domingo, 19 de abril de 2015

A importância dos incentivos


A importância dos incentivos

Freakonomics
“Se a moralidade representa um mundo ideal, então a economia representa o mundo real.” (Steven Levitt)
O professor de economia da Universidade de Chicago, Steven Levitt, escreveu com Stephen Dubner um grande best-seller, o livro Freakonomics, cujo sucesso talvez possa ser explicado pela forma interessante de tratar temas do cotidiano, sem o jargão típico dos economistas. O prêmio Nobel Gary Becker, também de Chicago, é conhecido por levar os estudos econômicos para o dia a dia, já que economia é o estudo da ação humana, e os indivíduos reagem aos incentivos em inúmeras áreas diferentes. Steven Levitt vai nessa mesma linha, e o livro trata de diversos temas desconexos entre si, mas todos respeitando a idéia central de que pessoas reagem a incentivos. Fazendo as perguntas certas, reflexões intrigantes irão surgir. É uma leitura que vale a pena.
O estudo econômico seria, em sua raiz, o estudo dos incentivos. Como as pessoas conseguem o que desejam? Existem basicamente três fontes de incentivos: econômico, social e moral. Qualquer incentivo é inerentemente um trade-off, onde uma escolha deve ser feita deixando alguma alternativa para trás. Com isso em mente, Levitt sai em busca de estranhas correlações aparentes, que após algumas reflexões, demonstram sua lógica. Ele questiona o que professores escolares têm em comum com lutadores de Sumo, como a Ku Klux Kan pode ser parecida com um grupo de corretores de imóveis, por que os traficantes ainda vivem com suas mães e outras “esquisitices” que começam a fazer sentido somente após raspar a superfície e olhar mais a fundo, com a questão dos incentivos sempre na cabeça.
No caso estranho entre a KKK e os corretores de imóveis, Levitt foca no aspecto da assimetria de informação. O poder dos membros da Ku Klux Klan vinha justamente do fato de armazenarem informações internas, apenas para seus partidários. Os corretores de imóveis formam um mesmo tipo de grupo, e quando a internet começa a dissipar esse poder, através da rápida disseminação da informação, o grupo perde sua vantagem comparativa. A aura de mistério em torno da KKK dava certo poder ao grupo, e quando as verdades sobre os bastidores começaram a ser expostas em livros, por ex-membros decepcionados ou arrependidos, esse castelo de cartas desabou. A atração de adeptos vinha do fato de ela ser uma espécie de sociedade secreta, dando um sentimento de superioridade em relação a quem está de fora. Ao se expor seus rituais na mídia, a organização perdeu sem encanto. A KKK passou a ser vista como um grupo qualquer, até mesmo sendo ridicularizada em certos aspectos.
Analogamente, a internet alcançou aquilo que nenhum defensor dos consumidores poderia sonhar: encolheu absurdamente a diferença entre os experts e o público. Popularizando a informação, tornando o acesso a base de dados extremamente fácil, possibilitando comparações imediatas entre diferentes opções, a internet destruiu boa parte da fonte de poder dos corretores de imóveis. A informação que somente os “especialistas” possuem lhes possibilita enorme vantagem em cima do público leigo: o medo. Um corretor poderia antes aterrorizar um vendedor, garantindo que o preço estará caindo em breve e que ele deve logo aceitar uma determinada oferta de compra da casa. Para o corretor, isso significa negócio rápido e, portanto, corretagem, sem fazer tanta diferença assim conseguir alguns milhares a mais para o cliente, esperando uma oferta melhor. De fato, Levitt mostrou como os corretores, quando vendiam suas próprias casas, costumavam esperar mais tempo em média, e conseguiam preços maiores. Esses corretores devem odiar a Google!
