada apenas no critério da nacionalidade da produção das obras — logo, sem qualquer justificativa artística.
Se a medida tem o intuito de privilegiar a cultura nacional, a consequência indesejada — porém efetiva — é adiscriminação da manifestação artística de estrangeiros.  A medida é preconceituosa em relação à cultura não-nacional, por assim dizer.  Em um mundo que busca integração, globalização e comércio entre os povos, uma ação que não apenas hostiliza uma cultura estrangeira, mas que tem o intuito supremo de isolar a população nacional pode ser considerada um crime.  Certamente é xenofobia.  E um atraso.
Seria difícil dizer quais filmes poderiam ser mais difundidos no Brasil caso a cota de tela não existisse.  O público brasileiro teria acesso a mais filmes oriundos do estrangeiro, mas como saber quais filmes "importados" são bons e quais são ruins?  É nesse ponto que entra o segundo efeito maléfico da cota de tela.
Se há algo que sabemos em Economia, é que valor é algo subjetivo.  Valorar uma obra de arte é algo completamente abstrato.  Algumas pessoas assistem a um filme e o consideram bom, bonito, genial, engraçado etc.  Já outros o consideram feio, chato, de mau gosto, ruim, não artístico, medíocre etc.  Ao instituir a cota de tela, o regulador passa a decidir pelo público qual filme é bom, bonito, artístico, genial etc.
Como diria Mises, a soberania do público foi seriamente prejudicada.  E quer os membros da indústria cinematográfica (produtores, cineastas, atores, críticos de cinema) queiram ou não, o real valor artístico de um filme está nos olhos de quem o vê.
Esse fato é plenamente compreendido pelos donos dos cinemas, ao ponto de o Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado do Rio Grande do Sul entrar com uma ação no STF contra essas cotas.  Um dos proprietários de cinemas resume a questão da seguinte maneira: "É importante entender que não somos contra a exibição de filmes nacionais.  Mas somos contra as cotas.  Quando a safra brasileira não é boa, os exibidores são penalizados porque os filmes não vão atrair público".
O dono do cinema acerta com precisão.  Com a exibição garantida, os cineastas ficam protegidos das consequências negativas de apresentarem uma obra de baixo valor artístico aos olhos do público.  Esse ônus recai para os donos das redes de cinemas e para público em si.  
Com os cineastas nacionais protegidos dos efeitos do sistema de lucros e prejuízos, e usufruindo o privilégio de ter a exibição garantida e parcialmente protegida da concorrência de filmes estrangeiros, o terceiro e final efeito da imposição da cota de tela não pode ser outro se não o efeito decorrente de toda instituição de reserva de mercado: a apresentação de produtos e serviços que satisfazem menos os consumidores.  No caso em questão, filmes que divertem menos o público; filmes com menor valor artístico aos olhos justamente daqueles que são as pessoas que deveriam valorar tais títulos.
Não à toa, Paulo de Almeida, do portal Filme B, afirma: "Hoje, a cota de tela não é responsável por levar um único espectador para o filme brasileiro; serve mais como um instrumento simbólico. E às vezes acaba ajudando mais o filme ruim do que o filme bom". E prossegue: "É humilhante para o diretor brasileiro ter o filme exibido apenas por causa da cota de tela".
Assim, analisando sob o aspecto praxeológico, constata-se que a cota gera efeitos contrários aos quais ela se pretende.  Em vez de incentivar a cultura, deprecia-a, incentivando filmes de menor valor para o público.
O limite de quantidade máxima de salas por título
Ao passo que a cota de tela tem um mecanismo discriminatório embutido — porém não totalmente explícito — contra os filmes norte-americanos, o limite de salas por títulos é abertamente contra os filmes de Hollywood, em especial contra os filmes estilo blockbuster.  É justamente por essa razão que, como mencionado no início, o hábito de assistir a uma superprodução de Hollywood será afetado.
O filme blockbuster, normalmente, é aquela produção extremamente cara — e, por essa razão, é a típica produção que gasta enorme quantidade de recursos com distribuição e divulgação.  Normalmente é uma superprodução, com sofisticados efeitos especiais, inovações tecnológicas, grandes astros, belas atrizes etc.  É muito comum referenciar o primeiro filme blockbuster como sendo Tubarão, do aclamado diretor Steven Spielberg, lançado em 1975. Provavelmente o segundo filme nesse mercado foi o Episódio IV de Guerra nas Estrelas, lançado em 1977.
Depois destes filmes, os produtores de Hollywood descobriram o que Mises disse sobre o capitalismo moderno, que "consiste essencialmente na produção em massa para atender às necessidades das massas".
Justamente por gastar enorme quantidade de recursos em distribuição e divulgação, os lançamentos destes filmes costumam ocupar uma grande quantidade de salas de cinema no Brasil e no mundo.  Contudo, aparentemente esse fato incomoda as autoridades brasileiras e, obviamente, outros concorrentes nesse setor.  Para o presidente da Ancine, Manoel Rangel, o "alerta" foi dado no lançamento do filme "Jogos Vorazes: A Esperança".
