domingo, 30 de novembro de 2014

A cura capitalista para o terrorismo

O poderio militar sozinho não vai derrotar o Estado Islâmico. Os Estados Unidos precisam promover o empoderamento econômico.
Os Estados Unidos estão se dirigindo rumo a um novo cenário da guerra ao terror e vão desperdiçar a melhor oportunidade de derrotar o Estado Islâmico e outros grupos radicais no Oriente Médio. Isso ocorrerá caso não utilizarem uma arma crucial e muito pouco aproveitada: uma agenda agressiva de empoderamento econômico. No momento, tudo que ouvimos são notícias sobre ataques aéreos e manobras militares—o que é previsível quando se confronta assassinos determinados a espalhar destruição e ruína.
No entanto, se o objetivo não for apenas desconstruir o que o presidente Barack Obama chama de “rede da morte” do Estado Islâmico, mas também tornar impossível que líderes radicais possam recrutar terroristas em primeiro lugar, o Ocidente precisa aprender uma lição simples: esperança econômica é o único caminho para vencer a batalha entre as pessoas das quais grupos terroristas se alimentam.
Eu conheço alguma coisa sobre esse assunto. Há alguns anos, a maior parte da América Latina estava em grave crise. Por volta de 1990, um grupo terrorista marxista-leninista conhecido como Sendero Luminoso, ou Caminho da Luz, tinha assumido controle da maior parte do meu país, Peru, onde eu trabalhava como consultor do presidente. A opinião popular na época era que os rebeldes eram os empobrecidos e subempregados escravos salariais da América Latina, que o capitalismo não poderia funcionar fora das potências ocidentais e que a cultura latina não entendia direito economias de mercado.
Entretanto, a sabedoria convencional provou estar errada. O Peru instituiu reformas que concederam a empreendedores indígenas e fazendeiros o controle sobre seus ativos e um novo, mais acessível, arcabouço legal através do qual poderiam gerir seus negócios, fazer contratos e tomar empréstimos—impulsionando um aumento sem precedentes no padrão de vida da população.
Entre 1980 e 1993, o Peru foi o único a vencer uma guerra contra um movimento terrorista desde a queda do comunismo sem nenhuma intervenção de tropas estrangeiras ou qualquer apoio financeiro externo para os militares. Ao longo das duas décadas seguintes, o PIB per capita do Peru cresceu duas vezes mais rápido do que a média latino-americana, com a classe média crescendo quatro vezes mais rápido.
Hoje nós ouvimos o mesmo pessimismo econômico e cultural sobre o mundo árabe que ouvíamos sobre o Peru na década de 80. Mas agora somos melhores que isso. Assim como o Sendero Luminoso foi derrotado no Peru, terroristas do Estado Islâmico também podem ser derrotados por reformas que criem uma exigência irrefreável pelo aumento no padrão de vida no Oriente Médio e Norte da África.
Para tornar esse plano de ação uma realidade, os únicos requisitos são um pouco de imaginação, uma boa dose de capital (injetado de baixo para cima) e liderança governamental para construir, direcionar e fortalecer as leis e estruturas que permitem que o capitalismo prospere. Assim como qualquer um que caminhe pelas ruas de Lima, Cairo e Túnis sabem bem, capital não é o problema—é a solução.
Brevemente, a história do Peru é a seguinte: Sendero Luminoso, conduzido por um ex-professor chamado Abimael Guzmán, tentou derrubar o governo peruano na década de 80. O grupo, no começo, tinha apelo entre fazendeiros em situação de extrema pobreza no interior, que compartilhavam sua profunda desconfiança contra as elites peruanas. Guzmán se apresentava como o salvador dos proletários que pereciam há muito tempo sob os abusivos capitalistas peruanos.
O que mudou os termos do debate, e a resposta do governo, foi a constatação de que os pobres no Peru não eram trabalhadores e fazendeiros desempregados ou subempregados, tal como a opinião convencional afirmava na época. Os pobres, na verdade, eram pequenos empreendedores que trabalhavam fora dos registros, na economia “informal” peruana. Eles constituiam 62% da população e geravam 34% do seu PIB—e tinham acumulado por volta de 70 bilhões de dólares em ativos imobiliários.
