sábado, 6 de junho de 2015

Os perigos do anarcocapitalismo (e uma saída para eles) by andreafaggion

Aos pouquinhos, o preto e o amarelo começam a rivalizar com o vermelho no meio estudantil brasileiro. Crescem os adeptos do chamado "anarcocapitalismo". Assim como os que vestem vermelho, os que vestem preto e amarelo, muitas vezes, também se declaram "inimigos do sistema", "inimigos do Estado". No meio liberal, para muitos, esse movimento não é bem-vindo. Nesta nota, eu reflito um pouco sobre os receios bem fundamentados dos liberais contra o anarcocapitalismo e ensaio uma possível resposta.
Primeiramente, a ideia básica do anarcocapitalismo é a reivindicação do direito executivo, ou seja, do direito de fazer cumprir o direito. Para um liberal clássico, via de regra, esse seria o único direito a ser confiado a uma instituição central. Vejam bem, seria um direito confiado, e não transferido. Também via de regra, o liberal aceita a possibilidade de que esse direito seja retomado, caso se faça uso abusivo dele. Naturalmente, isso é pouco para o anarcocapitalista. O último afirma que, a menos que ele tenha efetivamente feito um contrato confiando seu direito executivo a outro, ninguém estaria autorizado a tomar essa decisão por ele. Para ser breve, eu acato essa alegação. Por que, então, eu entendo a posição dos liberais?
Não precisamos ir muito longe. Uma breve revisão dos "inconvenientes" que Locke listou como razões para deixarmos o estado de natureza - estado onde todos somos portadores do direito executivo - já nos mostra alguns dos principais motivos da posição atual dos liberais. Interessa-me, em particular, o problema da possibilidade de alguém julgar em causa própria. Como poderia um agente qualquer, detentor que é do direito executivo, julgar que teve um outro direito qualquer seu lesado, de tal forma a poder impôr pela força reparação e, conforme o caso, punição do culpado? Respondo desde já: não pode! Concordo com o argumento segundo o qual o direito só pode ser aplicado mediante julgamento de um terceiro. Dito isso, claro, não se deve confundir aplicação do direito - exigência de reparação e aplicação de punição mediante uso da força - com a legítima defesa, que se dá no ato e, naturalmente, pode ser executada pela própria vítima.
Agora, peço que observem a diferença entre a necessidade de que o juiz seja um terceiro e a necessidade de que só exista um poder judiciário atuando no mesmo território. Aquele mesmo indivíduo que não pode adjudicar em causa própria, bem pode, afinal, fazê-lo na causa de outros. Muitos podem tornar-se especialistas no ofício, conforme se observe como são bons em resolver conflitos com aceitação geral de que fizeram justiça. "Estado", por outro lado, envolve a noção de monopólio do poder judicial, ou, ao menos, é assim que entendo o conceito neste texto. Por isso, no mínimo, da exigência de um juiz imparcial para a exigência de um sistema judiciário monopolista, exige-se um novo passo argumentativo. E esse ônus pertence ao estatista.
Muito bem, eu disse que era esse ponto que me interessava do texto clássico de Locke. Mas isso é tudo? Não, o juiz não é o único problema em um sistema descentralizado de aplicação do direito. A lei também o é. Certamente, herdeiros do jusnaturalismo lockeano consideram que o direito natural seria um núcleo objetivo que deveria pautar as decisões judiciais imparciais. O problema é que esse direito não é acessível como tal. Uma coisa é o direito natural objetivamente considerado - se existir mesmo tal coisa - outra coisa são as diferentes opiniões acerca do que viria a ser o conteúdo do direito natural. Cada um de nós, por certo, acredita ter as melhores razões para apoiar sua proposta quanto ao conteúdo dos deveres jurídicos de todos os demais.
Note que esse problema não se resolve com o monopólio. Nada impede que o sistema judiciário monopolista adote uma concepção de direito que estaria em desacordo com esse hipotético direito objetivo. Mas, ao menos, haveria segurança jurídica se houvesse monopólio - podem dizer os estatistas - pois todos teríamos como saber qual a interpretação do direito objetivo em uso. Sem o monopólio, a cada momento poderíamos sofrer uma intervenção diferente e completamente inesperada, sempre em nome do direito.
Mas seria essa uma boa maneira de apresentarmos o problema? Vejamos: Existiria, objetivamente, um direito natural. Ninguém teria clarividência sobre o conteúdo de tal direito, havendo divergências empiricamente constatáveis de opiniões a esse respeito. Sem o monopólio, cada qual executaria aquilo que entende ser o direito natural, com igual legitimidade jurídica, visto que ninguém acessaria o original do direito natural, para poder avaliar as suas aparências. Muito bem! Não me parece que a situação se dê dessa forma!
Quando formulamos o problema do modo exposto no último parágrafo, estamos pensando em algo mais do que um direito de executar o direito. Estamos pensando em um direito legislativo, ou seja, no direito de dizer qual é a lei a ser executada. Ora, que homem teria o poder de dizer isso a outro? A ideia de que, em havendo divergência sobre o conteúdo do direito, um homem (ou a maioria deles) teria o direito de exigir a adesão de outro à sua própria versão é a instauração de toda tirania e servidão na terra. Em poucas palavras, ninguém tem o direito de legislar.
É assim que eu penso que se deva responder ao estatista. Em vez de afirmarmos que todos possuem igualmente o direito de fazer leis, reconheçamos que ninguém o possui. Ora, de onde virão então as leis? De nenhum lugar! Se temos uma sociedade vigente, é porque elas - as leis - já existem. Tudo que temos a fazer é: 1) eliminar tudo aquilo que foi inventado, isto é, toda legislação que foi deliberadamente criada e imposta; 2) separar as regras que mantêm a sociedade funcionando como tal dos costumes contingentemente vigentes como tais. O ponto de número 2) é, inclusive, a maior tarefa do juiz que não tem diante de si um código. Os próprios códigos, afinal, deveriam ser apenas e tão somente a transcrição do trabalho acumulado sobre o ponto 2).
Isso é viável? Podemos, na prática, retomar um sistema de direito consuetudinário e, ainda por cima, descentralizar sua aplicação? No momento, claramente, a resposta é "não". Todavia, imagine o efeito em nossa sociedade, caso tivéssemos mais políticos e aplicadores do direito descrentes da lei estatutária como um instrumento de reforma da sociedade na direção de algum ideal previamente estabelecido. Antes de pensarmos na implementação de outro sistema, acima de tudo, é preciso interrompermos a marcha do atual em seu processo de agigantamento: a multiplicação, fora de controle, dos estatutos. Isso é viável!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.