sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

As origens urbanas da liberdade

O ar da cidade confere liberdade
Em “O Caminho da Servidão”, F. A. Hayek descreve que os governos e os intelectuais tragicamente abandonaram o caminho para a liberdade pela busca por utopias coletivistas no século XX. O caminho se originava de tempos tão remotos como a polis democrática da Grécia antiga, mas ela nem sempre era reto ou sem rupturas. Já aconteceu da liberdade estar totalmente perdida, para ser redescoberta apenas séculos mais tarde.
A ideia de liberdade emergiu da luta entre as forças do coletivismo e do individualismo. Ela é a ideia de que cada um de nós possui uma esfera de direitos e autonomia na qual podemos estar livres de agressão. Na política, isso se manifesta na ideia de democracia liberal; na economia, com a competição de mercado; e numa esfera social ainda maior, com avanços científicos, expressão artística e tolerância religiosa.
Em sua concisa obra prima, Medieval Cities: Their Origins and the Revival of Trade, o historiador belga Henri Pirenne explica como, após a queda do império romano ocidental, a ideia de liberdade gradualmente reemergiu e como isso está diretamente ligado ao nascimento da cidade moderna.
O Declínio das Cidades e a Civilização
Entre 400 d. C. e 900 d. C., as cidades praticamente desapareceram da Europa. Mesmo em Roma, que chegou a ter 1 milhão de habitantes em seu auge, a população caiu para alguns milhares – muitos dos quais eram do clero ou quem os servia. Bispos e clérigos dominavam a vida urbana, enquanto príncipes, que tinham poucos motivos para perderem tempo nas sombrias cidades medievais, focavam sua atenção na proteção de suas propriedades feudais, recolhendo tributos de seus vassalos e explorando o trabalho de seus servos.
Tanto então como agora, os nobres seguiam a riqueza e na Idade Média, assim que o comércio definhava entre as cidades, a base para a riqueza foi do dinheiro para a terra. Moeda, líquida e essencial para o comércio, tornou-se supérflua, enquanto o controle e a aquisição de terras se tornaram preeminentes. Essa economia baseada na terra não só prendeu os servos aos serviços para os seus senhores via contratos antigos, como também comprometeu os senhores e os servos à hierarquia estática do sistema feudal, geração após geração. Enquanto isso, aqueles que habitavam as imutáveis cidades eram prisioneiros virtuais das mesmas.
A Ascensão da Classe Média e a Cidade Moderna
Então, com o ressurgimento do comércio entre os séculos X e XI – primeiramente nas cidades Hanseáticas [1], em feiras regionais e eventualmente o comércio de longa distância – a Europa começou uma pequena transição da economia baseada na terra para uma economia monetária. Os servos poderiam pagar a renda em moeda, liberando-os dos serviços diretos para os seus senhores. As pequenas cidades passaram a oferecer oportunidades comuns para o comércio lucrativo e um estilo de vida urbano que estava ausente há séculos pode ressurgir. A estrutura social urbana teve que acolher algo que tinha sido perdido desde os tempos de Roma: uma classe média e mercante – não entre a elite nos centros das cidades, mas nos subúrbios, “abaixo da cidade”. Não é de surpreender que príncipes e bispos começassem a prestar mais atenção nas novas cidades dirigidas pelo mercado, criadoras de riquezas.
Assim que o comércio proveu uma grande partilha de necessidades vitais, o senhorio feudal declinou em importância social, econômica e política. E, assim, a classe média dos burgueses e comerciantes foi incorporada abaixo da primeira classe da nobreza e da segunda classe da Igreja: “embora a terceira em dignidade, a primeira em importância”. As cidades se tornaram novamente civilizadas e na forma que podemos reconhecer hoje em dia.
Mais que isso, entretanto, assim que os contratos de negócios se estenderam para distâncias ainda maiores e por períodos de tempo mais longos, foi crítico aos mercadores e aos seus filhos serem capazes de ler e escrever, e em língua vernácula, ao contrário do latim. A demanda por livros e material impresso criou um mercado para as impressoras de Gutenberg. Além disso, assim que o comércio começou a florescer, registros de negócios e a matemática se tornaram habilidades essenciais assim como, em alguns casos, as artes mecânicas. As formas tradicionais de educação e os currículos não eram mais adequados. Novas escolas locais surgiram e no século XIII, as grandes universidades foram fundadas em Bolonha, Paris, Cambridge e Oxford, fertilizando o terreno para novas ideias que desafiaram a ordem estabelecida.
A crescente alfabetização e domínio da matemática entre os burgueses que enriqueciam a ênfase humanista na educação e na religião e a possibilidade em publicar em uma escala até então desconhecida, plantaram o estágio para a revolução na Igreja com Lutero, na ciência com Bacon e Newton e nas artes, onde a própria ideia de artista nasceu sendo venerado por seus poderes criativos. E todas essas mudanças radicais surgiram ou foram concebidas no fermento da cidade moderna.
Mudança Social Radical e a Ideia de Liberdade
Moeda, alfabetização, artes, ciência, matemática e as radicais críticas e tolerância das diferenças eram irrelevantes na sociedade rural e feudal da Idade Média. Mesmo os conceitos de direitos de propriedade, em toda a sua complexidade e contingências que associamos hoje em dia, estavam enraizados nos assentamentos densamente povoados onde o conflito pode ter acontecido com ocorrência diária. O camponês, é claro, se beneficiou dessas ideias e dos avanços na tecnologia que surgiram delas – na verdade, eles foram libertados por essas inovações.
Embora Pirenne argumente que a classe média buscou reclamar o monopólio sobre o que viam como seus privilégios únicos, “no entanto, para aquela classe média estava reservada a missão de difundir a ideia de liberdade o mais longe possível e se tornar, mesmo que sem ter o desejo consciente disso, o meio do gradual ganho de direitos das classes rurais”.
Assim, com o renascimento da cidade veio a redescoberta da liberdade.
Sob o controle do senhor feudal ou sob a cidade clerical, a liberdade do homem comum não tinha lugar. Somente na sociedade comercial das cidades, que então atraíram os ambiciosos, os talentosos, os desajustados, a liberdade teve um sentido e uma substância reais. Apenas se você puder votar com os próprios pés, puder deixar o feudo ou a vila e ir atrás de seus sonhos, ou simplesmente viajar (e ter uma razão para viajar) de um lugar para outro, você é realmente livre. Isso é o que a cidade fundamentalmente representa. Como diz o velho ditado:
Stadtluft macht Frei! – O ar da cidade confere liberdade!
Porém, o “ar da cidade” não nos tornou simplesmente livres, ele nos deu a chance de poder pensar em liberdade, assim como os meios de articular a sua filosofia e, na densa rede social de cidades, difundir a sua ideia.
Traduzido por Pedro Valadares. Revisado por Russ da Silva. | Artigo original.

Sobre o autor

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Sandy Ikeda é Professor de Economia na Purchase College da Universidade Estadual de Nova York, local em que recebeu o seu Ph.D. em economia e onde estudou com Israel Kirzner, Mario Rizzo, Fritz Machlup e Ludwig Lachmann. Autor de "The Dynamics of the Mixed Economy: Toward a Theory of Interventionism (1997).", é um Associado do Institute for Humane Studies (IHS).

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