quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Portal Libertarianismo- O Mito da Doença Mental

Na essência de praticamente todas as teorias e práticas psiquiátricas contemporâneas repousa o conceito de doença mental. Um exame crítico desse conceito é, consequentemente, indispensável para compreender as ideias, instituições e procedimentos dos psiquiatras.
Meu objetivo nesse ensaio é questionar se existe o que se chama de doença mental e defender a ideia de que não existe. Sem dúvida, doença mental não é uma coisa ou objeto físico; portanto, só pode existir da mesma maneira que os outros conceitos teóricos. No entanto, as teorias conhecidas tendem a aparecer, mais cedo ou mais tarde, para aqueles que nelas acreditam, como “verdades objetivas” ou “fatos”. Em certos períodos históricos, conceitos explicativos tais como divindades, feiticeiras e instintos apareceram, não somente como teorias, mas como causas evidentes por si de um vasto número de eventos. Hoje em dia a doença mental é vista, largamente, de um modo semelhante, ou seja, como a causa de inúmeros acontecimentos diferentes.
Como antídoto ao uso complacente da noção de doença mental – como um fenômeno, teoria ou causa é evidente por si – perguntemos: o que se quer dizer quando se afirma que alguém é doente mental? Nesse ensaio descreverei os principais usos do conceito de doença mental, e demonstrarei que essa noção tem sobrevivido a despeito da utilidade que possa ter tido para o conhecimento, e que agora funciona como um mito.
II
A noção de doença mental é apoiada principalmente por fenômenos tais como a sífilis cerebral[i] ou os estados de delírio – intoxicações, por exemplo – nos quais as pessoas podem manifestar certas desordens do pensamento e comportamento. Com precisão, contudo, essas são doenças do cérebro, não da mente. De acordo com certa escola de pensamento, toda assim chamada doença mental é desse tipo. A suposição é de que algum defeito neurológico, talvez muito tênue, será por fim encontrado parar explicar todas as desordens de pensamento e comportamento. Muitos médicos, psiquiatras e outros cientistas contemporâneos mantiveram esse ponto de vista, o qual implica a inferência de que os problemas das pessoas não podem ser causados por necessidades pessoais conflitivas, opiniões, aspirações sociais, valores e assim por diante. Essas dificuldades – as quais, penso, possam ser chamadas simplesmente de problemas existenciais – são desse modo atribuídas a processos psicoquímicos que, em tempo devido, serão descobertos (e sem dúvida corrigidos) pela pesquisa médica.
As doenças mentais são, assim, consideradas como basicamente similares às outras doenças. A única diferença, nessa perspectiva, entre doença mental e corporal é que a primeira, afetando o cérebro, manifesta-se por meio de sintomas mentais; enquanto que a ultima, afetando outros sistemas do organismo – por exemplo, a pele, o fígado e assim por diante – manifesta-se por sintomas referentes àquelas partes do corpo.
Em minha opinião, essa perspectiva é baseada em dois erros fundamentais: em primeiro lugar, uma doença do cérebro, análoga a uma doença da pele ou dos ossos, é um defeito neurológico, não um problema existencial. Por exemplo, um defeito no sistema visual de uma pessoa pode ser explicado, correlacionando-o a certas lesões no sistema nervoso. Por outro lado, a crença de uma pessoa – seja no cristianismo, no comunismo, ou na ideia de que seus órgãos internos estão apodrecendo e seu corpo já está morto – não pode ser explicada por um defeito ou doença no sistema nervoso. A explicação desta sorte de fenômeno – supondo-se que o pesquisador se interesse pela crença em si e não a considere simplesmente como um sintoma ou expressão de algo mais significativo – deverá ser procurada em várias fontes.
O segundo erro é epistemológico. Consiste em interpretar comunicações entre nós e o mundo ao nosso redor como sintomas de funcionamento neurológico. Esse é um erro não de observação e raciocínio, mas de organização e expressão do conhecimento. Nesse caso, o erro está em estabelecer um dualismo entre sintomas mentais e físicos, um dualismo que é um hábito de linguagem e não o resultado de observações conhecidas. Vejamos se não é assim.
Na prática médica, quando falamos de distúrbios físicos, pensamos ou em sinais (por exemplo, a febre) ou sintomas (por exemplo, a dor). Falamos de sintomas mentais, por outro lado, quando nos referimos às comunicações do paciente consigo próprio, com os outros, com o mundo que o rodeia. O paciente pode afirmar que é Napoleão, ou que está sendo perseguido pelos comunistas; estes seriam considerados sintomas mentais somente se o observador não acreditar que o paciente seja Napoleão, ou que esteja sendo perseguido pelos comunistas. Isso torna evidente que a afirmação de que “X é um sintoma mental” implica fazer um julgamento que traz a comparação oculta entre as ideias conceitos ou crenças do paciente e as do observador e da sociedade em que vivem. A noção de sintoma mental está, desse modo, intrincadamente ligada ao contexto social e particularmente ético no qual é elaborada, assim como a noção de sintoma físico está ligada a um contexto anatômico e genético.[ii]
Concluindo: para quem considera os sintomas mentais como sinais de doença cerebral, o conceito de doença mental é desnecessário e enganador. Se querem dizer que as pessoas assim rotuladas sofrem de doenças cerebrais, parece melhor, para fins de clareza, dizer somente doenças cerebrais e nada mais.

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