quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A ilha do dr. Moreau


A ilha do dr. Moreau

O clássico da literatura A ilha do dr. Moreau, de H.G. Wells, que já inspirou mais de um filme, pode ser interpretado de diversas formas diferentes. Uma história sobre o darwinismo, um ataque à religião, uma ácida crítica social, um combate à noção de que o colonialismo poderia aperfeiçoar os “povos primitivos”, um alerta contra a arrogância científica, uma lembrança da plasticidade humana, etc. Minha preferida, sem dúvida, é a critica social, lembrando do lado bestial presente em todos nós – em uns mais do que em outros.
Recapitulando: Edward Prendick é um náufrago, e vai parar numa ilha vulcânica habitada por estranhas criaturas. Descobre se tratarem de criações do dr. Moreau, que transformava, à base de muita dor e sofrimento, animais em seres humanos, ou parcialmente humanos. Misturas bizarras, que amedrontavam o novo visitante. Seu relato da aventura foi encontrado por seu sobrinho Charles, e chegou a nós.
Ficção científica que serve para ilustrar a visão um tanto pessimista do autor em relação aos seus vizinhos. Se Wells podia falar assim de seus compatriotas da ilha britânica, escusado estou de estender suas críticas aos dias de hoje, em terras mais tropicais. Às vezes, confesso, sinto-me como Prendick preso na ilha do dr. Moreau. Seguem algumas passagens de seu relato:
Esses animais sem coragem, essas pobres coisas movidas apenas pelo medo e pela dor, sem uma faísca de bravura que as ajude a suportar um tormento… não, dessas não se pode construir um homem.
O fato de que aquelas criaturas de aparência humana não passavam de monstros bestiais, grotescos arremedos de gente, produzia em mim uma vaga incerteza sobre o que eram capazes de fazer, algo muito pior do que um medo específico.
Eles tinham sido hipnotizados, tinham aprendido que certas coisas eram impossíveis, e certas outras coisas não deviam ser praticadas, e tais proibições estavam impregnadas em suas mentes além de qualquer possibilidade de desobediência ou contestação. Ainda assim, havia algumas áreas em que o antigo instinto se chocava com as convenções impostas por Moreau, o que gerava uma situação mais instável. A série de proibições chamada A Lei – que eu os vira recitando – lutava em suas mentes contra os impulsos selvagens profundamente arraigados em sua natureza. Vim a saber que eles passavam o tempo inteiro a repetir a Lei – e a desobedecê-la.
Vendo o modo como se encolhiam, e o terror furtivo em seus olhos brilhantes, admirei-me de ter considerado em algum momento que fossem homens.
[...] como uma onda que de súbito invadisse minha mente, tive a percepção da indizível falta de sentido de tudo naquela ilha.
Devo confessar que perdi minha fé na sanidade do mundo, quando vi o sofrimento desordenado que reinava naquela ilha.
Acho que havia em sua mente a noção de que dizer palavras sem significado era usar corretamente a linguagem. Ele chamava a isso “o grande pensar”, para distingui-lo do “pequeno pensar” – os pequenos interesses comuns da vida diária. Sempre que eu fazia alguma observação que ele não compreendia, ele a elogiava bastante, pedia-me para repetir, decorava-a, e saía repetindo-a por toda parte, errando uma palavra aqui e ali, para os Homens-Animais mais pacíficos. Não dava muita importância ao que era direto e compreensível. Acabei inventando alguns “grandes pensares” bem curiosos para seu uso pessoal. Penso hoje que ele era a criatura mais estúpida que já conheci: tinha desenvolvido, do modo mais espantoso, a estupidez própria de um ser humano sem por isso perder a estupidez natural do macaco.
Vocês são capazes de imaginar a linguagem, que era nítida e exata, sofrendo um enfraquecimento, desmanchando-se, perdendo forma e sentido, voltando a ser uma mera sucessão de sons?
Percebi com mais clareza do que nunca o que Moreau quisera dizer ao se referir à “animalidade obstinada”. Estavam regredindo, e regredindo bem depressa.
Vivíamos naquele estado de equilíbrio de animais amestrados vivendo juntos na mesma jaula, caso o domador os abandonasse ali e fosse embora.
Não consigo persuadir a mim mesmo de que os humanos a quem encontro não são também parte de outro Povo Animal, ainda passavelmente humanos, mas em todo caso animais incompletamente forjados à semelhança de almas humanas; e que a qualquer instante eles também podem começar a regredir, a exibir primeiro este traço de bestialidade, depois outro e mais outro.
Vejo rostos que são perspicazes e cheios de energia; outros que são apáticos e ameaçadores; outros desequilibrados, insinceros; nenhum deles exibe a calma autoridade de uma alma impregnada de razão. Sinto como se o animal estivesse querendo brotar dentro deles; e que a qualquer momento a regressão que testemunhei nos ilhéus se reproduzirá aqui, numa escala muitíssimo maior. 
E às vezes me parecia que nem eu mesmo era uma criatura racional, mas apenas um animal a mais, atormentado por alguma estranha desordem no cérebro que o impelia a vaguear sozinho, como uma ovelha doente.
Tenho esperança, porque sem ela não conseguiria viver. E assim, entre a esperança e a solidão, dou por encerrada a minha história.
Rodrigo Constantino

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