sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A justiça do mercado e a ética da tribo- by andreafaggion

Já parou para pensar no quão sem sentido é a lenda-lenga de que um governo está se curvando ao "mercado"? O que se entende, afinal, por "mercado" nessa queixa? É fácil de perceber que se tem em vista umas seis corporações ou meia dúzia de especuladores bem relacionados no governo. Mas tem cabimento chamar de "mercado" um grupo de empreiteiras ou de banqueiros com amigos em cargos públicos de alto escalão, talvez, com um presidente no bolso?
Mercado é um tipo de relação. Não é uma substância ou um grupo definido de pessoas. Em épocas nem tão distantes, as sociedades eram fechadas em pequenos conjuntos de clãs ou tribos, em que os indivíduos possuíam papéis econômicos rigidamente definidos. Para os membros dessas sociedades, os estrangeiros eram verdadeiramente estranhos. Como eles se relacionavam com estranhos?
Naturalmente, os estranhos detém bens que são do meu interesse, do interesse dos meus. A forma mais natural de se entrar na posse desses bens, na sociedade tribal, era a guerra. Eu quero. Você também quer. Eu tomo à força de você. Eu tomo você mesmo à força como meu escravo, porque, afinal, mão-de-obra também é um bem. Mais do que um estranho, para a tribo, o outro é um inimigo (ao menos, em potencial).
O que muda esse cenário? A guerra, como modo de relação, foi amplamente superada pelo mercado. Com o tempo, prevaleceram os grupos humanos que descobriram que seria mais vantajoso oferecer algo em troca do bem cobiçado, em vez de pegá-lo à força. A guerra, afinal, consome recursos materiais e humanos. Por que não trocar em vez de guerrear, se eu preciso do que o membro de outra tribo tem e ele precisa do que eu tenho? Pois isso mudou tudo!
Mercado é a relação pacífica com o outro como tal, e o outro é aquele que não partilha dos meus propósitos. Esse ponto nunca poderia ser exageradamente enfatizado. O que tanto horroriza a tantos é justamente a maior virtude do mercado: o fato dele possibilitar o convívio pacífico de pessoas que não fazem causa comum. O mercado é, por natureza, o espaço de convívio da diferença, uma diferença que não precisa, em absoluto, ser suprimida. Negócios fazem a paz sem consenso.
A paz do mercado está ancorada em regras de justiça que estão para além da ética privada de qualquer tribo. Há regras que possibilitam que dois estranhos façam negócio. O mercado só pode surgir em uma sociedade aberta, onde estranhos têm meios para diferenciar o meu e o teu, onde estranhos têm expectativas bem sucedidas de comportamento uns com relação aos outros. É nesse sentido que regras de justiça que definem o meu e o teu, que determinam as trocas voluntárias não podem ser posteriores a nenhuma sociedade aberta. Sem tais regras, não haveria nada além de diversas tribos em guerra (declarada ou potencial).
As regras de justiça nasceram junto com a primeira troca voluntária, junto com o mercado. Assim como o imperativo categórico de Kant foi descoberto nos juízos morais, não foi ensinado pelo sábio filósofo à humanidade, também as regras da propriedade e do contrato, que são independentes da ética e de propósitos particulares, têm de ser descobertas, e não inventadas ou ensinadas. Nenhum filósofo, do alto de seu gabinete público, vai ensinar aos homens como fazer mercado. O filósofo deve ter a humildade de descobrir como o mercado é possível, quais são suas regras.
Aqueles que não se conformam com o fato do convívio humano ser possível sem propósitos ou projetos comuns, naturalmente, também não se conformam com a limitação da coerção às regras de justiça do mercado. No fim das contas, quando liberais defendem um Estado mínimo, o que todos devem querer dizer é que, para haver mercado, isto é, sociedade entre estranhos, é preciso que o uso da força seja limitado à aplicação das regras da propriedade privada e do contrato voluntário. Não há mais mercado, isto é, nenhum convívio de diferentes, quando eu sou forçada a servir os seus propósitos, perseguir os seus fins. O que há, nesse caso, é apenas a antiga submissão de uma tribo à outra. Eu sou sua escrava!
A beleza não-apreciada do mercado é o fato dele deixar você ser quem é, ter sua própria tribo, seus próprios propósitos, e ainda conviver pacificamente comigo. Quando a ética da minha tribo, meus propósitos são alçados à condição de lei, ou você está comigo ou contra mim. Se você não buscar o mesmo que eu busco - não me der parte do seu dinheiro para construirmos este hospital - eu te coloco na cadeia. Você se torna um inimigo público, quer dizer, você é um párea na minha tribo, porque não aceitou a imposição de se juntar a ela. Pois o mercado não tem páreas. Ele funciona com cada um mantendo seus próprios propósitos, que bem podem ser altruístas.
Eu quero construir um hospital de caridade. Para isso, eu preciso levantar recursos. Se João não quer contribuir com o meu hospital, eu posso vender meus serviços para João e usar o pagamento para realizar meu fim, que continua não sendo o de João. Se não é o bastante, eu me uno a um José, que vendeu serviços para Carlos (outro que não dá a mínima para o meu hospital), e quer dar o mesmo destino ao seu pagamento. Agora, não é mais o meu hospital. É o nosso hospital: do José, meu e de quem mais queira fazer causa comum conosco. No mercado, nós podemos conseguir dinheiro de gente que não persegue o propósito do hospital, sem que tenhamos que guerrear com eles.
Assim, antes algum governante estivesse mesmo interessado em servir ao mercado. Antes todo governo se ajoelhasse aos pés do mercado, essa instituição promotora de civilização, de paz. Mas não, nossos governantes se ajoelham aos pés de meia dúzia de empresários, que odeiam o mercado e, por isso mesmo, dão esse nome ao seu conluio, para que você o odeie também. Tem dado certo!

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