domingo, 10 de maio de 2015

J. R. Guzzo: Tristeza sem fim

Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
Mas que vejo eu aí…
Que quadro d’amarguras! (…)
Que tétricas figuras!
Que cena infame e vil…
Castro Alves
Eis aí o mundo, mais uma vez, repetindo a história – não como farsa, segundo está previsto nas ciências não exatas, mas como tragédia em estado puro. Em pleno século XXI, mais ou menos 150 anos depois da eliminação do tráfico de escravos pelos sete mares, descobre-se que estamos de volta ao tempo do navio negreiro e das suas infâmias, que Castro Alves denunciou para sempre num dos poemas mais emocionantes da literatura brasileira. As “tétricas figuras” são esses milhares de africanos e outros amaldiçoados da Terra que se espremem como cabeças de gado nos porões de navios em ruína, aos quais nenhum armador confiaria o transporte de sua carga; tentam cruzar o Mar Mediterrâneo na esperança de ser jogados numa praia qualquer da Itália, da Espanha ou de algum outro país da Europa, onde pretendem entrar como imigrantes clandestinos.
A “cena infame e vil”, cada vez mais frequente, é a crueldade dos naufrágios que os despacham regularmente para a morte no fundo do mar. No último deles, alguns dias atrás, entre o litoral da Líbia e a costa da Sicília, morreram 800. Só nos quatro primeiros meses deste ano os novos negreiros do Mediterrâneo já mataram perto de 2 000 homens, mulheres e crianças. Até o fim de 2015 o número talvez chegue a 30 000.
A situação de 2015, comparada com a de 1850, consegue ser ainda pior em certas coisas. Os operadores do tráfico de escravos cuidavam para que os seus  navios não fossem a pique durante a travessia do Atlântico. Seu negócio era entregar nos portos de chegada do Brasil, Estados Unidos e Caribe pelo menos o grosso do carregamento embarcado na África; não vendiam gente morta.
Os passageiros, do seu lado, tinham para onde ir depois do desembarque – e sabiam que seus novos donos iriam lhes dar pelo menos o suficiente para não morrerem de fome. Além disso, não precisavam pagar a passagem. Os chefes do tráfico humano de hoje, depois de receberem até 5 000 dólares por cabeça embarcada, estão pouco ligando se a mercadoria morre pelo caminho.
Os viajantes, caso cheguem vivos a algum lugar, não têm para onde ir. Acabam em campos de refugiados, onde ficam esperando, em barracas ou contêineres, que alguma autoridade decida o seu destino. São cada vez mais numerosos. Foram cerca de 50 000 em 2013. Neste ano podem passar dos 200 000.
Os náufragos do Mediterrâneo continuam vindo, na maior parte, da mesma África, acrescidos, hoje, de infelizes que tentam escapar de outros infernos do quarto mundo. Fogem, todos eles, da miséria em estágio terminal. São as vítimas diárias, também, das guerras tribais, religiosas e civis que destroem seus países, e dos choques entre as quadrilhas de gângsteres que os governam – e, além disso, roubam toda a ajuda internacional que eventualmente lhes é enviada, em dinheiro, alimentos ou remédios.
Ultimamente vêm sendo degolados, metralhados e torturados por esquadrões de assassinos que invadiram sua terra e se apresentam como “militantes muçulmanos”; as diplomacias terceiro-­mundistas acham que é preciso entender as razões desses carrascos. A população dos países europeus não gosta dos fugitivos – e por que haveria de gostar, se não é responsável por sua desgraça e não acha justo pagar por sua acolhida? Os países islâmicos, enfim, que tecnicamente são seus irmãos, acham que todos eles podem ir para o raio que os parta.
As desgraças não acabam aí; há pela frente, ainda, os defensores que têm no Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, ora chefiado pelo príncipe Zeid Ra’ad Al-­Hussein, Ph.D. por Cambridge, antigo campeão de rúgbi e flor da nobreza da Jordânia. É também um craque do pensamento politicamente correto e moralmente safado.
O doutor Zeid, por ocasião do último naufrágio, declarou que a culpa de tudo é das “políticas migratórias cínicas” dos países da Europa. Seus governos, acusou, querem transformar o Mediterrâneo num “grande cemitério”. Disse que lhes falta “coragem” e que cedem a movimentos de “direita” contra a imigração.
O navio naufragado saiu da Líbia. O comandante é cidadão da Tunísia. Seu imediato é da Síria. As vítimas estavam tentando fugir do governo criminoso de seus países. Mas o príncipe Zeid diz que os culpados são os europeus – os únicos que, bem ou mal, querendo ou não, fazem alguma coisa pelos refugiados. Com advogados assim, não há esperança possível. Fica apenas um imenso cansaço – e uma tristeza sem fim.

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