domingo, 7 de setembro de 2014

Caio Blinder- A corda de Putin (II)

Durante anos, uma pergunta frequente era: qual é a utilidade da Otan? A Guerra Fria acabara e uma aliança militar de nome anacrônico, Organização do Tratado do Atlântico Norte, encontrou missões em terras distantes como o Afeganistão. A Otan inchou com o fim da Guerra Fria (hoje são 28 países-membros) e nunca deixou de gerar chiliques em Moscou. Afinal, o império soviético fora desmontado, mas ex-integrantes da órbita comunista passaram a integrar a Otan (como Polônia e os países bálticos).
Para a sexagenária Otan, o maior adversário passou a ser interno, sua própria crise de identidade. Vladimir Putin resolveu este problema. Sua corda para enforcar as ambições de soberania da Ucrânia serviu também para resgatar a Otan, ou seja, conferir um renovado senso de missão para a organização. A reunião em curso no País de Gales é a mais importante da mais poderosa aliança militar do mundo desde a falência da URSS há pouco mais de duas décadas.
A corda de Putin é longa e ele a utiliza para tirar proveito de qualquer fraqueza na Europa para impedir a consolidação da Otan nestes novos tempos, como alerta Robin Niblett, diretor da Chatham House, um influente think-tank em Londres. Putin mantém a iniciativa política, acusando sem cessar a Otan de beligerância, embora ele tenha acabado o debate sobre o propósito da aliança com a anexação russa da Crimeia, parte da Ucrânia, em março, a primeira vez que isto aconteceu na Europa desde 1945 com o uso de força.
E as fraquezas na Europa estão escancaradas. Antes de tudo, em meio à saraivada de alertas de que os russos no pasarán, existe o bombardeio de ressalvas de que todos os meios valem para conter a agressão russa na Ucrânia, exceto o militar. Há o reposicionamento da Otan, criando uma força de reação rápida e reforço das garantias de segurança para seus inquietos integrantes na fronteira com a Rússia. No entanto, isto não serve de consolo para a acossada Ucrânia, que jamais será páreo militar para a Rússia.
O conflito na Ucrânia explodiu em meio à progressiva desmilitarização na Europa (guerra ali não faz sentido no século 21), com o enxugamento de orçamentos miltares e percepções variadas sobre a ameaça russa. Estes planos de contingentes móveis são limitados e escondem a aversão por medidas mais dissuasivas. No final das contas, a ala nova da Otan na Europa Oriental depende para valer do poder de fogo dos EUA e tacitamente do seu arsenal nuclear contra qualquer ameaça existencial russa (e jamais podemos esquecer o arsenal nuclear herdado do império soviético).
A diretriz para os 28 países-membros da Otan investirem pelo menos 2% do orçamento com gastos militares é seguida por apenas quatro: EUA (4.4% do PIB), Grã-Bretanha (2.4%), a quebrada Grécia (2.3%) e a anã Estônia (2%). Com seu peso econômico e político, a Alemanha investe apena 1.3% em gastos militares e não se anima com a ideia de incrementá-los. Já a Rússia tem incrementado as suas despesas no setor e no ano passado proporcionalmente superou os EUA pela primeira vez em 10 anos (4.8% do PIB). Claro que em termos absolutos nem dá para comparar, com os americanos gastando sete vezes mais do que os russos.
A crise de identidade da Otan acabou. Agora é teste da força de vontade na crise com a Rússia, herdeira do adversário original da aliança ocidental. Francis Fukuyama, o grande sacador, figura frequente nesta coluna, deu uma entrevista esta semana, dizendo que a Otan precisa voltar a ser uma “real aliança militar”, na medida em que desde o fim da Guerra Fria ela se tornou mais um “clube da democracia, de promoção da democracia”. Para Fukuyama , é hora de “pensar seriamente sobre como defender países contra agressão externa”.
Na sua fundação, em 1949, depois da derrota dos nazistas e do início do confronto com os comunistas, o primeiro secretário-geral da Otan, o britânico Hastings Ismay, disse que o objetivo da organizaç ão era manter os “russos fora, os americanos dentro e os alemães por baixo”. O ideal com o fim da Guerra Fria era trazer os russos para dentro e colocar os europeus por cima. Por um pouco de sofreguidão dos vitoriosos e, muito mais importante, pelo espírito revanchista e nostálgico de Putin não deu para se compor com os russos.
Quem sabe um dia o bom senso tome Moscou de assalto e ela deixe de assaltar países vizinhos. No entanto, a curto prazo, que pelo menos a segunda parte do ideal seja consolidada, com os europeus mais conscientes do que está em jogo, pois Vladimir Putin está aí para um um longo conflito, estimando que tem corda para isso.
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