sexta-feira, 10 de julho de 2015

Andrea Faggion- De que serve um limite violável?

De que serve um limite violável?

by andreafaggion
No meio liberal, é bem antigo o debate entre deontólogos e consequencialistas. Eu tenho para mim que consequencialistas são apenas contingentemente liberais. Na verdade, essa constatação me parece até bem trivial. Desde Hume, sabemos que relações de causa e efeito são sempre contingentes, ou seja, não possuem necessidade lógica intrínseca e só podem ser descobertas empiricamente. As dificuldades para descobrirmos regularidades causais nas questões sociais também são comumente notadas. O que causa a criminalidade? O que causa prosperidade econômica? Há teorias divergentes propondo explicações para esses fenômenos. Assim, por exemplo, o consequencialista será liberal enquanto ele acreditar que uma organização social liberal tem maior probabilidade de causar a realização dos fins que ele almeja. A liberdade, para ele, é meio, não é fim.
Já com os deontológos, a conversa é bem diferente. Nem sequer é muito produtivo dizermos que a liberdade é o próprio fim do deontólogo. É mais esclarecedor dizermos que, para o deontólogo, a liberdade é um limite que restringe a busca de qualquer fim. Vejamos.
Por exemplo, você quer que todos sejam saudáveis? Ótimo! É muito generoso de sua parte desejar a saúde alheia. As pessoas, de fato, costumam buscar a saúde. Seria muito exótico pensarmos em um indivíduo que tem por fim ficar doente. As pessoas se expõem a doenças enquanto perseguem certos fins que não essas doenças. Assim, é razoável dizermos que a saúde é um fim universal, elogiando o indivíduo que gostaria que todos alcançassem esse fim. Mas tem um probleminha aqui.
Esse indivíduo tão generoso pode acabar concluindo que, como você mesmo quer ser saudável, ele pode fazer coisas como proibir que você coma muito sal. Ele usará os resultados de alguma pesquisa científica para legislar sobre a quantidade diária de sal que você terá direito de ingerir. Aí complicou, não é? Por que o deontólogo não aceitaria uma legislação do tipo? Porque ele acredita que a vontade do outro é um limite intransponível. Isso significa que, para o deontólogo, um indivíduo não pode ser restrito na busca de fins não agressivos. Ainda em outras palavras, se um indivíduo não está usando sua vontade como obstáculo à realização de fins da vontade de outro, ele não pode ter sua própria vontade restrita na busca de seus próprios fins. É isso que significa tomar a vontade do outro como um limite absoluto para suas ações. Eu não posso submeter a vontade do outro a fins que não são eleitos por ele próprio.
Ah, mas esse outro queria a saúde, não era isso? Sim, como eu disse, aparentemente, a maioria dos indivíduos têm por fim a saúde. Qual o problema então? O problema é que cada indivíduo tem todo um sistema de fins que cabe a ele hierarquizar. Por isso, você não pode dizer ao indivíduo: "ora, você quer ser saudável, pois, então, eis o meio para a saúde que você é obrigado a aceitar". Por mais que você esteja certo sobre determinada ação ser um meio para uma vida saudável, por mais que um indivíduo tenha por fim ter uma vida saudável, cabe a cada indivíduo julgar se ele não tem outros fins mais prioritários que, por sua vez, seriam prejudicados por aquela ação que serve bem de meio para a saúde. O ponto nuclear é que você não tem o direito de ordenar hierarquicamente o sistema de fins de outro: de ser a vontade do outro. Todo seu direito se esgota na exigência de que o outro organize seu sistema de fins de modo a também não impor fins a outros, afinal, cada vontade, nessa doutrina moral, é um absoluto a ser respeitado. Em suma, vontades, para o dentólogo, não são coisas para serem instrumentalizadas.
Agora, o que se diz, ordinariamente, a esse deontólogo - que será essencialmente, e não contingentemente libertário - é que limites não podem ser invioláveis, isto é, não podem ser absolutos. A minha questão neste post é se essa alegação teria algum sentido.
Considere que a sua própria pessoa não possa ser um limite inviolável para a ação do outro, ou seja, que nem sempre será preciso contar com seu consentimento para fazerem o que queiram fazer de você. Ora, isso é o mesmo que abolir completamente o limite, não? Afinal, se eu pudesse decidir em quais casos e até que ponto você não precisaria do meu consentimento para agir sobre mim, quer dizer, para me usar, então você já precisaria do meu consentimento para agir nesses casos. Mas se, por outro lado, coubesse a você decidir em que casos e até que ponto a decisão sobre o uso da minha pessoa caberia só a mim, basicamente, eu pertenceria a você. A necessidade do meu consentimento ficaria subordinada a uma vontade (seja de um ou de uma maioria) que me seria alheia. Por isso, não vejo meio termo aqui. Ou a vontade do outro limita o que você quer fazer dele ou não limita.

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