terça-feira, 30 de maio de 2017

JANER CRISTALDO- O PARAÍSO SEXUAL DEMOCRATA- O PECADO-



Svensson, ao entrar em um supermercado ou lancheria no Brasil, ficará tão excitado quanto o turista tupiniquim visitando uma sex shop na Escandinávia. Não há povos sem tabus. Os suecos, ao eliminarem o do sexo passaram a cultivar o do álcool. Sprit só é vendido no Systembolag, loja de monopólio estatal que permanece aberta das 9 às 18 horas durante a semana, fechando às 13 horas de sábado. Nas tardes de sexta e manhãs de sábado, filas — evento raro nos países nórdicos — de previdentes cidadãos congestionam os systembolag. Nas caixas um aviso previne: esteja pronto para identificar-se. De 10 em 10 minutos um sinal sonoro lembra os funcionários de exigir documento dos clientes atendidos naquele instante. Se o identificado estiver na lista negra dos alcoólatras ou se for menor de 18 anos, não poderá comprar nada. Deverá contentar-se com o insípido melanöl (quase-cerveja, poderíamos traduzir). Este pode ser adquirido nos supermercados, tendo sido sua venda também proibida para menores em junho de 72. A bebida possui no máximo 3% de álcool. A embriaguez dos consumidores é mais psicológica que física.

O consumo atual per capita de sprit pelos suecos é bastante inferior aos índices da Itália, França ou Espanha. No entanto, em Estocolmo se tropeça em mais bêbados do que em qualquer outra capital européia. Os latinos bebem, os suecos se embriagam. Enquanto os meridionais sofrem um processo de mitridização tomando umas que outras ao final de cada jornada, Svensson encharca-se no fim de semana. Não sabe beber. Começa com akvavita, a cachaça nacional, continua com cerveja, acrescenta vinho, prossegue com vodka, finaliza com uísque ou o que houver. Os skal (saúde) se sucedem. A palavra viria de skalle (cérebro), recipiente em que os vikings brindavam a vitória sobre os inimigos, cujos crânios erguiam aos lábios. Muitos intercalam café e licores. Com tal dose, nem uma centopeia mantém-se em pé. Nos fins de semana em Estocolmo, velhos e jovens, homens e mulheres cambaleiam e vomitam pelas ruas e estações de metrô o hálito azedo de muitas misturas.

Em relação ao álcool, impera o mesmo sentimento relativo ao sexo nos países católicos. Uma latina envergonha-se ao comprar anticoncepcionais, Svensson intimida-se ao comprar álcool. As compras feitas no systembolag são postas em um pacote de plástico com a inscrição Hall Sverige Rent, Mantenha a Suécia Limpa. Como a latina sente-se mal carregando pelas ruas um pacote de cintas higiênicas, Svensson vexa-se ao portar bebidas. Quem bebe é bêbado, parece ser o axioma que determina seu comportamento. Não se admite que alguém possa beber, não para cair, mas simplesmente para degustar a. bebida e alegrar-se. Para esconder o plástico revelador, muitos usam uma pasta. E acabam identificando-se de outra forma, como a brasileira que passa a pedir nas farmácias o empacotamento das cintas higiênicas fora da embalagem padrão.

Ao saírem de automóvel para uma festa ou giro noturno, alguém do grupo fica sempre sem tomar um gole. 0,5% de álcool no sangue, constatado pela polícia através do teste do balão, constitui rattfylleri, embriaguez ao volante. Significa prisão e perda da carteira por um ano. Ao transgressor é permitido escolher a época do ano em que deseja cumprir a pena — um ou dois dias de trabalhos forçados. Deve chegar ao local a pé, ou conduzido por outro. A condenação é inapelável e não tem instrução preliminar. Sob o ponto de vista da segurança no trânsito o rigorismo é louvável. Mas não se pode deixar de pensar em fanatismo quando se considera que a ingestão de dois ou três bombons recheados a uísque ou licor podem terminar em cadeia.

