sábado, 28 de março de 2015

Andrea Faggion- Ideologia e seus Bodes Expiatórios

Ideologias e seus Bodes Expiatórios

by andreafaggion
Vamos especular um pouco sobre sociologia, ou psicologia de massas? Vocês já leram Minha Luta, de Hitler? Eu, sim. Quem leu sabe que a origem do ódio de Hitler aos judeus não era baseado em alguma característica religiosa ou étnica do grupo. Hitler simplesmente atribuía aos judeus os supostos crimes do sistema financeiro. Como para muitos ainda hoje, segundo Hitler, o sistema financeiro seria parasitário do sistema produtivo, e culpado pelas crises que levam massas de trabalhadores a passarem fome.
É bem sabido como, por serem sempre fugitivos, historicamente, os judeus não tendiam a se tornar grandes produtores rurais ou industriais. Imagine como seria estúpido acumular riqueza, por exemplo, em forma de terra, se você fosse um judeu. Judeus tornaram-se, por exemplo, grandes comerciantes de pedras preciosas, porque, se você precisar fugir da noite para o dia, você vai querer poder carregar sua riqueza nos bolsos. Assim, vivendo de comércio e de crédito, judeus não adquiriram lá grande reputação nas sociedades em que formaram suas comunidades. Eram vistos como aqueles que, usando de astúcia, obtinham vantagens sobre os que verdadeiramente produziam riqueza. É por isso que, muito antes de Hitler, você já encontrará observações do tipo sobre os judeus em ninguém menos do que Kant, por exemplo.
Note, então, como foi fácil para Hitler eleger o judeu como o bode expiatório de seu contexto. Foi assim que ele pôde propagar com tanto sucesso sua ideologia. Todo mundo quer alguém para culpar por seus problemas! (E aqui entra minha psicologia de botequim). É reconfortante poder pensar que você tem menos do que poderia ter por causa de alguém que o explora, que o oprime, que tira de você o que deveria ser seu por direito. Seria muito mais duro termos que conviver com o fato de que somos mais pobres do que poderíamos ser, porque fizemos escolhas erradas no passado, ou porque nossos antepassados fizeram-nas, ou porque não fomos favorecidos pela natureza. Quem já perdeu um ente querido sabe como isso é mais difícil quando o fato se deve a um mero acidente: o lado trágico da vida. Traz conforto pensarmos que foi pela vontade de alguém que o mal caiu sobre nós, alguém que você pode culpar e punir, aliviando sua dor. Assim, o judeu foi apenas o opressor da vez naquela ideologia.
Agora, mudemos de ideologia. Se você ler Marx (e eu não li o bastante), você fica com a impressão de que burgueses são tão culpados por qualquer coisa quanto proletários, afinal, antes do comunismo, vivemos todos conforme a necessidade. Não atingimos uma sociedade livre. Bom, se isso fizer sentido, o burguês pode ser o explorador, mas não é propriamente culpado por isso. Porém, isso não impediu seguidores de Marx de terem eleito o burguês como seu bode expiatório. E lá está todo o ódio, todo o ressentimento de classe. "Não é por causa do sistema que eu vivo assim: é por sua causa, seu burguês!"
Andando mais um pouquinho, encontramos o ódio racial. Sabiam que todo brasileiro branco descende de senhores de engenho escravagista? Pois é, parece que, na sociedade escravagista, não havia ferreiros ou sapateiros brancos livres. Ninguém tem o direito de dizer: "meu trisavô não teve nada a ver com o que fizeram com seu tetravô, por favor, não me odeie assim". Inclusive, todos os brancos chegaram ao Brasil antes do fim da escravidão, não é? A verdade é que não importa o que os meus antepassados de fato fizeram com os seus e o quanto eu me beneficiei e você sofreu por isso. O importante é ter alguém in concreto para culpar por sua situação!
E, agora, chegamos aos libertários. (Sim, pensaram que eu ia poupar minha própria ideologia de minha divagações?) De acordo com a ideologia libertária mais radical, não há justificativa para a cobrança de impostos. E parece que alguns garotos deduzem disso que, se eles não pagassem impostos, eles simplesmente seriam mais ricos do que de fato são, de modo que eles são os explorados e, quem vive de dinheiro de impostos, o explorador.
Tudo que a teoria econômica por trás do libertarianismo sustenta, porém, é que o planejamento estatal é um modo menos eficiente de gestão de recursos, de tal maneira que, em uma sociedade de livre mercado, haveria uma maior probabilidade de um fim randomicamente escolhido ser realizado. Em outras palavras, o livre mercado otimiza o número de fins realizáveis. Mas isso não quer dizer que você, Joãozinho pagador de impostos, seria beneficiado no livre mercado.
O livre mercado também depende da possibilidade sempre presente de que fins sejam frustrados. É um jogo de risco. Por exemplo, se você é um empresário já estabelecido, em um ambiente de autêntico livre mercado, seu negócio estaria muito mais ameaçado do que sob um Estado que atua a todo momento para criar barreiras para novos entrantes no seu mercado, sendo os próprios impostos uma barreira do tipo. Não há nenhuma garantia de que um empresário não seja um beneficiado pelo Estado, o mesmo valendo para seus empregados. O mesmo Estado que cobra impostos da padaria da esquina da minha casa também me proíbe de vender bolos na minha calçada, ameaçando sua hegemonia.
Portanto, é falso afirmar que apenas pessoas que recebem dinheiro do Estado, seja em troca de trabalho ou como benefício social, sejam privilegiadas pela situação injusta de cobranças de impostos. Talvez, elas sejam as prejudicadas, pois não sabemos o que seria delas nesse universo paralelo em que vivemos no livre mercado. Talvez, elas tivessem oportunidades melhores, que lhes foram privadas no mundo real estatista, onde há um cão de guarda no portão de cada mercado. Aqueles que pagam os impostos dentro dos portões podem, convenientemente, não perceber como esse cão lhes serve bem, e é mesmo pago para isso.
Enfim, seja lá como for, é preocupante que a ideologia libertária propague-se com um discurso de ódio semelhante às demais: o ódio ao funcionário do Estado, no caso. Como vimos, é psicologicamente muito útil para a propagação da doutrina que elejamos um bode expiatório. Mas a história recomenda, pelo menos, cautela. Quando um grupo elege outro como seu opressor, basta que ele seja forte o bastante para que ele passe das palavras de rancor às vias de fato da punição. Leiam Minha Luta!

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