quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Anarco-capitalismo vs República by andreafaggion

O anarco-capitalismo, ou regime de governos privados competindo entre si em um mesmo território, depende de uma série de pressupostos. Eu já disse neste blog que seus pressupostos são mais facilmente admissíveis para um liberal em sentido clássico ou ortodoxo. Há um pressuposto, porém, que, talvez, mesmo os liberais não aceitariam, ou, ao menos, não unanimemente. Trata-se da tese segundo a qual não há tal coisa como uma coisa pública. Isso mesmo. O anarco-capitalismo pressupõe que a república simplesmente não existe. Ele nasce de uma atitude cética que está para a filosofia política como o ateísmo está para a teologia.
A negação da república nos dias de hoje equivale à negação do direito divino séculos atrás: uma heresia. Note que os "filósofos" ocidentais do nosso tempo, no mais das vezes, em suas intervenções sobre questões políticas atuais, já assumem a república democrática como um valor absoluto, inquestionável. O que pode ou não ser admitido na vida em sociedade, no seu discurso, é simplesmente o que pode ou não ser admitido por uma república democrática. Mas por que tanta certeza de que a existência de uma coisa pública estaria garantida, podendo ser simplesmente pressuposta?
Para o anarco-capitalista, é impossível que uma instituição represente a todos, a menos que todos, sem exceção, tenham conferido uma procuração para essa instituição. Não há representação política. Cada um fala por si mesmo, a menos que seja o portador de uma procuração empírica concedida por outro. Por que seria diferente? Por que republicanos acreditam que seja tão natural a ideia de que um ser humano possa representar um outro? No mínimo, deveriam ter mais cautela ao agirem sobre esse pressuposto.
Mas, claro, também existem os republicanos que defendem a democracia participativa, no lugar da representativa, exatamente porque se dão conta dos problemas da representatividade política, problemas cuja superfície, por sinal, nem sequer arranho neste post.
Aqui, temos o princípio da maioria. Por mais que se fale em deliberações racionais, debate na esfera pública e tudo mais, a república, mais cedo ou mais tarde, precisa decidir. Dificilmente, uma decisão de Estado poderá esperar indefinidamente até que se chegue a um consenso unanime. Como resolver então? Vota-se! Mas por que a maioria teria direito sobre a minoria?
Se um outro indivíduo não tem direito de tomar determinadas decisões sobre a sua vida, por que a reunião de muitos indivíduos, todos igualmente desprovidos desse direito, criaria um novo direito para o grupo sobre você? O fato deles permitirem o seu voto muda alguma coisa? Você pode ser forçado a aceitar o princípio da maioria, desde que seu voto seja incluído no computo geral?
Suponha que seus vizinhos se reúnam e decidam por uma maioria de votos que você deve pintar sua casa de roxo com bolinhas amarelas. Se eles permitirem que você vote nessa assembleia, você fica obrigado a acatar a decisão deles e pintar sua casa de roxo com bolinhas amarelas? Nenhum dos seus vizinhos, tomado individualmente, tinha o direito de exigir que você pintasse sua casa de roxo com bolinhas amarelas. A reunião deles confere ao grupo esse direito?
E se a decisão do grupo for, supostamente, para o seu bem? Isso muda o cenário e legitima que o grupo tenha direitos sobre você? Suponha que seus vizinhos decidam que, toda vez que um morador da sua rua ficar doente, todos os demais se reunirão para pagar o seu tratamento. Isso vale para você também. Já que eles vão pagar seu tratamento se você ficar doente, eles têm o direito de exigir que você ajude a pagar pelo tratamento de qualquer um deles? E se você disser que prefere correr o risco de ficar doente sem tratamento, gastando todo seu dinheiro em bares e restaurantes? Eles têm o direito de lhe obrigar a ser mais "prudente"? Por quê? Porque eles são maioria?
E se você cair doente e eles lhe tratarem? Eles passam a ter o direito de exigir que você faça o mesmo pelos demais, sem que você tenha assinado um contrato se comprometendo a tanto como condição para receber o tratamento? Você pode beneficiar alguém voluntariamente e então simplesmente ir adiante e cobrar pelo benefício?
Enfim, são apenas algumas questões cujas respostas não me parecem tão auto-evidentes quanto parecem para meus colegas republicanos. Talvez, eles devessem se preocupar mais com essas respostas, e menos com a defesa dos sagrados valores republicanos, que sufoca as próprias perguntas, como se as respostas para elas fossem tão triviais, trivial como já foi o direito divino de um monarca para um medieval.
Mas e se não houver boas respostas para tantas perguntas? Aí não há coisa pública. Cada agente representará apenas a si mesmo e àqueles de quem tem procuração. Todo agente é privado. É nisso que insiste o anarco-capitalista.
Ora, agentes privados não têm o direito de monopolizar nada. Por isso, o anarco-capitalista pode acreditar em governos, mas nunca em Estado: o governo que detém exclusividade por direito em um dado território.
Assim, para o anarco-capitalista, em suma, a república não existe. O que existe é um grupo privado (maioria ou não) que impede violentamente que outros grupos privados vendam os mesmos serviços no mesmo território. Um grupo privado que nos obriga a todos a sermos seus clientes, desconsiderando nossa satisfação com seus serviços. Um grupo privado que eleva seus preços como bem entender, e nos obriga a pagar por eles. Um grupo privado, enfim, que se vê no direito de fazer o que bem entender de nós, só porque dá direito a um voto para cada um.

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