O caso de um hoteleiro que precisava passar seu carro de um lado para outro da rua ultrapassa qualquer caricatura que se queira fazer desta obsessão nacional. Como sentia-se embriagado, decidiu empurrá-lo. Surpreendido pela polícia quando “dirigia a pé”, foi condenado por um juiz intransigente.

A nossa filosofia irresponsável do “quanto mais se bebe melhor se dirige” causa horror e incredulidade ao nórdico. Uma sueca quis saber o que acontece no Brasil quando alguém, alcoolizado, é interceptado pela polícia ao dirigir em excesso de velocidade.

Paga-se 20% da multa ao guarda e diz-se boa noite.

Meu Deus, isso é corrupção! — descobriu ela.

Os imigrantes que servem em bares e restaurantes têm a melhor chance de conhecer esta psicologia. Svensson, superdesenvolvido, cosmopolita, superior, pede com segurança, e em tom que exige pressa e solicitude, um cachorro-quente ao servidor eslavo, latino ou árabe. Ao pedir cerveja, pede-a em voz baixa, sua superioridade encolhe, seu cosmopolitismo e desenvolvimento resultam inúteis.

Não faltou quem visse nesta fraqueza de Svensson promessa de grandes lucros e passasse a explorá-la. Agências de viagens organizam atualmente rápidos tours marítimos até as ilhas finlandesas Turku e Abo. Svensson paga 10 a 20 coroas por uma viagem de 12 a 24 horas, ida e volta. No navio, as bebidas são skattefria, livres de impostos. Svensson bebe quanto pode e jamais lhe passará pela cabeça descer em terra durante a rápida — e meramente formal — atracagem do barco. Navegar é preciso, chegar não é preciso.

Embriagar-se é uma das mais antigas e cultivadas tradições do país. Um de seus primeiros soberanos. Fjolner, rei dos Sveas (19), encharcou-se — literalmente — ao morrer afogado numa gamela de hidromel, ou seja, em um barril de chope da época.

Mais recentemente, em 1775, Gustav III instituiu o monopólio do álcool. As vendas beneficiavam a casa real e embriagar-se tornou-se uma questão de patriotismo. Operários recebiam parte do salário em sprit. Em frente às igrejas vendia-se bebida para animar os fiéis. O consumo per capita de álcool puro, consideradas as crianças, atingiu os 40 litros anuais. A cifra atual é de quatro.

Para combater a criminalidade e violência conseqüentes, foram fechados os bares e surgiram dezenas de nykterhetföreningar, ligas de sobriedade. Em meados do século XIX as ligas reuniam 100.000 membros numa população de 3.800.000. Vilhelm Moberg evoca a significação destes movimentos em seu romance Soldat:

“Ele sabia o que tinha de agradecer ao templo. Fora seu segundo lar, e uma escola ao mesmo tempo: os livros que tomara emprestado e lera, como aprendera a expressar-se, a escrever protocolo, liderar uma reunião. Jamais m esqueceria o que o templo significara para ele. Talvez um dia, ao tornar-se velho, escreveria as memórias de sua juventude. Não esqueceria então de falar no que tinha a agradecer ao guia n° 2078 da Ordem do Templo, mostraria ao mundo inteiro sua dívida de gratidão.”

As ligas antialcoólicas adquiriram uma influência tal no país a ponto de organizar em 1909 um plebiscito. Optou-se então por um regime seco, com a proibição total do álcool. Em 1914, Ivan Bratt liberalizou a legislação instituindo o motbok e controle individual. O motbok, abolido em 55, consistia numa ficha de controle individual a ser apresentada pelo cliente no ato de compra de bebidas. Cada cidadão tinha direito a três quartos de litro mensais de bebida alcoólica, não tendo as mulheres casadas direito nem mesmo a esta dose. A compra de vinho era livre, mas seu consumo anotado no motbok. A venda poderia ser cancelada a quem o comprasse em excesso. A concessão do motbok dependia de uma prévia investigação da vida privada do solicitante.

