Ao longo dos últimos séculos pudemos observar no universo político das chamadas democracias modernas, sem exceção, o estabelecimento de uma dicotomia política cujo roteiro foi escrito como farsa: a distinção entre duas facções políticas dominantes, uma conhecida como “esquerda solidária” e a outra como “direita ordeira”.
As denominações obviamente variam de acordo com a retórica dos grupos que, nos jogos de interesses, buscam acima de tudo e invariavelmente a maximização do poder e dos privilégios para seus membros. Os partidários das agremiações de esquerda aplicam frequentemente aos seus oponentes rótulos como autoritários, disciplinadores, conservadores, reacionários, retrógrados, individualistas e exploradores, entre outras denominações consideradas pejorativas. Aqueles à direita por sua vez aplicam aos seus adversários políticos de forma igualmente pejorativa adjetivos como irresponsáveis, utópicos, ineficazes, libertinos, incivilizados, baderneiros, espoliadores, etc.
O liberal bem informado não se surpreende com o uso de hipérboles em meio ao excessivo ativismo político vigente nas democracias hipertrofiadas, afinal é capaz de enxergar além da encenação teatral que lhes é característica. É necessário, porém, ir além das hipérboles. Tal dicotomia é acima de tudo uma impostura consentida que permite aos representantes políticos e seus eleitores, de ambos os lados, a defesa (ou percepção de defesa) de seus privilégios sob o manto de uma retórica simples mas aparentemente meritória e justa (ainda que falsa).
Começo por mostrar que a dicotomia é uma farsa. Suas origens históricas são múltiplas e assim de difícil descrição, mas vemos a dicotomia presente de longa data, por exemplo, na cultura popular, como na imemorial fábula da cigarra e da formiga, e em disputas políticas recorrentes, como na que se travou entre Thomas Jefferson (solidário: proteção dos interesses dos governos locais e dos pequenos proprietários e agricultores) e Alexander Hamilton (ordeiro: proteção dos interesses do governo central e dos conglomerados financeiros e comerciais). Creio que a origem de tal dicotomia está na experiência humana universal da convivência em família, onde valores de solidariedade e ordem são importantes fontes de conflitos. A extrapolação dessa dicotomia do universo familiar para a política, ou seja, a falsa concepção da sociedade como uma macrofamília que enfrenta os mesmos dilemas da família nuclear é uma falácia amplamente aceita que tem como efeito impedir o bom funcionamento das democracias modernas.
Se a dicotomia é onipresente no ideário humano, como é possível afirmar que se trata de uma farsa? A farsa consiste mais precisamente no uso de fortes eufemismos para descrever o verdadeiro objetivo de cada um dos grupos políticos. Tome-se o caso da “esquerda solidária”: se sua verdadeira intenção fosse a promoção da solidariedade entre humanos, então incitaria seus membros a doar suas riquezas e esforços aos demais membros da sociedade sem exigir que aqueles que não são partidários façam o mesmo. O fato de que sua verdadeira motivação seja a desapropriação como fonte de recursos para a sustentação do seu poder e privilégios é prova de que o rótulo de “esquerda solidária” é uma farsa. De fato, para atingir seus objetivos, a “esquerda solidária” deve inevitavelmente utilizar instrumentos disciplinadores, explicando assim como seus governos estão fadados ao autoritarismo entre outras qualidades pejorativas que atribuem, ironicamente, a seus rivais.
O uso do eufemismo também é evidente entre os partidários da “direita ordeira”. Se sua verdadeira intenção fosse a promoção de uma ordem livre entre humanos, então incitaria a disciplina pessoal e a prática da virtude de acordo com os valores de cada indivíduo, sem exigir que aqueles que não são afiliados façam o mesmo. Em busca do voto, entretanto, sua retórica passa recorrentemente pela promoção de conflitos militares, pela marginalização e criminalização de divergências comportamentais (como no caso das leis secas ou da criminalização da prostituição), e pela manipulação dos medos e inseguranças dos eleitores. Ou seja, em nome da ordem e da segurança promovem exatamente aquilo que atribuem aos seus opositores: a desordem, o conflito e a desconfiança mútua.
A impostura consentida permite convenientemente à “esquerda solidária” e à “direita ordeira” compartilharem tranquilamente do apego que nutrem pelo exercício do poder e pelos seus privilégios, ao mesmo tempo em que evita o reconhecimento de que a diferença entre os dois grupos não está nem nos meios nem nos objetivos, mas naquilo que, independentemente de mérito, desejam tomar de terceiros ou não desejam ceder a terceiros.
* Publicado originalmente em 02/05/2012.
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