segunda-feira, 13 de agosto de 2018

"NE SUTOR ULTRA CREPIDAM", SRS. MINISTROS. por Proc. de Justiça Marcio Luís Chila Freyesleben. Artigo publicado em 13.08.2018

A Ministra Cármen Lúcia, em entrevista concedida recentemente a um periódico, afirmou ser absolutamente inaceitável o descumprimento de decisão judicial.
         Discordo da Ministra, em boa medida.
         Sou do tempo que ordem judicial deveria ser cumprida e não, discutida. Sou do tempo que decisão judicial era lei. Mas eu também sou do tempo que o juiz julgava a partir da lei. O juiz era o intérprete e o aplicador fiel da lei vigente no país. A justiça e a eqüidade da norma legal eram cuidadosamente sopesadas a partir dos ensinamentos doutrinários. Os princípios hermenêuticos, brilhantemente ensinados em obras de autores como Carlos Maximiliano e Eduardo Espínola, eram verdadeiros mananciais com os quais o juiz, na sua solitária e penosa função de julgar, ia buscar a melhor de todas as justiças; “dar a cada um o que lhe é devido”. O direito era arte do bom e do equitativo.
         Em tempos recentes, no entanto, esse cenário mudou radicalmente. O Judiciário, a partir da Suprema Corte, deitou às ortigas dois mil anos de cultura jurídica para começar a introduzir no universo jurídico pátrio uma compreensão absolutamente inédita. Com base em um pressuposto que deita raízes em Auguste Comte, com elementos da pós-modernidade, em especial o desconstrucionismo de Derrida e o sociologismo de Foucault, o Supremo arvorou-se não apenas em defensor da Constituição, mas também em seu livre intérprete, para impingir a toda a nação que “a Constituição diz o que o Supremo diz que a Constituição diz”.
Na base dessa nova postura está o chamado ativismo, tão em voga no Supremo.
Desgraçadamente, a moda do ativismo judicial gerou uma certa miopia jurídica a partir da qual o ordenamento jurídico perdeu todos os parâmetros legais  até então considerados. As vivandeiras do politicamente corretoassentaram praça nas searas da Justiça brasileira, ensejando o surgimento da mais inquietante geração de juristas ativistas. No entender de nossa Suprema Corte, não há preceito constitucional que não sirva aos propósitos da justiça social; não há dispositivo Constitucional que não tenha nascido pronto e acabado. Todo o ordena¬mento infraconstitucional é apenas de¬talhe menor, o Poder Legislativo é prescindível. A Constituição é a bíblia do ativismo judicial: nela todas as respostas estão dispostas e não há política social que não possa ser concretizada de chofre. A Cons¬tituição é o ma¬nual do politica¬mente correto, do qual são ex-traídos maniqueistamente os mais “panacéticos” preceitos.
É inadmissível, com efeito, pretender que o Judiciário, com base em princípios lacônicos, fluídos e difusos, crie direito subje¬tivo à margem da lei escrita e do direito natural, ao arrepio do bom senso. Não raro, os efeitos de sua decisão ultra¬pas¬sam os limites do caso concreto para repercutir nociva¬mente na economia da sociedade. É decorrido o tempo de o Judiciário atentar para o fato de que, ao se deixar seduzir pelo brilho fácil do ativismo ju¬dicial, a par de politizar o direito, finda por conferir caráter ideológico a suas sentenças. Certos juízes, muitos promotores, tocados pelos ventos da pós-modernidade, encarnam uma versão “bananeira” do Bom Juiz Magnaud (1889-1904), o juiz francês panfletário. O Bom Juiz, ensina Carlos Maximiliano, era imbuído de idéias humanitárias avançadas, redigia sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns. Panfletário, empregava apenas argumentos humanos, sociais. Mostrava-se clemente e atencioso como os fracos e humildes, enérgico e severo com os opulentos. Destacava-se, o Bom Juiz, por exculpar pequenos furtos, amparar mulheres e os menores, profligar erros administrativos, atacar privilégios, proteger o plebeu contra o potentado. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas submetidas à sua jurisdição.