Um atentado aos direitos humanos é hoje consagrado como norma jurídica no direito público sueco. Em cada comuna, uma liga de temperança vigia o comportamento do cidadão. A liga dispõe de poder coercitivo para determinar o tratamento compulsório numa instituição estatal de qualquer um que “regularmente use do álcool em detrimento de si mesmo ou de outros”. Não há apelo contra essa ordem e a polícia pode recorrer à força para executá-la. “É importante observar, comenta Huntford, tratar-se de um caso no qual o cidadão pode ser privado de sua liberdade por uma ordem administrativa sem o devido processo legal.” Paralelamente, nas terras impregnadas pelo catolicismo, os abusos do poder estatal incidem acentuadamente sobre a questão sexual. Diariamente prostitutas são presas ilegalmente, sem flagrante nem ordem judicial, com a anuência da sociedade. Mas estas arbitrariedades não constituem lei, ficando no plano do poder de polícia, por definição arbitrário. Resta sempre o recurso do habeas corpus, o que inexiste na Suécia em prisões — ou internamento compulsório para tratamento, como quisermos — de alcoólatras.

A luta contra o alcoolismo é financiada com o lucro da venda do álcool. Os systembolag são certamente as únicas lojas do mundo que fazem publicidade contra suas mercadorias. Afixado em cada registradora, um cartaz tenta dissuadir o cliente da compra de bebidas fortes, sugerindo vinho como sinal de bom-gosto.

Algumas vozes começam a erguer-se contra este puritanismo em relação ao álcool. Bosse Gustavson, em seu romance Systemet, protesta contra o que considera um tratamento cruel contra os membros mais fracos da sociedade. Um de seus personagens afirma que em lugar algum do mundo um alcoólatra sente-se tão miserável, marginal e inútil como na Suécia. “Por isso tornamo-nos rapidamente imprestáveis e doentes e morremos mais rápido que em outras terras.”

Segundo Bosse, é um mito afirmar-se que quem bebe muito não pode cuidar de seu trabalho e viver em sociedade, pois desde os mais baixos aos mais altos cargos encontram-se homens que bebem e dão conta de suas funções. Muitos bebem nos locais de trabalho, e comportam-se, mas mesmo assim são despedidos. “Depois tornam-se dependentes aos langarna (20) e são forçados a ingressar nos grupos de alcoolistas que perambulam em volta dos systembolag. O que cair na lista de alcoólatras jamais conseguirá um emprego.”

Bosse Gustavson reivindica a venda de vinhos nos supermercados, a descentralização dos systembolag e sua abertura às 8, e um tratamento mais humano e isento de preconceitos para com os bêbados. Condena a rattfylleri mas acha que não deve ser punida com a cassação da carteira de motorista. “Conheço um escritor que se mantém vivo graças à carteira. Para dirigir é obrigado a manter-se sóbrio ao menos de vez em quando. A carteira de motorista é um importante fator de sobriedade.”

Rígido em relação ao álcool, o governo é bastante liberal em relação ao tóxico. Seu consumo não é proibido, mas sim o tráfico. (Como os consumidores teriam então acesso ao produto é algo ignorado pela lei, pois a venda do tóxico não é legal.) A prefeitura de Estocolmo financia bares onde centenas de adolescentes se reúnem para drogar-se. Oferecendo aos viciados um local de reunião, tem melhores condições de assisti-los e controlar o tráfico. Três gramas de marijuana é o máximo que cada um pode ter consigo. Se tiver uma quarta será considerado traficante. As batidas policiais são sempre recebidas com entusiasmo e alegria pelo pessoal. Para livrar-se dos gramas comprometedores o traficante as distribui gratuitamente três a três.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.