Sobre os traficantes, uma constatação suscitou a seguinte pergunta em Levitt: se eles fazem tanto dinheiro assim, por que ainda vivem com suas mães? A resposta obtida foi que, diferente da “sabedoria convencional”, que muitas vezes está errada, os traficantes não fazem tanto dinheiro assim. Com a exceção dos grandes figurões do tráfico, o restante ganha mal. Há muita competição, e filas de espera para preencher vagas, devido à uma completa falta de oportunidades, muitas vezes, e ao sonho de chegar a ser um “chefão” algum dia. Mesmo sendo uma atividade de extremo risco, a ilusão de que chegará a ser o traficante poderoso e rico estimula os mais jovens a encarar os riscos. Trata-se do mesmo tipo de incentivo presente em negócios onde somente pouquíssimas pessoas alcançam o sucesso, mas que o pay-off desse sucesso é tanto que a esperança de ser o premiado pela loteria justifica o esforço presente. Quantos atores chegam ao cachê milionário de Hollywood? E nem por isso milhões e milhões de atores de quinta categoria deixam de acordar cedo e trabalhar duro por alguns trocados, sonhando com o dia em que serão como Bruce Willis. O problema de o tráfico pagar pouco é, então, o mesmo de muitos “negócios” da mesma natureza de incentivos: muitas pessoas competindo por muito poucos prêmios.
Sobre a criminalidade, Levitt faz um interessante paralelo com a questão do aborto. Ele cita o caso do ditador comunista romeno Nicolae Ceusescu, que tornou o aborto ilegal em 1966, alegando que o “feto era propriedade de toda a sociedade”. O objetivo do ditador comunista era aumentar a população do país, e com os incentivos criados, atingiu o efeito desejado. Dentro de um ano após o banimento do aborto, a taxa de natalidade romena tinha dobrado. A maioria nascia nas regiões mais miseráveis, justo onde mais abortos eram praticados antes. Cerca de 20 anos depois, com a proibição ainda vigente, a criminalidade tinha explodido no país. Em 1989, milhares de pessoas tomaram as ruas para protestar contra o regime. A maioria era formada por adolescentes e jovens estudantes, nascidos na época em que o ditador chegou ao poder e adotou as medidas contra o aborto. O ditador tentou fugir do país, mas foi capturado e executado.
Levitt tenta mostrar que a proibição do aborto tem forte ligação com o aumento da criminalidade. Seus estudos estatísticos, travando determinadas variáveis para buscar a causalidade entre as coisas, mostram que a queda da criminalidade nos Estados Unidos pode ter como causa a legalização do aborto. A lógica para explicar isso não é tão complicada assim de entender. A maioria dos abortos é realizada justamente por mães solteiras, pobres, sem condição de criar seus filhos direito ou sem desejo para tanto. Como Levitt coloca, quando uma mãe não quer ter seu filho, normalmente ele tem bons motivos. Ela pode ser solteira, achar que não tem capacidade para criar um filho, não ter dinheiro, achar seu casamento instável e infeliz, se considerar jovem demais etc. São exatamente essas características familiares que costumam explicar boa parte do background dos criminosos.
Sem uma educação decente em casa, criado sem a figura paterna, por uma mãe jovem, solteira, pobre, muitas vezes drogada, que nem sequer deseja ser mãe, as chances de o jovem cair no crime são bem maiores. Filhos indesejados apresentam maiores probabilidades de problemas futuros. A legalização do aborto levou a menos filhos indesejados deste tipo, que levou, por sua vez, a menos crimes após alguns anos, quando estes fetos que não chegaram a nascer seriam adultos na idade que concentra a maioria dos criminosos. Como as pessoas costumam buscar causalidade no curto prazo apenas, acabam ignorando esse efeito. Tais argumentos não sustentam necessariamente que a legalização do aborto é desejável, pois outros fatores morais estão presentes na questão. Mas mostram, uma vez mais, que pessoas reagem aos incentivos.
Eis o objetivo de Steven Levitt com o livro: esquecer o mundo ideal da moralidade e mostrar como a vida é na realidade, com indivíduos reagindo a todo tipo de incentivo que surge em sua frente. Ter melhor noção dessa realidade pode ser extremamente útil, ainda mais quando tantos ainda sucumbem à visão romântica de “déspotas esclarecidos” que chegarão ao poder e farão verdadeiros milagres. Depositar fé messiânica nos governantes é o caminho da desgraça. Bem mais inteligente é trabalhar corretamente os mecanismos de incentivos na política, descentralizando o poder e fazendo com que um poder tenha interesse em vigiar o outro.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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