O atual juiz ativista assim como o Bom Juiz Magnaud são representantes de uma mesma justiça panfletária e factóide. O nosso juiz ativista, contudo, tem a vantagem de contar com as franquias geradas por um certo fetiche constitucional que virou moda e que em tudo quer infundir, desbordando de suas naturais dimensões, para tudo constitucionalizar: o direito civil, o direito comercial, o direito do trabalho. Nada escapa ao ferrete do nosso bom juiz pós-modernista, que pisa e macera leis e códigos no almofariz dos direitos fundamentais (uma espécie de santo graal gramsciano), até conformá-los à cartilha do magistrado politicamente correto. Não contente com a nobre função de julgar, ele usurpa a função legislativa para inovar o ordenamento jurídico, criando direitos subjetivos a seu talante. Inebriado com um ilusório senso justiceiro e evocando “princípios” como quem entoa cânticos mântricos de alguma seita cabalística, o juiz ativista sucumbe ao sofisma da cultura protetora do mais fraco.
Sob a pena do juiz ativista, os pobres serão redimidos; os excluídos, reintegrados; os discriminados, reinseridos; os pre¬sidiários, libertados. Os ricos que por ventura lhe caírem sob o guante serão severa e exemplarmente punidos pelo mais mínimo desvio de conduta; seus estabelecimentos comerciais e suas residências serão tomados de assalto em episódios cinematográficos [mire-se o caso Daslu]; suas terras serão arrebatadas pelas mãos sujas e nojentas dos terroristas do MST. Não satisfeito, o juiz ativista irá imiscuir-se na economia interna das empresas privadas para impedi-las de demitir seus empregados (mire-se o caso Embraer). Por derradeiro, impingirá toque de recolher aos filhos de todos os pais e toque de silêncio aos pais de todos os filhos, e a toda gente não restará réstia de liberdade sequer. Sua encarniçada ânsia por justiça social [-ista] é tamanha que, caso não seja sofreado à mão-tenente, levará a Justiça ao descrédito, o erário à bancarrota e a economia à ruína.
Eis, aí, o retrato do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal está legislando: legislando, por vezes, contra a própria Constituição. O Supremo crê ser maior que o legislador constituinte.
Sendo assim, parece-me extremamente natural que, ao desertar de seu posto constitucional originário para invadir o terreno das atribuições dos demais Poderes, o Supremo Tribunal Federal tenha perdido completamente a autoridade de exigir que suas decisões sejam cumpridas e não, discutidas. Ao arvorar-se detentor do poder de ditar normas a seu alvedrio, ao invés de ser o guardião das leis vigentes, o Supremo desnatura-se, indo como o sapateiro que foi além das sandálias.
Ao assim proceder, torna caduco, de inhapa, o velho adágio jurídico e popular de que sentença judicial deve cumprida e não, discutida. Com o desvio de função, vem também o desviou de perspectiva para admitir que as sentenças judiciais, quando imbuídas de nítido caráter político-ideológico, agora também possam ser discutidas. Se o Supremo Tribunal Federal não cumpre a Constituição, porque diabos precisamos cumprir as suas decisões, máxime quando desrespeitam tudo aquilo que constitui a base de nossa estrutura social, em particular a separação dos poderes.
A revolução cultural, no Brasil, encontrou o caminho do Judiciário. Não se trata apenas de uma questão de simples ilegitimidade, o que está em jogo é o próprio Estado de Direito, pois caminhamos para a ditadura do judiciário. Isso é usurpação de poderes constitucionais. É golpe de estado, aos moldes gramsciano.
Já é passada a hora de dizer aos senhores Ministros: "Ne sutor ultra crepidam”.

*Procurador de Justiça MP/MG

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