Essa nova forma de ver a realidade econômica levou a grandes mudanças legais e constitucionais. O governo Peru reduziu 75% das barreiras burocráticas de acesso à atividade econômica, proporcionou corregedorias e mecanismos pra registrar queixas contra agências do governo e reconheceu os direitos de propriedade de uma vasta maioria. Somente um único pacote legislativo deu reconhecimento oficial a 380 mil negócios informais, trazendo à tona, de 1990 a 1994, 500 mil empregados e 8 bilhões de dólares em receita de impostos.
Essas conquistas deixaram os terroristas peruanos sem apoio nas cidades. No interior, porém, eles eram implacáveis: por volta de 1990, 30 mil fazendeiros que resistiram à coletivização forçada de terras promovida por terroristas foram assassinados. De acordo com um relatório da Rand Corp., o Sendero Luminoso controlava 60% do território peruano e provavelmente assumiria o controle efetivo do país em dois anos.
O exército do Peru sabia que os pequenos fazendeiros podiam ajudá-los a identificar e derrotar o inimigo. Mas o governo resistia a fazer uma aliança com as organizações de defesa informais que os fazendeiros montavam para resistir e lutar. Nós demos um golpe de sorte em 1991, quando o vice-presidente americano na época, Dan Quayle, que vinha acompanhando nossos esforços, arranjou um encontro com o presidente George H. W. Bush na Casa Branca. “O que você está tentando me dizer”, disse o presidente, “é que aqueles que estão embaixo estão, na verdade, do nosso lado”. Ele entendeu a idéia.
Isso levou a um tratado com os Estados Unidos que encorajou o Peru a montar um exército de defesa popular contra o Sendero Luminoso, enquanto os Estados Unidos se comprometiam a apoiar o plano de reformas econômicas como uma alternativa à agenda terrorista. O Peru rapidamente armou um imenso exército voluntário composto de todas as classes—quatro vezes maior que o exército regular—e venceu a guerra em pouco tempo. Como o senhor Guzmán declarou em um documento publicado pelo Partido Comunista peruano na época, “Nós fomos desmantelados por um plano desenhado e implementado por de Soto e o imperialismo Yankee”.
Olhando em retrospectiva, o que foi crucial para essa empreitada foi nosso sucesso em persuadir líderes e planejadores americanos, assim como pessoas influentes nas Nações Unidas, a ver o interior rural do Peru de uma forma diferente:  não como um terreno fértil para uma revolução marxista-leninista, mas para uma nova, moderna, economia capitalista. Essa nova maneira de pensar nos ajudou a derrotar o terror no Peru e poder fazer o mesmo, acredito, no Oriente Médio e Norte da África. A aposta não pode ser menos ousada. A economia informal do mundo Árabe inclui uma vasta população de potenciais recrutas para o Estado Islâmico – a região acompanha a tendência deles
Todos sabem que a Primavera Árabe eclodiu quando Mohamed Bouazizi, um mercador de rua tunisino de 26 anos, tocou fogo no próprio corpo em 2011. No entanto, poucos se perguntaram o que levou Bouazizi a se matar—ou por que, dentro de 60 dias, pelo menos 63 outras pessoas na Tunisia, Algeria, Marrocos, Iêmen, Arábia Saudita e Egito também tocaram fogo no próprio corpo, enviando milhões de pessoas às ruas, derrubando quatro regimes e conduzindo o mundo Árabe às convulsões de hoje.
Para entender o porquê, meu instituto se juntou à Utica, a maior organização empresarial da Tunísia, para juntar um time de pesquisa formado por 30 árabes e peruanos, que vasculharam toda a região em busca de respostas. Ao longo de dois anos, nós entrevistamos as famílias da vítima e seus colegas, assim como mais uma dúzia de pessoas que tocaram fogo em seus corpos mas sobreviveram às queimaduras.
Nós descobrimos que esses suicídios não eram um apelo por direitos políticos, religiosos ou por subsídios salariais, como alguns afirmaram na época. Bouazizi e os outros que tocaram fogo nos próprios corpos eram empreendedores extralegais: pedreiros, empreiteiros, varejistas, vendedores de alimentos, etc. Nas suas últimas palavras antes de morrer, nenhum deles se referiu à religião ou política. A maior parte daqueles que sobreviveram às suas queimaduras e concordaram em ser entrevistados nos falaram de “exclusão econômica”. Seu principal objetiva era “ras el mel” (a palavra árabe para “capital”), e seu desespero e indignação veio da expropriação arbitrária do pouco de capital que possuiam.
