SEGUNDA CARTA
de Amabed a Xastasid
Pai de meus pensamentos, tive tempo de aprender esse jargão da Europa antes que o teu comerciante baniano chegasse às margens do Ganges. O padre Fa Tutto continua a testemunhar-me sincera amizade. Na verdade, começo a crer que ele não se assemelha em nada aos pérfidos cuja maldade temes com tamanha razão. A única coisa que me poderia causar desconfiança é que ele me louva em demasia e não louva suficientemente a Encanto dos Olhos; parece-me, contudo, cheio de virtude e unção. Lemos juntos um livro de seu país, que me pareceu bastante estranho. É uma história universal na qual não se diz uma só palavra sobre o nosso antigo império, nem nada das imensas regiões de além do Ganges, nada da China, nada da vasta Tartária. Evidentemente, os autores, nesta parte da Europa, devem ser muito ignorantes. Comparo-os a aldeões que falam com ênfase das suas choupanas e não sabem onde é a capital; ou antes àqueles que pensam que o mundo termina nos limites de seu horizonte. O que mais me surpreendeu é que eles contam o tempo, desde a criação do seu mundo, de maneira inteiramente diversa da nossa. O meu doutor europeu mostrou-me um de seus almanaques sagrados, pelo qual os seus patrícios estão agora no ano 5.552 da sua criação, ou no ano 6.244, ou então no ano 6.940, à vontade.(4) Essa esquisitice muito me surpreendeu. Perguntei-lhe como podiam ter três épocas diferentes da mesma aventura. "Não podes ter ao mesmo tempo - disse-lhe eu - trinta, quarenta e cinqüenta anos. Como pode o teu mundo ter três datas que se contrariam?" Respondeu-me que essas três datas se encontram no mesmo livro e que, entre eles, se é obrigado a acreditar nas contradições para humilhar a soberbia do espírito. Esse mesmo livro trata de um primeiro homem que se chamava Adão, de um Caim, de um Matusalém, de um Noé que plantou vinhas depois que o oceano submergiu todo o globo; enfim, de uma infinidade de coisas de que nunca ouvi falar e que não li em nenhum dos nossos livros. Isso tudo nos fez rir, à bela Adate e a mim, na ausência do padre Fa Tutto: pois somos muito bem educados e muito
Pai de meus pensamentos, tive tempo de aprender esse jargão da Europa antes que o teu comerciante baniano chegasse às margens do Ganges. O padre Fa Tutto continua a testemunhar-me sincera amizade. Na verdade, começo a crer que ele não se assemelha em nada aos pérfidos cuja maldade temes com tamanha razão. A única coisa que me poderia causar desconfiança é que ele me louva em demasia e não louva suficientemente a Encanto dos Olhos; parece-me, contudo, cheio de virtude e unção. Lemos juntos um livro de seu país, que me pareceu bastante estranho. É uma história universal na qual não se diz uma só palavra sobre o nosso antigo império, nem nada das imensas regiões de além do Ganges, nada da China, nada da vasta Tartária. Evidentemente, os autores, nesta parte da Europa, devem ser muito ignorantes. Comparo-os a aldeões que falam com ênfase das suas choupanas e não sabem onde é a capital; ou antes àqueles que pensam que o mundo termina nos limites de seu horizonte. O que mais me surpreendeu é que eles contam o tempo, desde a criação do seu mundo, de maneira inteiramente diversa da nossa. O meu doutor europeu mostrou-me um de seus almanaques sagrados, pelo qual os seus patrícios estão agora no ano 5.552 da sua criação, ou no ano 6.244, ou então no ano 6.940, à vontade.(4) Essa esquisitice muito me surpreendeu. Perguntei-lhe como podiam ter três épocas diferentes da mesma aventura. "Não podes ter ao mesmo tempo - disse-lhe eu - trinta, quarenta e cinqüenta anos. Como pode o teu mundo ter três datas que se contrariam?" Respondeu-me que essas três datas se encontram no mesmo livro e que, entre eles, se é obrigado a acreditar nas contradições para humilhar a soberbia do espírito. Esse mesmo livro trata de um primeiro homem que se chamava Adão, de um Caim, de um Matusalém, de um Noé que plantou vinhas depois que o oceano submergiu todo o globo; enfim, de uma infinidade de coisas de que nunca ouvi falar e que não li em nenhum dos nossos livros. Isso tudo nos fez rir, à bela Adate e a mim, na ausência do padre Fa Tutto: pois somos muito bem educados e muito
cônscios das tuas máximas para rirmos das pessoas na sua presença. Lamento esses infelizes da Europa que só foram criados há 6940 anos, quando muito; ao passo que a nossa era é de 115.652 anos. Muito mais os lamento por não terem pimenta, canela, cravo, chá, café, algodão, verniz, incenso, arômatas e tudo quanto pode tornar a vida agradável: na verdade a Providência deve tê-los negligenciado por muito tempo. Mas ainda mais os lamento por virem de tão longe, em meio a tantos perigos, arrebatar de arma em punho os nossos gêneros. Dizem que em Calicute, por causa da pimenta, cometeram crueldades espantosas: isso faz fremir a natureza indiana, que é muito diferente da sua, pois os seus peitos e coxas são peludos. Usam longas barbas, e seus estômagos são carnívoros. Embriagam-se com o suco fermentado da vinha, plantada, dizem eles, pelo seu Noé. O próprio padre Fa Tutto, por mais polido que seja, torceu o pescoço a dois franguinhos; mandou-os cozinhar numa caldeira e comeu-os impiedosamente. Esse bárbaro ato atraiu-lhes o ódio de toda a vizinhança, que só com muita dificuldade pudemos apaziguar. Deus me perdoe! Creio que esse estrangeiro seria capaz de comer as nossas vacas sagradas, que nos dão leite, se lho tivessem permitido. Ele prometeu que não mais cometeria assassínio contra os frangos, e que se contentaria com ovos frescos, leite, arroz, os nossos excelentes legumes, pistaches, tâmaras, cocos, doces de amêndoas, biscoitos, ananazes, laranjas e tudo o que produz o nosso clima abençoado pelo Eterno. De alguns dias para cá, parece mais solícito com Encanto dos Olhos. Chegou a fazer para ela dois versos italianos que terminam em o. Agrada-me essa polidez, pois sabes que a minha maior felicidade é que façam justiça à minha querida Adate. Adeus. Coloco-me a teus pés, que sempre te levaram pelo caminho reto, e beijo as tuas mãos, que jamais escreveram senão a verdade.
Tradução Nélson Jahr Garcia
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.