quinta-feira, 5 de março de 2015

A batalha entre o governo e o mercado



“Mais cedo ou mais tarde são as idéias, não os interesses investidos, que são perigosos para o bem ou para o mal.” (John Maynard Keynes)
Deng Xiaoping, quando assumiu o governo chinês após anos de maoísmo, afirmou que “não importa se o gato é preto ou branco, contanto que ele pegue o rato”. Após anos de miséria na China socialista, com a “Revolução Cultural” e o “Grande Salto” de Mao Tse Tung, o país finalmente entrou em um período de expansão acelerada, com a abertura parcial de sua economia para o mundo. Deng estava convencido de que seu país precisava migrar cada vez mais para uma economia de mercado. *
O excelente livro que Daniel Yergin escreveu com Joseph Stanislaw, The Commanding Heights, tem como subtítulo “a batalha entre governo e mercado que está refazendo o mundo moderno”. O livro aborda justamente a transição ocorrida nas últimas décadas, que transferiu gradativamente o poder das mãos do Estado para o livre mercado, gerando riqueza e tirando milhões da miséria. Conforme disse o famoso economista na frase da epígrafe, o poder das idéias é fundamental para estas mudanças. E como são os políticos que implementam essas idéias, uma das lições tiradas das recentes mudanças é a importância dos líderes também. Os nomes Thatcher e Reagan logo vêm à mente. O livro expõe inúmeros casos práticos que reforçam a tese de que quanto mais competição de livre mercado houver, em vez de dirigismo estatal, maiores as chances de prosperidade da nação.
Ignorando-se as nomenclaturas atribuídas a cada ideologia, pode-se focar no que realmente funciona. E para saber o que é isto, tem-se vasta experiência empírica pelo mundo afora. É preciso um Estado menor, com contas públicas ajustadas, cuidando basicamente da segurança e justiça. É preciso regras claras para o mercado, poucas leis isonômicas e gerais, não permitindo privilégios para categorias específicas. É preciso maior flexibilidade no mercado de trabalho, que se ajusta melhor sem tanta intervenção do governo. É preciso mais incentivo aos empreendedores, com menos impostos, somente possível se o governo reduzir seus gastos. É preciso mais privatizações, para permitir um acúmulo maior de capital e foco no consumidor. Somente assim se tem avanços tecnológicos e competitividade sustentável no mundo globalizado. É preciso um Banco Central independente, para livrá-lo de interesses políticos de curto prazo que geram inflação. É desejável uma previdência justa e de preferência privada, onde o aposentado recebe atrelado ao que contribuiu e escolhe onde investir sua poupança. É preciso evitar a socialização dos prejuízos através do patrimonialismo. Enfim, é preciso mais liberdade na economia, com regras claras para todos, e a partir de então premiando os sucessos, mas convivendo com os inevitáveis fracassos. O Estado não tem como e nem deveria tentar impedir isso, pois apenas com estas claras regras de mercado é que se evolui e progride, com justiça.
Um excelente exemplo do controle estatal que vai à contramão dessa receita pode ser encontrado na França de Mitterrand, eleito em 1981, ano que marcou a tomada do poder pelos socialistas. Mitterrand declarou guerra ao capitalismo liberal, através de seu dirigismo estatal. O governo nacionalizou os bancos, assim como várias grandes empresas industriais. Aumentou expressivamente os gastos sociais, reduziu as horas de trabalho sem redução de salários. Contratou mais de cem mil funcionários públicos. Enfim, tudo pelo “social”. Acontece que la relance, como ficou conhecida sua política, não trouxe crescimento nem melhorias sociais sustentáveis. O que aconteceu foi uma aceleração da inflação, fuga de capitais, aumento do desemprego e enorme prejuízo para os cofres públicos através das empresas paquidérmicas recém nacionalizadas. Enquanto isso, do outro lado do oceano, Ronald Reagan adotava políticas na direção oposta, reduzindo a intervenção do Estado e estimulando o setor privado. A Inglaterra de Margareth Thatcher ia nesta mesma direção, privatizando empresas, atacando as máfias sindicais e reduzindo o tamanho do Estado. A história diz quem realmente fez mais pelo “social”, na prática. A riqueza não é criada por belos discursos, tampouco por papel e caneta do governo.