O sofrimento de Bouazizi como um pequeno empreendedor representa as frustrações que milhões de árabes ainda enfrentam diariamente. O tunisino não era um simples trabalhador. Ele era um comerciante desde os 12 anos de idade. Quando completou 19 anos, tinha seu próprio box no mercado local. Com 26, vendia frutas e vegetais com vários carrinhos e pontos diferentes.
Sua mãe nos contou que ele estava se preparando pra constituir uma empresa própria e sonhava em comprar um caminhão pra distribuir produtos para outros varejos, expandindo seu negócio. Mas pra conseguir um empréstimo pra comprar o caminhão, ele precisava de colateral—e como os ativos que ele possuía não estavam registrados legalmente ou tinham títulos que não eram reconhecidos, ele não conseguia se qualificar para o crédito.
Enquanto isso, inspetores do governo destruíam a vida de Bouazizi, extorquindo-o por propinas quando ele não conseguia apresentar licenças e permissões burocráticas, que foram concebidas justamente para serem inacessíveis. Chegou um momento que ele se cansou do abuso. No dia que ele se matou, inspetores apareceram para confiscar sua mercadoria e a balança eletrônica que usava pra pesar os produtos. Uma confusão se iniciou. Um inspetor municipal, uma mulher, deu um tapa no rosto de Bouazizi. Essa humilhação, assim como o confisco de 225 dólares em mercadorias, levou-o a tirar a própria vida.
O sistema de corrupção e favorecimento da Tunísia, que exige subornos em troca da proteção de oficial a cada esquina, deixou de apoiar Bouazizi e arruinou sua vida. Ele não podia mais gerar lucros ou pagar os empréstimos que tinha feito para comprar a mercadoria confiscada. Estava falido, e o caminhão que tinha sonhado comprar agora estava completamente fora de alcance. Ele não podia vender seu negócio e começar de novo porque não possuia um título legal de propriedade que pudesse transferir. Então ele morreu em chamas – vestido no estilo ocidental, exigindo o direito de trabalhar legalmente em uma economia de mercado.
Eu perguntei ao irmão de Bouazizi, Salem, se ele acreditava que seu irmão tinha deixado um legado. “É claro”, ele disse. “Ele acreditava que o pobre tem o direito de comprar e vender”. Como Mehdi Belli, um graduado em tecnologia da informação, que trabalha como comerciante em um mercado em Túnis nos disse, “Somos todos Mohamed Bouazizi”.
O povo desses países quer encontrar um lugar na moderna economia capitalista. Contudo, centenas de milhões deles têm sido impedidos de encontrar esse lugar por causa de restrições legais que líderes locais e elites ocidentais não enxergam. Eles vivem como refugiados econômicos em seus próprios países.
Para sobreviver, essas pessoas reuniram centenas de arranjos discretos, anárquicos, frequentemente chamados de “economia informal”. Infelizmente, o setor é visto com desprezo por muitos especialistas em desenvolvimento, tanto árabes quanto ocidentais, que preferem projetos de caridade bem intencionados como doações de mosquiteiros e suplementos alimentares.
Porém, os planejadores estão ignorando o verdadeiro risco: se as pessoas comuns no Oriente Médio e Norte da África não puderem jogar o jogo legalmente—apesar dos seus sacrifícios heróicos—eles vão se tornar muito menos capazes de resistir a uma ofensiva terrorista, e os mais desesperados entre eles podem até serem recrutados para uma causa jihadista.
Especialistas ocidentais podem não conseguir enxergar a realidade econômica, mas vivendo por um tempo na região, aprendi que ela está se tornando cada vez mais clara no próprio mundo Árabe. Eu apresentei nossa pesquisa em conferências por toda região durante o ano passado, mostrando a líderes empresariais, a burocratas e à imprensa como milhões de pequenos empreendedores extralegais como Bouazizi podem mudar economias nacionais.