Segundo ele, como o título esteve em mais da metade das salas do país, tratou-se de uma ocupação "predatória". Ainda de acordo com Rangel, o objetivo (da intervenção regulatória) seria "garantir uma pluralidade de filmes".
Ocorre que o efeito dessa medida é muito semelhante ao da criação a cota de tela.  Nesse caso, a quantidade de telas que excederiam o limite estipulado pela Ancine não poderia expor os filmes tipo blockbuster, sendo forçadas a exibir algum título diferenciado, não importando qual a origem.  Porém, o problema de exibir filmes de menor valor artístico ou de entretenimento para o público continua a ocorrer.
Esse efeito é maléfico para o público e, de certa forma, ruim também para toda a cadeia produtiva setor.  Com filmes de menor valor de entretenimento sendo veiculados, a atratividade dos cinemas diminui de forma geral.  Consequentemente, há uma queda na demanda.  Com a redução da demanda, a lucratividade e a rentabilidade caem.
Decorrente disso, investir em salas de cinema torna-se menos atrativo, e manter as salas atuais torna-se mais custoso.  A tendência é a redução de número de salas e, consequentemente, a redução do número de filmes divulgados como um todo.  Com menos filmes em cartaz, há menos variedade, e o efeito de buscar pluralidade transforma-se no exato oposto.
Ao punir os títulos "carro-chefe" de vendas nas salas de cinema, o regulador acaba penalizando todos os outros filmes como consequência.
Outra justificativa a favor da medida decorre do seguinte argumento: "filmes blockbuster são medíocres; e o medíocre não ofende, não desafia.  E vende melhor por isso. Nem toda superprodução seria medíocre, mas, por natureza, a superprodução tende muito mais à pasteurização do que projetos menores e mais arriscados".
Obviamente, o erro deste argumento está em ignorar o valor subjetivo da obra artística, valor que, no fim das contas, deve ser julgado aos olhos do público. Mais ainda, se projetos artísticos devem ter como proposta "arriscar", "desafiar" e "ofender" o público, então nada mais justo do que o risco caia sobre o artista, não sobre o público.  Se um artista pretende "ousar" em sua obra, então ele deve arriscar-se financeiramente também com isso.  Não é ousadia fazer uma obra cuja exposição está previamente garantida, bem como o financiamento.
Além da justificativa anterior, outro argumento pró-intervenção seria o de que a média de público por sala aumentaria.  Esse seria um efeito colateral do excesso de espectadores: ser empurrado para outras salas e outros filmes.  O problema é que esse argumento ignora também o fato da valoração subjetiva.  Ignora também o fato de que muitos espectadores, ao irem ao cinema e se depararem com as salas do blockbuster lotadas, não desejam ver um filme substituto, justamente pelo fato de que foram ao cinema para assistir especificamente aoblockbuster.
Em muitos casos, exatamente por se tratar de obras de arte, o efeito bem substituto de um filme por outro é muito pequeno.  Pode até ser que alguns espectadores irão a filmes substitutos; porém, é mais provável que a maioria não proceda assim. A média de público por salas poderia até ficar mais bem distribuída, mas a média geral tenderá a cair.
Enfim, a medida tem potencial de causar muito mais danos do que benefícios.  Sob o ponto de vista estritamente praxeológico, ela deveria ser rejeitada.
Cabe ainda acrescentar alguns comentários suplementares sobre essas duas medidas regulatórias.  O primeiro, acerca do limite máximo do número de tela.  Aparentemente, a medida foi tomada seguindo curiosos "critérios técnicos".  Segundo Manoel Rengel: "a Ancine entende que os grandes lançamentos são bem-vindos, assim como a câmara técnica. O que não é bem-vindo é o megalançamento, aquele que não otimiza o setor."
Aparentemente então, segundo esse regulador, ele "conhece" o tamanho ótimo dos lançamentos para "otimizar" o setor.  A Ancine passa a arrogar para si própria qual é o ponto de equilíbrio entre oferta e demanda no setor cinematográfico brasileiro.
Por último, a decisão da intervenção foi tomada a partir de discussões realizadas em uma "câmara técnica" criada pela Ancine com profissionais da indústria cinematográfica.  E, ao que se sabe, um termo de compromisso já foi assinado por 23 empresas exibidoras e seis distribuidoras brasileiras.
Mas observe o quadro geral: o órgão regulador estabelece uma nova política de conduta comercial e estabelece um acordo para "equilibrar" esse mercado.  Quando concorrentes em um determinado mercado aceitam participar de um acordo que equaliza suas respectivas condutas comerciais em termos de quantidade ou de preço, tal ação beira a caracterização da formação de um cartel.  E, nesse caso, sendo difundido e estabilizado pelo órgão regulador.

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