Se eu tivesse que elaborar uma lista de textos essenciais para uma boa educação no melhor da tradição liberal, eu certamente incluiria nela a clássica conferência "A liberdade dos antigos comparada com aquela dos modernos", de Benjamin Constant. Em tempos de greve em minha universidade, o insight de Constant não tem apenas brilho teórico; ele ilumina e racionaliza o que vivencio da forma mais concreta possível. A bem da verdade, eu cheguei à conclusão que o fator que diferencia o liberalismo em relação a todas as outras doutrina políticas em evidência contemporaneamente é a adesão liberal a alguma distinção como a feita por Constant no texto mencionado. Outras doutrinas assimilam sentidos de liberdade que liberais fazem questão de separar.
Colocando cruamente, a liberdade dos antigos de que fala Constant consiste na participação do indivíduo em um exercício coletivo e direto de soberania. É a deliberação na esfera pública, que tanto encanta certos filósofos contemporâneos. Naturalmente, como diz o próprio Benjamin, admite-se "como compatível com esta liberdade coletiva a completa sujeição do indivíduo à autoridade da comunidade".
A situação que estou vivendo, como falei acima, ilustra com perfeição essa liberdade como sujeição do indivíduo à coletividade de que fala Constant. Como vocês de fora do estado têm visto nos noticiários, o governador do Paraná quer implementar medidas que implicam diretamente no corte de benefícios até então assegurados legalmente a servidores públicos do estado. Disso se segue que, uma vez implementadas as medidas, inegavelmente, eu, como professora de uma universidade pública, terei um prejuízo material. Ato contínuo, eu sou convocada para uma assembleia de uma associação da qual não faço parte. Curiosamente, a convocação da assembleia inclui explicitamente os "não-associados". E, vejam bem, os não-associados não são convidados, eles são mesmo convocados.
Como se nota facilmente, com a convocação estendida a mim, fica garantida a liberdade dos antigos. Estão estendendo a mim o direito de voz e voto. Garantida a minha participação no mecanismo coletivo de decisão, mesmo que eu não atenda a convocação, as decisões tomadas passam a valer para mim. Por exemplo, se decidem que os professores não devem lecionar até que o governador volte atrás em seus planos, eu fico impedida de lecionar. Alguém se oporá fisicamente à minha entrada em sala de aula, ou perturbará fisicamente a realização da minha aula. Essa pretensão de direito de interferência em minha vida se ampara no direito de participação na decisão a mim concedido. É por isso que Constant se refere a uma sujeição do indivíduo à coletividade.
Deixando Constant um pouco de lado, podemos encontrar uma tentativa de fundamentação desse direito da coletividade sobre o indivíduo em autores contemporâneos como Hart e Rawls. Refiro-me ao chamado "princípio da equidade". Novamente colocando em termos grosseiros, o princípio diz que, se um grupo de pessoas restringe sua própria liberdade, arcando com um custo, em um empreendimento do qual eu também me beneficio, então esse grupo tem o direito de exigir que eu própria restrinja minha liberdade e arque com um custo. No caso, como eu serei beneficiada se os grevistas conseguirem que o governador recue, eu preciso pagar o preço de atrasar minhas aulas juntamente com eles. Eu não poderia deixar minhas aulas em dia, não correr riscos como o de não receber o salário ao final do mês e, ao mesmo tempo, ter meu plano de carreira preservado ao final do processo. Percebam, e isso é crucial, que eles não têm um mecanismo que permita que eu seja impedida de pegar carona no movimento deles. Não há como assegurarem que apenas as carreiras dos grevistas não sejam prejudicadas se eles forem vitoriosos. Por isso, só haveria justiça se eu fosse forçada a pagar o preço pela preservação da minha carreira juntamente com eles.
Dependendo do temperamento da pessoa, o argumento pode até ter alguma plausibilidade intuitiva. Mas ele não resiste a qualquer análise pouco mais apurada. Eu fico imaginando, por exemplo, o que um sindicalista responderia às críticas que Nozick fez ao princípio da equidade em Anarquia, Estado e Utopia. Claro, na verdade, eu até sei o que o sindicalista diria. Ele pouco se importaria com questões lógico-conceituais. Afinal, o que importa, para ele, é a luta que muda o mundo! Mas eu, sim, me importo com questõezinhas intelectuais, tais como: "com que direito você me faz isso?" E não só eu! Daí a discussão sobre o princípio da equidade.
Basicamente, quem aceita o princípio da equidade precisa aceitar que pode calcular por mim se meus custos em um dado empreendimento ficarão aquém de meus supostos benefícios. No meu exemplo real, grevistas supõem que é o caso que eu prefira fazer greve a ter meu plano de carreira prejudicado. Eles exigem o pagamento antecipado (a participação na greve) por um benefício que eu simplesmente não contratei (a manutenção do meu plano de carreira).
O que é mais curioso nesse princípio nos devolve ao ponto da liberdade coletiva de que fala Constant. Penso eu que todos admitiriam que um colega meu qualquer não teria o direito de me impedir de trabalhar em um belo dia, alegando que, com isso, eu ganharia o que quer que fosse. Parece pacífico que admitamos que não possamos dar ordens uns aos outros se somos colegas em condição de igualdade. Mas note que tudo muda se meus colegas se unem em uma coletividade. Aí, sim, as pessoas encaram com naturalidade que eles possam me dar ordens em nome de meus supostos benefícios. Por algum motivo, o fato deles se unirem e me darem o direito de participar do coletivo criado conferiria ao grupo um novo direito sobre mim que, admissivelmente, não seria possuído por nenhum dos membros do grupo individualmente.
Parece um passe de mágicas, não? João não tem o direito de me impedir de trabalhar; José não tem o direito de me impedir de trabalhar; Pedro não tem o direito de me impedir de trabalhar... Então, João, José, Pedro... se juntam, dizem que eu tenho o direito a um voto contra o deles, e passam a ter o direito de me impedir de trabalhar se vencerem. Alguém entende como isso se passaria? Poderiam me explicar? Quando foi que eu concordei em sujeitar minha decisão a uma votação? Parece que nós liberais ficamos com a lógica. Pena que os sindicalistas sempre fiquem com a realidade.
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sábado, 21 de fevereiro de 2015
Andrea Faggion- Constant, a liberdade dos antigos e a greve
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