Por exemplo, quando o novo presidente do Egito, Abdel Fattah Al Sisi, nos pediu pra atualizar nossos números sobre seu país, nós descobrimos que o pobre no Egito obtém sua renda de retornos sobre capital tanto quanto de salários. Em 2013, o Egito tinha 24 milhões de cidadãos assalariados classificados como “trabalhadores”. Eles ganhavam uma soma total de 21 bilhões de dólares por ano, mas também possuíam aproximadamente 360 bilhões de capital “morto”—quer dizer, capital que não pode ser usado efetivamente porque existe nas sombras, sem reconhecimento legal.
Para colocar em perspectiva, isso equivale a cem vezes o montante que o Ocidente vai doar ao Egito esse ano em assistência financeira, militar e voltada ao desenvolvimento—e oito vezes o montante de investimento externo direto feito no Egito desde a invasão de Napoleão mais de 200 anos atrás.
É claro que países Árabes têm leis que permitem que ativos possam ser alavancados e convertidos em capital, podendo ser investido e poupado. Mas os procedimentos para fazer isso são extremamente difíceis, especialmente para aqueles que não tem educação formal e conexões. Para os pobres em muitos países árabes, validar algo simples, como um título de propriedade imobiliária, pode levar anos.
Recentemente, em uma conferência na Tunísia, eu falei para líderes políticos e empresariais, “Vocês não tem uma infraestrutura que permita que os pobres participem do sistema”
“Você não precisa nos dizer isso”, disse um empresário. “Nós sempre lutamos pelos empreendedores. Seu profeta expulsou os mercadores do templo. Nosso profeta era um mercador!”
Diversos grupos empresariais árabes estão preparados para uma nova era de reforma legal. No discurso extremamente debatido do presidente Obama no Cairo, em 2009, ele falou de um profundo comprometimento dos Estados Unidos ao “Estado de Direito e administração igualitária da justiça”. No entanto, os Estados Unidos ainda não ofereceram amplo suporte à agenda de ampla reforma legal e constitucional no mundo árabe, e se os Estados Unidos hesitarem, potências menores também irão hesitar.
Washington deve dar apoio a líderes árabes, que não só resistem ao extremismo dos jihadistas, mas também escutam o apelo de Bouazizi e outros que deram suas vidas para protestar contra o roubo de seu capital. Bouazizi e aqueles que estão na mesma situação não são figurantes no drama dessa região, eles são os protagonistas.
Frequentemente, a forma com que ocidentais pensam sobre os pobres ignora completamente a realidade das coisas na base da pirâmide. No Oriente Médio e Norte da África, como foi demonstrado, legiões de empreendedores aspirantes estão fazendo tudo que podem para, contra todas as adversidades, escalar até a classe média. E isso se repete em todo o mundo, independente dos povos e religiões. Aspirações econômicas passam por cima de qualquer uma das superestimadas “diferenças culturais” frequentemente citadas para racionalizar a falta de ação.
Países como China, Peru e Botswana provaram recentemente que a população pobre se adapta rapidamente quando podem desfrutar de um arcabouço legal moderno protetor do capital e da propriedade. O segredo é começar. Nós devemos nos lembrar que, ao longo da história, o capitalismo foi criado por aqueles que um dia foram pobres.
Eu posso lhes dizer com conhecimento de causa que os líderes terroristas são muito diferentes de seus recrutas. Os líderes radicais que eu encontrei no Peru eram, em geral, assassinos, planejadores de sangue frio com ambições implacáveis de assumir o controle do governo. A maioria dos seus simpatizantes e potenciais recrutas, por outro lado, poderiam ser agentes econômicos legais, empenhados em criar uma vida melhor para si e para suas famílias.
A melhor maneira de acabar com a violência do terrorismo é garantir que o chamado perverso dos seus líderes encontre ouvidos moucos.
// Traduzido por Leonardo Tavares Brown. Revisado por Russ da Silva| Artigo original.

Sobre o autor

hdesoto
Hernando de Soto Polar é fundador do Instituto pela Liberdade e Democracia em Lima, Peru, autor de “O Mistério do Capital” e apresentador do documentário “Heróis improváveis da Primavera Árabe”.

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