Foi com um discurso nacionalista, altamente populista e demagogo, que a América Latina se afundou no passado, ainda sentindo os negativos efeitos disso. Com um movimento conhecido como Dependência, a região se fechou para o mundo, acusando os Estados Unidos de “império explorador”. Em vários países, líderes populistas assumiram o poder, e adotaram políticas ditas pró-sociais. O Estado cresceu demasiadamente neste período, chegando a ser dono de um circo na Argentina ou de um night club no México. No Brasil, era dono de centenas de empresas, de todos os ramos possíveis e imagináveis. As contas públicas explodiram, gerando hiperinflação. As desigualdades sociais nunca foram tão grandes, pois a inflação é o pior “imposto” para os pobres, que não conseguem se defender. Os governos ditos de esquerda faziam de tudo, e cuidavam de várias empresas em todos os setores, com enorme ineficiência e corrupção. Fechados para o mundo, suas economias estavam estagnadas, e com protecionismo disfarçado com o eufemismo “programa de substituição de importações”, criaram-se os maiores sanguessugas do mundo, empresários corruptos que ficaram ricos à custa de um governo corporativista e clientelista, que impede a livre competição.
Após tantos anos nessa situação, a região ficou miserável, com uma desigualdade social gigantesca. Quando, em alguns desses países, governos mais liberais e pró-mercado assumiram, a coisa começou a mudar aos poucos. O México se aproximou dos Estados Unidos, e com o acordo de livre comércio NAFTA, pôde pegar uma carona para seu crescimento econômico. O Peru, com Fujemori, adotou uma política de choque, reduzindo drasticamente os gastos públicos e deixando a moeda flutuar livremente, e o país sentiu os efeitos positivos da mudança. O Chile, mesmo com um ditador, adotou políticas econômicas liberais, e se tornou um dos países mais prósperos da região. Mesmo quando Pinochet saiu do poder, os candidatos da esquerda não ousavam atacar as “vacas sagradas” da economia, herança dos “Chicago boys” que aplicaram reformas liberais com enorme sucesso.
O livro aborda vários outros exemplos, como a emergência de países asiáticos, o despertar da Índia após vários anos de governo socialista, a jornada pós-comunista da Rússia etc. Um dos grandes méritos dele é mostrar com vastos exemplos a prática das idéias liberais. Transferir oscommanding heights do Estado para o livre mercado pode – e costuma – fazer “milagres”. O mais triste de tudo é ver muitos acusando justamente estes tipos de reforma pela miséria da América Latina, enquanto na verdade a maior causa dessa miséria é exatamente o fato de estas reformas nunca terem sido aplicadas por aqui. O continente perdido fica cada vez mais defasado por ignorar o bom-senso dessas medidas. O Chile, que chegou mais perto dessa transição descrita no livro, é não por acaso o mais desenvolvido da região. Quando será que as demais nações pobres vão acordar para a realidade e surfar na onda do liberalismo? Afinal, a batalha entre governo e mercado já terminou no campo das idéias, ao menos para aqueles intelectualmente honestos, e o mercado venceu. Quanto mais livre a economia de um país, melhor para o progresso. Resta os países subdesenvolvidos vencerem a batalha no campo da práxis, colocando em prática essas idéias vencedoras, persuadindo aqueles que ainda não enxergam com nitidez a realidade. Eis o grande desafio.
* Na verdade, a abertura chinesa não foi algo tão planejado assim, de cima para baixo. O jornalista James Kynge explica, no livro A China Sacode o Mundo, que “muitos dos eventos-chave e ocorrências que impulsionaram o progresso na direção do capitalismo foram, na verdade, não planejados, não intencionados ou completamente acidentais”. Avistando uma brecha aberta por Deng, os próprios chineses forçaram mudanças de baixo para cima, copiando de forma obsessiva os exemplos de sucesso nos Estados Unidos. Mas, mesmo retirando uma boa dose de crédito do “arquiteto”, o fato é que o mercado ampliava seu escopo vis-à-vis o governo. “Os agricultores entenderam a nova política como licença para começar a cultivar terras da família”, explica Kynge. Houve uma descentralização razoável do poder. O jornalista afirma: “A disposição dos funcionários dos governos locais em desobecer Pequim foi portanto um ingrediente crucial nas reformas de mercado livre dos anos 1980”. Bilhões e bilhões de dólares entraram no país como investimentos diretos, e as taxas de crescimento foram de dois dígitos durante anos. As atrocidades cometidas pelo modelo político chinês permanecem, mas o pouco de pragmatismo adotado na economia ao menos tirou milhões da miséria completa.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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